Aspectos da aplicação da LGPD nos contratos eletrônicos
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
Atualizado às 07:58
A lei 13.709/18, Lei Geral de Proteção de Dados ("LGPD"), serviu e ainda serve de tema para inúmeras discussões no âmbito jurídico, no que tange a sua aplicação e extensão de efeitos. Em que pese não se tratar mais de novidade normativa propriamente dita, seus reflexos ainda seguem sendo pauta, como nos contratos eletrônicos, por exemplo, uma vez que a legislação de proteção de dados pessoais é ampla e aplicável às mais diversas áreas, desde os mercados tradicionais até os mais disruptivos.
Considerando o conceito legal de dado pessoal1, é intuitivo o entendimento de que estes dados são encontrados em inúmeros segmentos, especialmente em contratos, e devem gozar da respectiva proteção, na forma da lei.
Destaca-se, por oportuno, a disciplina de proteção de dados pessoais em ambientes que contam com regulamentação e normativas incipientes, como é o caso das relações tidas no âmbito da internet, em especial no que diz respeito à celebração de contratos eletrônicos.
Sobre a temática, demonstrou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que, enquanto no ano de 2003, apenas cerca de 15% (quinze por cento) dos domicílios brasileiros pesquisados possuíam microcomputador2, em pouquíssimo tempo a realidade da digitalização das relações pessoais disparou, sendo que em 2018, e 99,2% (noventa e nove vírgula dois por cento) dos domicílios já contavam com acesso à internet, e se utilizava o telefone celular para a finalidade de navegar na rede3.
Não por acaso, tratou o legislador de editar normativas que não ficassem estranhas a esta realidade, tais como a LGPD, que em seu artigo 1º, caput, estabelece que esta lei regula o tratamento de dados pessoais, ainda que em meios digitais4.
É fato notório que hodiernamente vivemos a era das relações digitais em todas as esferas da vida privada, uma vez que as relações interpessoais e os negócios jurídicos se permeiam pela digitalização dos fatos. No que tange à disciplina contratual, como não poderia deixar de ser, a digitalização se faz presente em diversos aspectos.
A adoção de contratos eletrônicos em nosso dia a dia é evidente, e marca uma verdadeira necessidade que se alinha com a exigência de dinamicidade, globalização e instantaneidade na maior parte das relações que firmamos. Além disso, a internet enquanto ecossistema e rede interconectada, além do surgimento e a consolidação da ampla utilização de softwares (web e mobile), tornam a cada dia mais concreta a celebração em larga escala de contratos eletrônicos.
Estes podem ser entendidos, em sentido amplo, como os vínculos contratuais assumidos por intermédio de ferramentas tecnológicas que substituem papel e caneta, seja para fins de manifestação de vontade, seja para a escrituração do instrumento particular que regerá a relação entre as partes. Através de contratos ditos eletrônicos, é comum a dispensa da interação humana no mundo concreto, pois a interface entre as partes tem lugar no ambiente digital5.
Contratos eletrônicos, portanto, tornam mais fácil, ágil, descomplicada e, muitas vezes, instantânea a assunção de obrigações e celebração de contrato entre partes interessadas, independentemente do tempo e do espaço físico em que se encontram.
Atualmente, a cada minuto se celebram inúmeros contratos em ambientes digitais que se tratam de meros instrumentos de adesão, contendo frases como "li e aceito" e caixas em branco para preenchimento com anuência. Entretanto, estes contratos configuram instrumentos válidos, a priori, e, que, não obstante, efetivam operações de tratamento de dados pessoais potencialmente até de cunho internacional, haja vista que não necessariamente todas as pessoas envolvidas naquela transação estarão situadas no Brasil.
À medida que a vida humana se torna digital, portanto, o direito contratual se vê coagido a acompanhar tal mudança, inclusive no que concerte à disciplina de proteção de dados pessoais. A edição da LGPD teve por finalidade a construção de um sistema eficaz na promoção da proteção dos direitos fundamentais de liberdade, privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
Tal normativa foi promulgada ao encontro da tendência mundial de maior preocupação com o fluxo de informações de cunho pessoal na internet, inclusive diante de incontáveis contratações diárias que realizamos nas mais diversas plataformas, sites e aplicativos.
Considerando a larga escala de contrato eletrônicos da espécie de adesão, levantam-se questões atreladas à dignidade individual, o direito à informação e à autodeterminação de cada indivíduo, considerando que a contratação ao alcance de um clique, cada vez mais pulverizada, necessita atender parâmetros mínimos.
Esta necessidade se torna ainda mais latente ao considerarmos a especial proteção destinada às crianças e adolescentes, que contam com ampla e muitas vezes irrestrito acesso às ferramentas eletrônicas e à internet, e aos quais a LGPD reserva tratamento diferenciado, bem como aos consumidores, da forma do Código de Defesa do Consumidor.
É comum que instrumentos contratuais exijam dados pessoais como nome completo, CPF, RG, endereço, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, ou mesmo dados pessoais sensíveis, como origem racial e étnica e biometria. Tais dados, uma vez fornecidos em um contrato eletrônico, ficarão armazenados em bases de dados situadas em arquivos eletrônicos ou mesmo nuvens de informação, as quais, muitas vezes, encontram-se no exterior.
Poucos são os casos em que os contratantes se atentam ao consentimento e prestação de informações atrelados a estas coletas e tratamento de dados pessoais, ou que contam com tecnologia suficiente seja para a adequada segurança destes dados, ou, ainda, para aplicação de medidas de anonimização, ou para eventual fornecimento ou correção de dados, quando solicitado pelo titular6.
Destaca-se que, para toda esta disciplina, a LGPD traz previsão de direitos e obrigações aos envolvidos, o que vem se reforçando através da atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados - ANDP, sendo certo que o descumprimento destas premissas pode acarretar, além de penalidades contratuais, sanções por parte deste órgão.
Por conseguinte, ainda que se tenha a percepção de que os meios eletrônicos, principalmente se ligados à internet, são menos burocráticos e visam facilitar a contratações, a celebração de contratos eletrônicos não pode ser entendida como terra sem lei, vista que deve ser compreendida dentro do ordenamento jurídico como um todo, inclusive no que se relaciona à disciplina de proteção de dados pessoais.
__________
1 Art. 5º. Para os fins desta Lei, considera-se: I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável. (LGPD. Disponível aqui. Acessado em 22/09/2022)
2 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. 2003. v. 24. p. 106. Disponível aqui. Acessado em 05/03/2022
3 BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. 2018. p.26 a 59. Disponível aqui. Acessado em 05/03/2022
4 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Parágrafo único. As normas gerais contidas nesta Lei são de interesse nacional e devem ser observadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. (LGPD. Disponível aqui. Acessado em 22/09/2022)
5 Neste sentido: Os contratos eletrônicos podem ser conceituados como negócios jurídicos bilaterais, que se utilizam de computadores e outros tipos de aparelhos eletrônicos, como,por exemplo,telefone celular, iPhone ou tablet, conectados à internet, por meio de um provedor de acesso, a fim de se instrumentalizar e firmar o vínculo contratual, gerando,assim,uma nova modalidade de contratação, denominada contratação eletrônica. CESARO, Telmo De Cesaro Júnior De. RABELLO, Roberto Dos Santos. "Um Modelo Para a Implementação De Contratos Eletrônicos Válidos." Revista Brasileira De Computação Aplicada. 4.1 (2012): 48-60. p. 49. Disponível aqui. Acessado em 26/06/2022.
6 Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição: I - confirmação da existência de tratamento; II - acesso aos dados; III - correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; IV - anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta Lei; V - portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial; (Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019) Vigência VI - eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta Lei; VII - informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados; VIII - informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa; IX - revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art. 8º desta Lei. (LGPD. Disponível aqui. Acessado em 22/09/2022).