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Direito Inglês e Common Law: reflexões introdutórias

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Atualizado em 16 de dezembro de 2024 14:44

I. Introdução

A família do common law parte da estrutura do direito inglês. É evidente que cada país integrante dessa família possui particularidades e diferenças. O que as fazem integrantes da mesma família são os pontos em comum na estruturação e na operacionalização do direito como resultado da influência do direito inglês.

Convém, por esse motivo, conhecer o direito inglês e o seu desenvolvimento para ter um ponto de partida nos estudos do sistema jurídico dos diversos países integrantes do common law. É verdade que o common law foi desenvolvido também fora da Inglaterra, mas é inegável a notável influência do direito inglês na modelagem do common law.

Por direito inglês, deve-se entender aquele aplicável na Inglaterra e no País de Gales. Não é um direito de todo o Reino Unido.

Escócia e Irlanda do Norte possuem um regime jurídico diverso que lhes impede de serem enquadrados dentro do conceito de "direito inglês". Igualmente, as Ilhas do Canal1 (Ilhas Anglo-Normandas, Channel Island) e a Ilha de Man (Isle of Man) não são integrantes do Reino Unido, mas formam uma confederação com este. Possuem uma jurisdição própria e separada do Reino Unido. Integram as famílias do common law, mas não podem ser consideradas propriamente parte integrante do direito inglês por conta de sua individualidade, especialmente por conta da influência sofrida pelos tempos em que integraram a Normandia2.

II. Fundamentos

Historicamente, ao contrário do que se deu com a família romano-germânica (civil law), o direito inglês não experimentou o movimento de codificação nem a renovação pelo direito romano3. Formou-se e desenvolveu-se de modo apartado da Europa continental, mas com inquestionáveis interações com o direito europeu continental.

Os juristas ingleses enxergam o movimento de codificação ocorrido na Europa Continental como uma ruptura da tradição do direito continental. Enfatizam o caráter histórico do common law, à diferença dos juristas franceses, que alardeiam o caráter lógico e racional do próprio direito. Valorizam a continuidade história do common law com a consequente facilidade de adaptação diante das transformações sociais. Partem de uma premissa - talvez mítica - de que o common law não pode ser reduzido a um ato de fundação, pois ele é imemorial, como defendia um dos mias destacados juristas ingleses do século XVI e XVII: Sir Edwart Coke (1552-1634)4. O common law seria a sedimentação histórica de princípios fundamentais, confirmados pelos costumes. O common law funda-se no costume e em práticas continuadas (na história, portanto) e, por isso, paradoxalmente, seria a-histórica, pois:

... o costume não faz senão sedimentar certos princípios fundamentais que a lei reflete e que não são eles próprios alterados com a história, sendo, ao contrário, o que permanece imutável e contínuo através dos tempos (Limongi, 2015, p. 39).

No common law, a lei é a positivação de costumes imemoriais5. Na mentalidade do common law (common law mind6), pode-se legitimar um princípio com a demonstração do maior número de práticas e registros demonstrando sua antiguidade. A subsistência longeva de práticas indica que a sobedoria de muitas gerações chancelou um princípio que se afigura saudável à sociedade inglesa. Os juízes atuam para aprimorar e refinar as regras.

Aliás, a própria expressão common law refere-se à ideia de um direito comum a todos os ingleses, em oposição a costumes localizados.

Essa teoria de que o common law é a prescrição do costume está ligada ao mito da antiga constituição: os antigos saxões teriam trazido o common law para a Grã-Bretanha e nem mesmo a invasão normada teria abalado essa cultura jurídica. Essa é uma premissa inegociável por Sir. Edwart Coke e pelos common laweyrs7.

Não havia propriamente leis entre os saxões. As cortes saxãs eram mais uma corte judiciária do que uma corte legislativa. Suas soluções jurídicas baseavam-se nos costumes (ou, na verdade, em uma lei natural, e não em uma lei civil). Isso, na prática, revelava um certo grau de discricionariedade do magistrado8.

O direito inglês, portanto, é essencialmente jurisprudencial, ligado ao contencioso, alicerçado na valorização dos costumes9.

Isso, porém, não significa que, ao longo do desenvolvimento do direito inglês, não tenha havido normas escritas. Houve sim, especialmente na forma de statutes, de que são exemplos a famosa Magna Charta, de 1215, do rei João I, e a produção normativa mais intensa do rei Eduardo I (1272-1307). Na Baixa Idade Média, o Parlamento deixou de ser mera instância consultiva para passar a elaborar o Statutory Law10.

A distinção entre a família do common law e a do civil law, todavia, tem de ser vista cum grano salis, ainda mais levando em conta tanto a aproximação com os saxões ao serem conquistados à força pelo exército normando11 quanto as outras interações ocorridas ao longo da história.

Por fim, para aprofundamento da distinção entre o civil law e o common law, reportamo-nos a outro artigo nosso nesta coluna.

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1 As Ilhas do Canal são integradas por duas ilhas: Guernsey e Bailiado de Jersei.

2 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 353; DQ. Isle of Man. Disponível aqui; DAVIDSON, Alasdair; BARCLAY, Jon. An introduction to Guernsey's legal system. Disponível aqui. Publicado em 18 de agosto de 2015; GUERNSEYBAR. Sources of Guernsey law. Disponível aqui; UK PARLIAMENT. How autonomous are the Crown Dependencies? Publicado em 5 de julho de 2019. Para uma ambientação no sistema jurídico das Ilhas do Man, recomendamos este site oficial do governo local.

3 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. pp. 355-379.

4 LOBBAN, Michael. The common law mind in the age of Sir Edwart Coke. In: Amicus Curiae, issue 33, january/February, 2001, pp. 18-21; LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 43.

5 LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 43.

6 Expressão de Pocock (LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 43; CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 100).

7 HESPANHA, António Manuel. Dificuldades de uma História não Tradicionalista da Tradição do Direito Privado. In: SIQUEIRA, Gustavo Silveira; FONSECA, Ricardo Marcelo. História do Direito Privado. Belo Horizonte/Brasil: Arraes Editores, 2015, p. 252; LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 43.

8 LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, pp. 47-48.

9 DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 3.

10 Ut CABRAL, Gustavo César Machado. Ius Comune: uma introdução à história do direito comum do Medievo à Idade Moderna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, pp. 99-101.

11 LIMONGI, Maria Isabel. O volume I da História da Inglaterra e o debate constitucional inglês: Hume contra a ideia de lei fundamental. In: Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, v. 20, n. 2, 2015, p. 53. Para uma reflexão sobre a influência do direito romano no período anterior à conquista normanda, desde a retirada das tropas romanas e passando pela influência do cristianismo, ver: TURNER, Ralph V. Roman Law in England Before the Time os Bracton. In: Journal of British Studies, vol. 15, nº 1, 1975.