A proteção de dados pessoais e as competências dos entes federativos - Análise dos efeitos da PEC 17/2019
sexta-feira, 26 de novembro de 2021
Atualizado às 08:17
Breve introdução
O Congresso Nacional aprovou no dia 20 de outubro de 2021 a Proposta de Emenda à Constituição n. 17/2019, que incluiu a proteção de dados pessoais no rol de direitos e garantias fundamentais. O novo inciso LXXIX assegura, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais.
Além da inclusão expressa da norma como direito fundamental, o artigo inclui a competência privativa da União para legislar sobre a matéria de proteção e tratamento de dados.
A intenção dos autores que apresentaram o texto é a de evitar "a fragmentação e pulverização de assunto tão caro à sociedade (...)", evitando-se, assim, "dezenas, talvez milhares" - de conceitos legais sobre o que é "dado pessoal" ou sobre quem são os "agentes de tratamento" sujeitos à norma legal.1
Diante da proposta apresentada, já aprovada pelo Congresso Nacional e no aguardo de promulgação da norma, convém analisar os reais efeitos jurídicos dessa nova distribuição de competência, considerando os princípios inerentes ao federalismo, igualmente protegido por cláusula pétrea.
Centralização do tema na União
Talvez a maior divergência verificada nas audiências públicas realizadas pela Câmara dos Deputados sobre o tema tenha sido justamente a inserção da regulamentação da proteção e do tratamento de dados na esfera de competência privativa da União ou em esfera concorrente. Alguns especialistas apontaram a necessidade ou vantagens da uniformização, como isonomia em relação à competência privativa em informática e telecomunicações (Sérgio Gallindo), o predomínio do interesse (Danilo Doneda) e até mesmo a redução de custos com compliance (Gileno Barreto).2
Outros especialistas, todavia, reconheceram a conveniência de manutenção de um espaço criativo subnacional (Bruna dos Santos), havendo preocupações pontuais com o sistema de dados utilizado por serviços de interesse local ou regional, como aplicativos de transporte (Bruno Bioni), com a competência democrática para a população local ou regional se manifestar sobre a proteção de dados em temas de seu interesse, por meio de conselhos representativos (Marina Pita), ou com engessamento de competências legislativas e administrativas transversais tais quais o direito do consumidor ou da criança e adolescente, para citar alguns (Cassiana de Carvalho).3
Com efeito, para a teoria federativa, o argumento colocado por esse segundo grupo de especialistas se mostra pertinente, pois reconhece o predomínio do interesse específico, a par do próprio poder, presente nos regimes federativos, de estabelecimento do nível mais elevado de proteção jusfundamental por parte dos entes dotados de autonomia federativa.4
Nesse sentido, apesar da louvável iniciativa da Câmara dos Deputados em ouvir a sociedade civil e os especialistas, sentiu-se falta da participação de constitucionalistas, uma vez que o sistema de direitos fundamentais e a forma de Estado brasileiro possuem suas particularidades e princípios de interpretação e aplicação, muito desenvolvidos pela doutrina e jurisprudência nacionais, com supedâneo na melhor doutrina estrangeira e direito comparado.
Ao elevar um tema transversal como a proteção de dados a direito fundamental expresso, desenhado como norma de eficácia restringível (uma vez que a lei poderá restringir o alcance da proteção), atribuindo competência privativa a apenas um dos entes federativos, outras normas do sistema constitucional são impactadas.
Como ficará a autonomia constituinte dos Estados-membros, uma vez que, no sistema federativo, deve prevalecer o nível mais elevado de proteção dos direitos fundamentais? Haverá alguma distinção no que toca à sua competência administrativa e legislativa, conforme se trate das impropriamente5 chamadas eficácias horizontal e vertical desse novo direito fundamental (ou seja, respectivamente eficácia na relação entre particulares e eficácia na relação entre particulares e o Estado)? E qual competência deverá prevalecer na hipótese de conflitos federativos, como no caso de leis transversais, como a proteção do consumo em matérias de competência privativa da União, como serviço de telecomunicações, trânsito e transporte?
Os especialistas convidados e os próprios autores da PEC 17/2019 defenderam interesses específicos, espelhando-se em legislações e sistemas normativos distintos do Brasil.
Parece bastante aceitável que um profissional de compliance esteja preocupado em ter que administrar o conhecimento de uma normatização pulverizada. Por outro lado, não se pode relevar a preocupação de empresas que recorrem a sistemas informatizados para prestação de serviços públicos de interesse local, tampouco olvidar o legítimo direito da sociedade local ou regional a decidir questões específicas que possam ser adotadas apenas localmente.
O argumento econômico apresenta sentido, econômico. Ninguém desconsidera que o tema do fluxo de dados entre pontos situados em diferentes estados possa exigir uma regra uniforme. Mas a proteção e o tratamento de dados não se resumem ao fluxo de dados. Há diversas outras questões que devem ser analisadas. Se uma empresa se beneficia da economia de escala proporcionada pelo tamanho do país, é razoável que ela se prepare também para as diversidades que a Constituição desse país recepcionou e protegeu ao adotar o sistema federativo.
Recentemente, por exemplo, verificou-se uma verdadeira guerra legislativa entre governo federal e governos estaduais e municipais no que se referia à proteção à saúde. Nessa oportunidade, o Supremo Tribunal Federal nada mais fez que implicitamente reconhecer o nível mais elevado de proteção à saúde, ou seja, no caso de normas federais conflitantes com normas estaduais, deveria prevalecer aquela que potencializasse os princípios da precaução e da proteção. O Tribunal reafirmou que, no campo de competências comuns e concorrentes, deve prevalecer o predomínio do interesse.6
Alguns podem objetar que, no caso da proteção de dados, a sua menção expressa nos artigos 21 e 22 evitaria qualquer espaço para atuação administrativa ou legislativa dos demais entes federativos. Mais uma vez cabe reforçar que, a despeito de qualquer orientação do STF nesse sentido, o tratamento pode ser outro quando se trata de direito fundamental. A propósito, o artigo 23, I, da Constituição Federal também confere competência comum para zelar pela guarda da Constituição, a par de o artigo 24 também prever competências concorrentes que podem conflitar com a novel competência privativa.
O nível mais elevado de proteção do direito fundamental no Brasil
A pretendida uniformização de tratamento do tema promovida pela PEC 17/2019, a despeito de sua plausibilidade, pode enfrentar algum óbice na teoria do federalismo, aplicável ao Brasil.
É que, em um Estado federativo, com entes dotados de competência constituinte, os entes federados podem conferir maior proteção aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. O que não podem é reduzir o alcance de proteção a tais direitos.
Deveras, a possibilidade de ampliação do leque de proteção jusfundamental é corolário lógico do federalismo. Compreendido como Estado composto de Estados7, só existe federação quando os entes autônomos apresentem também os elementos essenciais para configuração do estado, ou seja, uma estatalidade. Entre tais elementos se encontra o poder constituinte (por alguns chamados "decorrente"), apenas limitado e subordinado ao poder constituinte originário.
Característica básica para a existência de uma Constituição é a disciplina de direitos fundamentais, como reconhece o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que sobremaneira influenciou o constitucionalismo contemporâneo. Não haveria sentido admitir a estatalidade de uma sociedade política, como a de entes federados, portanto, se não se reconhecesse a eles um espaço para ampliar os direitos fundamentais. Assim fosse, não possuiriam rol próprio de direitos fundamentais, bastando aplicar os direitos previstos na Constituição Federal, tendo apenas competência para organização de poderes, o que o tornaria um Estado unitário descentralizado, não federativo.
Assim, não se pode entender que a nova redação impeça a adoção de normas complementares que tenham por objetivo aumentar a proteção conferida pela Constituição Federal, especialmente na relação entre o poder público local e regional e o particular.
Como se sabe, o modelo de federalismo adotado pelo Brasil é do tipo cooperativo e taxativo-central, ou seja, demarca competências taxativas da União, deixando aos Estados a competência residual.8 Desse modo, tudo aquilo que o poder constituinte originário não reservou expressamente à União, cabe aos Estados. Isso não impede que novos direitos fundamentais sejam reconhecidos pelo poder constituinte derivado, mas impede que sejam subtraídas competências implícitas concedidas aos Estados, como a de conferir maior proteção a direitos fundamentais, como a intimidade, a privacidade e ao próprio sigilo de dados.
Nesse sentido, cabe sublinhar que, no caso da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), a previsão contida em seu artigo 8º, que expressamente trata da proteção de dados, deve ser interpretada, no espaço eurocomunitário, à luz do artigo 53, que assegura o nível mais elevado de proteção jusfundamental.
Segundo o referido artigo 53, o artigo 8º da CDFUE, bem como o Regulamento Geral de Proteção de Dados no Espaço Europeu, devem ser observados pelos Estados-Membros da União Europeia apenas quando estiverem aplicando o Direito da União.9
Cabe frisar que a União Europeia, apesar das discussões em torno de sua natureza quase estatal, apenas possui poderes de soberania delegados taxativamente pelos Estados-membros, não uma competência constituinte originária e ilimitada, como se verifica no caso brasileiro, em relação à Assembleia Nacional Constituinte de 1988.
Conflitos federativos em temas transversais
Outro espaço que continuará aberto para tratamento do tema pelos demais entes federativos é o da intervenção do poder público local ou estadual em temas transversais. Nesse ponto, o STF ainda oscila. Em casos análogos, em que uma lei estadual disciplina uma matéria para a qual o Estado possua competência, mas, ao mesmo tempo, afeta tema de competência privativa da União, ainda falta à Corte um critério que confira maior segurança jurídica para a solução do conflito.
É o caso típico do direito do consumidor de serviços de telecomunicações. Há decisões em que o STF reconhece se tratar de relação de consumo e, portanto, aceita a intervenção estadual (ADI 5745). Em outros casos, a Corte entendeu haver invasão da competência privativa da União (ADI 5568). Ambos foram julgados em 2019.
Como se vê, a busca pela uniformidade de tratamento na matéria em âmbito nacional resta comprometida quando nem mesmo o STF possui um critério claro para solução de conflitos federativos em caso de temas transversais que reclamem competências constitucionais paralelas.
A nosso ver, tal solução deve se dar prestigiando a autonomia federativa dos entes subnacionais, a qual apenas deve ser restringida nesses casos quando houver flagrante intenção de invasão em competência privativa da União, ainda que de forma oblíqua, mas não quando, ao disciplinar tema de sua competência, apenas resvale o campo material da competência privativa.
Assim, em matéria de transporte individual ou coletivo privado, direito do consumidor, proteção ao patrimônio público, saúde, educação, segurança pública ou proteção de direitos fundamentais, entre outras que competem aos entes subnacionais, eventual conflito com a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados poderá ainda dar espaço a entes subnacionais.
Conclusão
A restrição estabelecida pela PEC 17/19, com a colocação da matéria no rol de competências privativas da União, não impede a adoção de normas complementares por Estados e Municípios, especialmente por meio de suas Constituições ou Leis Orgânicas, que tenham por objetivo aumentar a proteção conferida pela Constituição Federal à privacidade, à intimidade e ao sigilo de dados, tampouco a edição de normas que, ao pretenderem regulamentar assuntos de sua competência, atinjam de maneira reflexa o tema da proteção e tratamento de dados, desde que não se reduza a proteção conferida aos direitos fundamentais envolvidos.
Nem sempre a lei tem os efeitos que os legisladores pretenderam dar, pois o texto respira o ar de seu contexto, inclusive jurídico. Felizmente, a lei é mais sábia que o legislador.
*Leonardo David Quintiliano é advogado. Professor de Direito Constitucional e Administrativo da Universidade Ibirapuera e da Escola Paulista de Direito. Associado Fundador e Pesquisador do IAPD - Instituto Avançado de Proteção de Dados. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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1 Cf. Senado Federal. PEC 17/2019. Disponível aqui.
2 Cf. Câmara dos Deputados. Relatório da Comissão Especial destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição n. 17/2019, p. 6 e 7.
3 Cf. Câmara dos Deputados. Relatório da Comissão Especial destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição n. 17/2019, p. 6 e 7. Disponível aqui.
4 Cf., QUINTILIANO, Leonardo David. Autonomia federativa: delimitação no direito constitucional brasileiro. 2012, p. 267. Disponível aqui.
5 Sobre as razões de tais impropriedades, cf. SOMBRA, Thiago Luís Santos. Supremo Tribunal Federal e a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 65/66:29-86, jan./dez. 2007, p. 33.
6 Cf. STF. ADPF 672-DF. Rel. Min. Alexandre de Moraes. J. 13.10.2020.
7 Cf., QUINTILIANO, Leonardo David. Autonomia federativa...cit, p. 61.
8 Ibid., p. 88.
9 Cf., a respeito, nosso artigo intitulado: "O conflito entre os níveis nacionais de proteção jusfundamental e o direito eurocomunitário à luz do artigo 53 da carta de direitos fundamentais da união europeia". UNIO/CONPEDI E-book 2017 Interconstitucionalidade: Democracia e Cidadania de Direitos na Sociedade Mundial - Atualização e Perspectivas. v. l. Braga - Portugal: 2018, p. 257.