Visual Law e LGPD: reflexões sobre a concretização do princípio da transparência
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022
Atualizado às 07:40
A lei 13.709/18, também nomeada de Lei Geral de Proteção de Dados ("LGPD") traz, em seu artigo 6º, os princípios que as atividades de tratamento de dados pessoais devem observar. Dentre os dez princípios elencados, além da boa-fé objetiva, destaca-se o da transparência, compreendido como a "garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial".
É fato que, por vezes, o Direito não se apresenta como o ramo de conhecimento mais acessível à sociedade, sendo permeado por expressões, nomenclaturas e termos incompreensíveis por aqueles que não atuam na área. Essa característica afasta justamente aqueles para quem as normas são criadas e visam proteger: os sujeitos de direito.
Sendo assim, um grande desafio aos operadores jurídicos e, no contexto da proteção de dados, aos agentes de tratamento, é encontrar formas de afastar o "juridiquês" e tornar a mensagem plenamente clara ao interlocutor, sem abandonar a seriedade do conteúdo, contudo, garantindo o acesso à Justiça. Para tanto, o Visual Law pode ser uma solução, inclusive, para a concretização do princípio da transparência, cumprindo-se o que determina a LGPD.
Norma é gênero, de que são espécies: a) os princípios; e b) as regras. Neste sentido, Eros Roberto Grau1, distingue os princípios e regras, na medida em que estas são editadas para serem aplicadas a uma situação jurídica determinada; ao passo que, o princípio tem um conteúdo mais genérico porque comporta uma série indefinida de aplicações. Outra distinção relevante feita por Humberto Ávila2, para quem princípios e regras são espécies do gênero norma, afirma que estes textos normativos distinguem-se pelo caráter comportamental descritivo da regra e finalístico dos princípios. Segundo este Humberto Ávila3:
"As regras são normas imediatamente descritivas na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser cumprida. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas cuja promoção gradual depende dos efeitos decorrentes da adoção a ela necessários. Os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento."
Conforme destaca Rony Vainzof4, entende-se como princípio "toda norma jurídica considerada determinante de outra ou outras que lhe são subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares". Em outras palavras, princípios podem ser entendidos como norteadores de normas e, consequentemente, de seu cumprimento.
Especificamente quanto ao princípio da transparência, Vainzof destaca que este é essencial "para garantir a confiança nos procedimentos, permitindo a compreensão dos titulares que, se necessário, poderão desafiá-los e exercer seus direitos."5
Esse princípio não é novidade, já consagrado pela doutrina consumerista, consoante as lições de Claudia Lima Marques.6 Semelhantemente, o princípio da transparência está consagrado desde a Convenção 108 do Conselho da Europa - datada da década de 1980 - e nas Guidelines da OCDE, também chamado de princípio da publicidade, segundo Doneda:7
"[...] a existência de um banco de dados com dados pessoais deve ser de conhecimento público, seja mediante a exigência de autorização prévia para funcionar, da notificação a uma autoridade sobre sua existência; ou na divulgação de relatórios periódicos."
Por óbvio, não basta apenas publicizar informações acerca do tratamento de dados sem se preocupar com a forma que o titular as receberá e se ele será capaz de entender o conteúdo da mensagem. É preciso, para o efetivo cumprimento da Lei, que a comunicação se dê sem ruídos, ou seja, que o emissor seja capaz de transmiti-la de modo que o receptor não fique em dúvida quanto a seu alcance. Quanto mais didática e compreensível a linguagem utilizada, mais se aproximará da desejada transparência.
Uma ferramenta facilitadora para a comunicação são as imagens. Nesse contexto, não é difícil enxergar como o uso do Visual Law pode auxiliar na concretização do princípio sobre o qual aqui se reflete.
O Visual Law, que é uma subárea do Legal Design, pode ser conceituado como o uso de ferramentas visuais com objetivo de auxiliar no entendimento de um texto jurídico que, tradicionalmente, seria transmitido de forma escrita. Como recursos utilizados temos os gráficos, ilustrações, ícones, vídeos, fluxogramas, organogramas, linhas do tempo, entre outros.
Apenas para melhor compreensão do tema, cabe esclarecer que o Legal Design, segundo Margaret Hagan, é uma forma de "avaliar e criar serviços jurídicos, com ênfase na forma como estes serviços são utilizáveis, úteis e envolventes"8. Complementarmente, nas palavras de Erik Fontenele Nybø9, "é uma área que combina os princípios e práticas do design, bem como de experiência do usuário para a criação de produtos ou serviços jurídicos."
Exemplo relevante da aplicação do Visual Law é o Contrato de Trabalho elaborado em 2016 pela empresa Creative Contracts para a empresa ClemenGold International10. Trata-se de um contrato em quadrinhos, com ilustrações que auxiliavam os trabalhadores de uma plantação de laranjas a entender sua função, remuneração, forma de pagamento e demais regras referentes ao trabalho que seria desempenhado. O documento tradicional impedia que muitos deles tivesse acesso a seus direitos e deveres, uma vez que nem todos compreendiam o texto ou eram alfabetizados.
É bem comum constatar a prática entre os fornecedores de produtos e serviços disponibilizados na Internet de veicular contratos extremamente longos, com uma linguagem técnica (que não é de domínio comum) e misturar no meio de tantas cláusulas de estilo (boilerplates rules)11 outras cláusulas importantes e imprevisíveis, tais como a utilização dos dados pessoais dos usuários, a cláusula compromissória ou cláusula eletiva, a limitação da responsabilidade do fornecedor, dentre outras.12 Tais práticas colocam em xeque a adjetivação do consentimento em matéria de proteção de dados previsto no inc. XII do art. 5º da LGPD, bem como desafiam o princípio da transparência.
No campo da proteção de dados, não raro o tratamento de dados pessoais esbarra em questões da área da tecnologia, como inteligência artificial e armazenamento em nuvem. Para alguém que não está familiarizado com conceitos próprios dos mencionados temas, é difícil compreender efetivamente o tratamento realizado.
Nesse sentido, importante mencionar que as ferramentas visuais auxiliam o indivíduo na criação imagética do conteúdo da mensagem, o que é essencial principalmente em matérias com muitas especificidades, tal como é a proteção de dados, como já dito. Em termos simples, essas estratégias de comunicação ajudam o receptor a construir e visualizar, em sua própria mente, conceitos antes abstratos e incompreensíveis a ele.
Outro ponto positivo, destacado por Leonardo Sathler de Souza13, é que
"ao contrário da comunicação linear de palavras, que deve ser captada sequencialmente, muito do significado de uma imagem estática pode ser compreendido de uma só vez. Demora muito menos tempo e esforço mental para ver uma imagem do que ler mil palavras."
Na sociedade da superinformação, onde somos inundados por diversos materiais em curtos espaços de tempo, cada segundo é importante. Assim, mais uma vez é demonstrada a capacidade do Visual Law em ser um grande aliado no atendimento ao princípio da transparência: a informação se torna, além de mais fácil, atraente ao titular de dados, fazendo com que ele, de fato, seja conduzido a estar a par de seus direitos.
Portanto, para além, os elementos visuais podem ser utilizados de modo a guiar o leitor pelo documento, ajudando-o a construir um caminho lógico para o pensamento e, assim, possibilitando que o conteúdo do material seja mais bem retido por ele.
Logo, não se pode negar os benefícios que o Visual Law traz no sentido do acesso à Justiça, democratização do conhecimento e concretização do princípio da transparência, permitindo que titulares de dados, independente de sua situação social, adquiram informações fundamentais acerca de seus direitos, uma vez que a informação se coloca clara, precisa e facilmente acessível, em respeito ao que determina a Lei Geral de Proteção de Dados.
Desse modo, é preciso, ao atuar como agente de tratamento, estar atento ao cumprimento dos princípios que regem a Lei Geral de Proteção de Dados, sob pena de incorrer em seu descumprimento. Aqui, destaca-se o princípio da transparência e entende-se como uma solução a utilização de ferramentas de Visual Law para tanto, de modo que o titular de dados, de fato, consiga compreender de que forma seus dados são tratados e, assim, seja capaz de exercer seus direitos previstos na LGPD.
* Cíntia Rosa Pereira de Lima é professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto - FDRP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP com estágio na Universidade de Ottawa (Canadá) com bolsa CAPES - PDEE - Doutorado Sanduíche e livre-docente em Direito Civil Existencial e Patrimonial pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Pós-Doutora em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino (Itália) com fomento FAPESP e CAPES. Líder e Coordenadora dos Grupos de Pesquisa "Tutela Jurídica dos Dados Pessoais dos Usuários da Internet" e "Observatório do Marco Civil da Internet", cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP). Presidente do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD. Advogada.
** Ana Clara Gonçalves Flauzino é bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense e Pós-graduanda em Direito Digital pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada inscrita na OAB/RJ. Associada e Pesquisadora do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD.
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1 Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 168.
2 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 30.
3 Idem, p. 167.
4 BLUM, Renato Opice (Coord.); VAINZOF, Rony; MALDONADO, Viviane Nóbrega (Coord.). LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados Comentada. 2ª. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. ISBN 978-65-5065-023-0.
5 Idem
6 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 39.
7 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. ISBN 978-65-5065-030-8.
8 HAGAN, Margaret. What is Legal Design? Disponível em: https://lawbydesign.co/legal-design/. Acesso em: 19 jan. 2022.
9 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.); CALAZA, Tales (coord.); NYBØ, Erik Fontenele. LEGAL DESIGN. "Legal Design: A aplicação de recursos de design na elaboração de documentos jurídicos". Indaiatuba: Foco, 2021. ISBN 978-65-5515-306-4.
10 CREATIVE CONTRACTS (PTY) LTD AND COMICONTRACTST. ClemenGold Comic Contract. África do Sul, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 19 jan. 2022.
11 Esta expressão é utilizada para designar termos contratuais padronizados que podem ser utilizados em diversas situações não deixando claro, portanto, seu conteúdo específico. A expressão, também, reflete a prática de listar estas cláusulas no canto inferior de um contrato ou em meio a tantas outras cláusulas contratuais que se perdem, inviabilizando o seu efetivo conhecimento pela outra parte. Cf. US LEGAL DEFINITIONS: "Boilerplate refers to the standardized, formal language in a contract or legal document that is often located in fine print at the bottom of a page. A person is bound by the terms in the boilerplate language upon signing the document, even if the person didn't read it. This has led to the voiding of contracts in some instances based upon mistake of fact. Boilerplate language in consumer contracts has been subject to criticism and some courts will void such contracts based on unconscionability when the terms are too one-sided in favor of the seller. Boilerplate clauses can usually be avoided by being crossed out or the addition of invalidating language". Disponível aqui.
12 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. O ônus de ler o contrato no contexto da "ditadura" dos contratos de adesão eletrônicos. Disponível aqui, acessado em 02 fev. 2022.
13 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.); CALAZA, Tales (coord.); SOUZA, Leonardo Sathler de. LEGAL DESIGN. "Visual Law e o Direito". Indaiatuba: Foco, 2021. ISBN 978-65-5515-306-4.