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União Europeia e o Direito das Sucessões: A adaptação de direitos reais estrangeiros - Parte I

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Atualizado em 23 de setembro de 2024 13:48

Trataremos da experiência da União Europeia no manejo da adaptação de direitos reais estrangeiro em casos envolvendo Sucessão mortis causa.

Pense, por exemplo, no problema transnacional que acontece se um francês, por testamento, deixa, sobre um imóvel, um direito real sobre um imóvel situado na Áustria, sem que este país reconheça esse tipo de direito real.

Sobre a adaptação de direitos estrangeiros, reportamos o leitor a anterior artigo nosso publicado nesta coluna, publicado em seis partes.

Embora estejamos focando os direitos reais, as reflexões estendem-se à posse. É que tanto os direitos reais quanto a posse dizem respeito ao estatuto real e são sujeitas a regras similares de direito internacional privado, a exemplo da adoção, na maior parte dos países, da lex rei sitae como elemento de conexão1.

No âmbito do direito comunitário europeu, a principal norma que lida com o tema é o art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento EU nº 650/2012), que admite a adaptação de direitos reais estrangeiros no caso de sucessão mortis causa transnacional2. Confira o preceito:

Artigo 31.º

Adaptação dos direitos reais 

No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplica´vel a` sucessa~o e a legislac¸a~o do Estado-Membro em que o direito e´ invocado na~o reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necessa´rio e na medida do possi´vel, ser adaptado ao direito real equivalente mais pro´ximo que esteja previsto na legislac¸a~o desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questa~o e os efeitos que lhe esta~o associados. 

O referido dispositivo comunitário cuida de hipóteses em que a lex successionis (o ordenamento do país de origem) outorga a um sucessor um direito real desconhecido pela lex rei sitae (o ordenamento do país de destino). Em outras palavras, lida com conflitos entre o estatuto sucessório e o estatuto real3.

O sistema da sucessão unitária (aquele assentado no princípio da unidade da lei sucessória e que representa um modelo monista de lei sucessória4) pode gerar esses conflitos entre o estatuto sucessório e o estatuto real: basta que a lei sucessória outorgue um direito real desconhecido da lei do país do local do bem5.

No caso do sistema do fracionamento da sucessão, esse risco seria menor: o direito da situação do bem disciplinará tanto os direitos reais quanto a sucessão mortis causa dos bens. Se, por exemplo, o falecido deixou bens em cinco países, haverá cinco leis disciplinando a sucessão mortis: uma de cada país, relativamente aos bens nele situados.

Como o Regulamento Europeu das Sucessões adotou o sistema da sucessão unitária, ele disponibilizou uma ferramenta para enfrentar esses problemas de conflito entre o estatuto real e o estatuto sucessório: a adaptação de direitos reais estrangeiros. Trata-se de uma forma de coordenar sistemas jurídicas de diferentes países diante do conflito entre o estatuto sucessório e o estatuto real6.

À luz do art. 31.º do supracitado normativo europeu das sucessões, o direito real do país de origem deve ser adaptado a um direito real equivalente mais próximo previsto na lex rei sitae, observados os interesses das partes.

Esse dispositivo é fundamental para conciliar conflitos potenciais entre o estatuto real e o estatuto sucessório. É essencial para a internacionalização.

A relevância da figura para a harmonização internacional do direito certamente justifica o fato de que o supracitado dispositivo foi fruto de sugestão de um dos institutos mais importantes do mundo em internacionalização do direito: o Max Planck Institute. Não havia similar dispositivo no projeto inicial que gerou o Regulamento Europeu das Sucessões7.

O preceito comunitário acima foca duas espécies de adaptação lato sensu: a substituição e a transposição. Não versa, propriamente, sobre a adaptação stricto sensu8. Já tratamos dessas espécies de adaptação de direito estrangeiro em anterior artigo publicado nesta coluna. Seja como for, neste artigo, trataremos do tema como uma adaptação lato sensu, pois foi essa a acepção adotada pelo dispositivo em pauta.

Na próxima Coluna, a daqui 15 dias, prosseguiremos cuidando do tema, expondo problemas práticos.

__________

1 LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito Internacional Privado, volume I: introdução e direito de conflitos - Parte Geral. Lisboa/Portugal: AAFDL, 2019, p. 538.

2 Sucessão mortis causa transnacional dá-se quando há elementos de direito internacional privado na sucessão mortis causa para lidar com problemas envolvendo os atos notariais (PASQUALIS, Paolo. The movement of notarial instruments in the European legal area. Ano da publicação: 2010 (Disponível aqui).

3 Esse conflito dá-se quando a lei aplicável ao estatuto sucessório diverge da lei que recai sobre o estatuto real. Quanto ao estatuto sucessório, o elemento de conexão costuma oscilar entre a lei da residência habitual (lex domicilii) ou a lei da nacionalidade (lex patriae), conforme se vê no Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012)[3]. Já em relação ao estatuto real, o elemento de conexão sói ser o local do bem (lex rei sitae). Portanto, no caso de sucessões envolvendo bens fora do domicílio ou do país da nacionalidade, o conflito supracitado é potencial.

4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 136.

5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 126.

6 SUÁREZ, Isabel Rodríguez-Uría. La ley aplicable a las sucesiones mortis causa en el Reglamento (EU) 650/2012. In: Revista para el análisis del derecho - InDret,  Barcelona, nº 2, abril 2013, p. 47.

7 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 134.

8 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 153s.