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Advogados e cientistas da computação unidos para lacrarem a neutralidade da rede

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Atualizado às 07:54

O conceito

Eu considero o conceito de neutralidade da rede como o maior legado da lei Federal 12.965, de 23 de abril de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet [Marco Civil, 2014]. Esta lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil e, como ressaltado no Art. 9º do Capítulo III,

"Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo."

Ou seja, a neutralidade da rede representa a ideia de que os usuários da web têm direito a um serviço que não discrimina o conteúdo trafegado dado a sua origem, seu destino, a aplicação, a plataforma, o tipo de equipamento ou até mesmo proprietário do meio de transmissão usado.

Tim Wu [WU, 2003], professor da Universidade de Columbia, foi responsável por cunhar o termo "neutralidade da rede" quando se referiu a história dos serviços de comunicação prestados nos EUA que sempre utilizaram os chamados "common carrier", ou seja, no sentido das comunicações, as empresas que prestam serviços públicos regulados pelo governo. Por exemplo, se o cabeamento telefônico de sua cidade é fornecido por uma empresa telefônica isso não limita seus residentes de ligarem ou receberem chamadas telefônicas de outras empresas. 

Entendendo o contexto

Atualmente pode ser difícil para nós entendermos esse conceito de neutralidade da rede dado que usamos os dados da web como outro bem qualquer. Abrimos a "torneira da internet" e esperamos sair os dados, sejam estes vindos da nossa rede social favorita, de um serviço de streaming de música, de um streaming de vídeo por demanda, para trabalhos no escritório, enfim, não nos preocupamos com a origem, o conteúdo, ou mesmo a aplicação que usamos. Temos os dados, usamos e pronto. Finito! Todos usam. Todos pagam pela quantidade de dados usados, sejam esses dados para o lazer, para o lucro ou até mesmo para atividades ilícitas. Neutralidade absoluta. Mas, a vida digital nem sempre foi assim.

Aqui no Brasil as discussões sobre este conceito de neutralidade começaram formalmente na esfera política em março de 2014 [Plenário, 2014], sete anos antes da aprovação do Marco Civil. Segundo Scott Jordan [JORDAN, 2009], da Universidade da Califórnia, o congresso norte-americano começou discussões semelhantes bem antes, em 2005 e, em 2006, já havia um forte lobby sobre o tema. Em ambos os países, entre os favoráveis à neutralidade da rede estavam os consumidores, representados por grupos organizados da sociedade civil, os especialistas em computação, as organizações de direitos humanos e as empresas que disponibilizam conteúdo ou aplicações computacionais com base na web. Ambos temiam que sem a proibição da discriminação dos dados, os provedores de serviços de internet poderiam cobrar taxas discriminatórias sobre os dados utilizados, ou mesmo oferecer serviços com níveis diferenciados de qualidade. Cabe lembrar que, concomitantemente a estas discussões sobre neutralidade da rede, as empresas de telefonia estavam crescendo substancialmente e estendendo os cabeamentos físicos e demais equipamentos por todo o país para levar sinais de voz e vídeo ao maior número de lares passíveis. Por outro lado, as empresas fornecedoras de serviços de conteúdo da web usavam esta infraestrutura de cabos e equipamentos até para a comunicação por voz entre usuários da rede, abrindo assim uma concorrência desigual frente às operadoras de telefonia. Nesta época, a convergência de praticamente todos os serviços de comunicação para a web estava nascendo e, como muitos processos neste estágio inicial, ainda sofria de desequilíbrios. Os que advogavam a neutralidade da rede apoiavam a ideia por acreditarem que esse princípio era a base conceitual natural para abrigar a liberdade de expressão, além de promover a competição e a inovação de serviços na rede. Advogavam também que a garantia a padronização da transmissão de dados na Internet é essencial para seu crescimento. Esse último ponto, o da padronização da transmissão, é um ponto que iremos destacar mais a frente neste artigo.

Os opositores à neutralidade da rede, capitaneados pelos provedores de Serviço ou Acesso à Internet (em inglês, Internet Service Provider, ISP), argumentavam que a neutralidade da rede reduziria seu incentivo para construir a Internet, reduziria também a concorrência no mercado e poderia aumentar seus custos operacionais que teriam de repassar aos seus clientes. Alegavam também que não havia motivos para uma regulamentação deste tipo de serviço. Não é de se estranhar que os fabricantes de equipamentos eletrônicos dedicados à comunicação de dados, tais como, roteadores, switches, e gateways, também eram partidários da não regulamentação da rede. 

Entendendo o trânsito de dados na rede

Talvez você não precise ler esse trecho se estiver cansado ou dominar o assunto, mas com certeza voltará neste ponto para entender o "pulo do gato" com mais propriedade.

No contexto de redes de computadores, ou melhor, da transmissão e recepção de dados da web, os dados são trocados na forma de pequenos "pacotes de dados". Esses pacotes de dados são individualmente encaminhados entre os nós da rede através de ligações físicas tipicamente partilhadas por outros nós. Por exemplo, um nó da rede é o seu computador que busca uma informação do site www.xyz.com. A requisição de uma página do site xyz sai do seu computador, passa pelo seu roteador, passa pelo provedor de internet e chega ao computador servidor do site buscado. Todos estes entes citados anteriormente (roteador, provedor, servidor) são nós da rede. Como podemos ter várias informações nestas ligações entre os nós já que seu computador por estar, por exemplo, conectado a outro site também, bem como o servidor do xyz pode estar atendendo outro computador cliente, esse intercâmbio de dados indo e voltando na rede é um paradigma da Computação ao qual chamamos de "comutação de pacotes". Pronto! Parte 1 finita.

E é só isso? Essa transmissão é simples assim? Eu concordo... o mundo poderia ser simples assim, mas não é. Só mais um pouco.

Vejam bem, enquanto existem computadores que se comunicam via fibra óptica, os nossos ainda usam fios ou uma rede wi-fi doméstica. Também existe o problema de como esses pacotes encontram seus destinos; tem o problema das interferências que podem gerar erros de transmissão; tem os problemas da ordenação dos pacotes... e vários outros. Para encurtar a história, os criadores desta forma de trânsito de dados tiveram uma brilhante ideia para resolver todas estas questões citadas acima usando camadas de solução de problemas, uma camada em sequência da outra. Cada camada resolve seu problema e, quando este estiver resolvido, o sistema passa os dados para a próxima camada. Isso é o que chamamos de Modelo OSI (do acrônimo do inglês Open System Interconnection) [Wikipedia OSI]. Este é um modelo conceitual de telecomunicação criado em 1971 (bem antes de qualquer discussão sobre neutralidade da rede) com objetivo de ser um padrão para protocolos de comunicação de dados. Veremos que parece que os criadores deste modelo já anteviam um "clima adverso" no futuro em relação ao livre trânsito de dados na web.

O modelo OSI tem sete camadas, mas não nos estenderemos por todas elas. Abordaremos apenas a três primeiras. A primeira camada, chamada de Camada Física, transforma os bits dos computadores em sinais elétricos, ópticos ou de rádio frequência (wi-fi, Bluetooth). Converte a ida e a volta destes sinais. É uma camada necessária e efetiva. Resolvida essa transformação, os dados são passados para a Camada de Ligação ou Enlace de Dados. É muito importante aqui saber que cada dispositivo conectado a uma rede de comunicação tem um número único chamado de MAC address. Esse endereço pode facilitar e agilizar o intercâmbio de dados na rede quando, por exemplo, transferimos dados de um computador para outro usando uma mesma rede local, a exemplo, numa rede doméstica. A terceira camada, chamada de Camada de Rede, fornece os meios para transferência de dados entre nós que estejam em redes diferentes. Uma rede é um meio para o qual muitos nós estão conectados. Essa camada é a que faz o roteamento dos dados na rede mundial e torna a Internet possível. Uma das tarefas desta camada é, por exemplo, transformar os endereços lógicos dos nós, ou seja, os nomes dos domínios, nos seus endereços físicos, os famosos endereços IP (Internet Protocol). Por exemplo, quando digitamos www.migalhas.com.br na verdade, acessamos o IP 177.69.220.104 que é o endereço físico deste website na rede. Essa camada de rede também faz esse serviço.

A grande sacada

Como já comentamos, a comutação de pacotes neste modelo conceitual OSI tem outras 4 camadas que, por exemplo, camadas que estabelecem o diálogo entre dois computadores, tarefa que chamamos de sessão; camadas que tratam de conversão de padrões de codificação de caracteres; camadas que tratam de criptografia; entre outras tarefas. Mas, o conceito de neutralidade da rede, bem como os argumentos de acesso aberto, está frequentemente relacionado às consequências de uma arquitetura de Internet em camadas.  Foi nesse modelo em camadas que os técnicos e os advogados elaboraram sua estratégia de defesa da abertura da rede.

Os arquitetos da pró-neutralidade foram buscar sua defesa num artigo acadêmico de 1984 de três cientistas do MIT (Massachusetts Institute of Technology), Saltzer, Reed e Clark [SALTZER, 1984]. Neste artigo, os autores criam e explicam o que eles chamam de Princípio Ponta-a-Ponta (end-to-end principle). Este princípio, usado até hoje, serviria para guiar a implementação de novas funcionalidades numa rede. Uma destas funcionalidades, por exemplo, poderia ser um filtro que bloqueia ou discrimina pacotes de dados. Este princípio genérico de design, o end-to-end principle, sugere que a funcionalidade da rede deve ser implementada nas camadas OSI 1, 2 e 3 e, portanto, em cada roteador, apenas se não puder ser implementada efetivamente nas camadas superiores. Em redes projetadas de acordo com esse princípio, os recursos específicos do aplicativo residem nos nós finais de comunicação da rede, em vez dos nós intermediários, como gateways e roteadores, que existem para estabelecer a rede em sua finalidade mais primitiva, o trânsito fluido de dados. Em outras palavras, a premissa básica deste princípio é que os benefícios da adição de funcionalidades a uma rede simples, como por exemplo, adição de filtros para pacotes de dados, degradam a rede rapidamente, especialmente nos casos em que as camadas finais precisam implementar essas funções apenas por razões de conformidade. A implementação de uma funcionalidade específica incorre em penalidades para o uso de recursos da rede, independentemente de a função ser usada ou não. Assim sendo, uma implementação de uma função específica na rede distribui essas penalidades entre todos os clientes, usuários ou não destes recursos.

Usando este princípio científico, demonstrado no artigo em questão, os advogados da pró-neutralidade derrubaram a ideia dos oposicionistas usando suas próprias tecnologias e ferramentas. Após esta alegação científica, os argumentos técnicos anti-neutralidade caíram por terra. Esse argumento, usado até hoje, mantém a web funcionando sobre protocolos comuns que se espalham por todas as camadas OSI e permitem seu uso independentemente do conteúdo transitado. Se for necessário implementar uma forma de filtro, que ele seja implementado apenas na ponta final da rede, ou seja, nos nós finais de quem deseja essa filtragem. A comutação de pacotes nos seus níveis mais elementares, camadas 1 a 3, não deve ser impregnada por funcionalidades às quais não foram planejadas.

Analisando o princípio ponta-a-ponta hoje, descrito em 1984, sobre uma criação do início dos anos 1970, as camadas OSI, percebemos o quanto foram criativos esses desenvolvedores que protegeram a essência da transferência de dados com o mínimo de invasão possível para agilizar a troca de informações.

Atualmente percebemos que essa estruturação da rede em camadas permite a criação de métodos de proteção de dados que são independentes da infraestrutura de comunicação da rede, ou seja, essa arquitetura em camadas permite a criação de métodos de proteção de dados que residam apenas nas camadas finais da rede, camadas ligadas às aplicações e que são usadas apenas pelos usuários que de fato se interessam por isso. Qual o motivo de proteger os dados de um streaming de áudio de uma rádio, ou de uma transmissão esportiva de um evento aberto?

Poucas vezes na história da comunicação digital podemos ver um trabalho interdisciplinar que uniu advogados e especialistas em computação gerar tantos benefícios à sociedade.

No entanto, passadas décadas da formulação e divulgação do princípio ponta-a-ponta parece que muitos ainda não sabem que ele existe, ou fingem que não sabem. Em setembro do ano de 2020, a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Economia [SAE, 2020], sugeriu retomar a discussão sobre o conceito de neutralidade de rede diante da chegada do 5G no Brasil. Vejam bem, essa tecnologia 5G não altera as camadas OSI que formam a infraestrutura global de todas as comunicações que usam a Internet. A tecnologia 5G é apenas uma agilização da troca de dados e funde-se a qualquer outra tecnologia que respeite a padronização das camadas OSI. A justificativa da Secretaria seria garantir a viabilidade jurídica de redes privadas e do fatiamento de rede (network slicing). Ou seja, sugestões como esta fazem com que o princípio da neutralidade da rede ainda sofra grandes perigos no Brasil. Sendo assim, torna-se cada vez mais imperativo que todos, nós cidadãos pró-neutralidade, usuários da rede e seus serviços, saibamos um pouco mais de tecnologia para proteger esse princípio que modelou essa nova estrutura de comunicação que serve a todos os brasileiros, sem distinção. A quebra deste princípio definitivamente vai gerar um fatiamento da rede, como prega a Secretaria, fatiamento o qual, por consequência, vai gerar nichos tecnológicos e de informação fechados, de acesso restrito e que nada irão ajudar a construir a sociedade da informação que desejamos e que é tão importante para um país em desenvolvimento.

Referências bibliográficas

Marco Civil da Internet. Disponível aqui.

WU, Tim. Network neutrality, broadband discrimination. J. on Telecomm. & High Tech. L., v. 2, p. 141, 2003.

Plenário. Disponível aqui.

JORDAN, Scott. Implications of Internet architecture on net neutrality. ACM Transactions on Internet Technology (TOIT), v. 9, n. 2, p. 1-28, 2009.

SEAE. Disponível aqui.

Wikipedia OSI. Disponível aqui.

SALTZER, Jerome H.; REED, David P.; CLARK, David D. End-to-end arguments in system design. ACM Transactions on Computer Systems (TOCS), v. 2, n. 4, p. 277-288, 1984.

Evandro Eduardo Seron Ruiz é professor Associado do Departamento de Computação e Matemática, FFCLRP - USP, onde é docente em dedicação exclusiva. Atua também como orientador no Programa de Pós-graduação em Computação Aplicada do DCM-USP. Bacharel em Ciências de Computação pela USP, mestre pela Faculdade de Engenharia Elétrica da UNICAMP, Ph.D. em Electronic Engineering pela University of Kent at Canterbury, Grã-Bretanha, professor Livre-docente pela USP e estágios sabáticos na Columbia University, NYC e no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP). Coordenador do Grupo de Pesquisa "Tech Law" do IEA-USP. Membro fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD.