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Numerus clausus e direitos reais: Origem, histórico e experiência da Holanda, do Reino Unido e de outros países - Parte II

terça-feira, 11 de junho de 2024

Atualizado em 10 de junho de 2024 13:00

Em continuação à coluna anterior, seguimos a tratar dos numerus clausus.

De modo mais recente, é certo que, a partir da década de 1990, a expressão numerus clausus ou sistema fechado de direitos reais assumiram títulos e conteúdos de inúmeros trabalhos acadêmicos.

O princípio do numerus clausus está associado ao modelo jurídico-real de cada país. Por exemplo, para Antonio Huerta Trólez, Alemanha, Áustria e Suíça adotam o princípio do numerus clausus por conta seu modelo de aquisição e transmissão de direitos reais. Nesse modelo, o negócio jurídico causal não transfere o direito real, mas apenas o negócio jurídico real. A autoridade registral não qualifica o negócio jurídico causal, mas sim o negócio jurídico real, dada a autonomia deste em relação àquele1.

A base das discussões acerca do numerus clausus está na distinção entre ius in rem e ius in personam.

Historicamente, direitos in rem distinguem-se dos direitos in personam, segundo tradição romana. Os primeiros referem-se a uma relação jurídica com uma coisa física e oponível contra terceiros. Já os direitos in personam envolvem relação jurídica entre as pessoas e é oponível inter partes.

Essa distinção é a base dos debates sobre direitos de propriedade nos sistemas jurídicos em geral, com inclusão do inglês2.

José Luiz Lacruz Berdejo3 destaca que o conceito de direitos reais é fruto de uma generalização feita pelos juristas. Estes observaram que, ao longo da história, foram surgindo formas de dominação do homem sobre a coisa, como a propriedade, o usufruto, a hipoteca e outras figuras. Identificou traços comuns entre elas, aptos a aglutiná-las sob um mesmo conceito: o de direitos reais.

Em Roma, já havia variações dessas generalizações. O foco, porém, não eram os direitos subjetivos, e sim as ações. Os romanos do período clássico contrapunham a actio in rem à actio in personam, mas não desenvolveram teoricamente a ideia de direitos reais. Não é viável listar direitos reais em Roma4.

Se, porém, associarmos os direitos reais aos que, em Roma, eram respaldados pelas ações in rem ou pela vindicatio, seria viável apontar, como "direitos reais" romanos, os seguintes itens: direito de propriedade, direito de superfície (como uma forma especial de propriedade), servidão e, por acréscimo da tradição justiniana, o usufruto5. Eduardo C. Silveira Marchi defende, ainda, a existência de propriedade horizontal no direito romano desde o período clássico6. Enfim, sob essa ótica, em Roma, ao lado da propriedade, havia poucos direitos reais7.

Foi só na Idade Média que os juristas do direito comum (ius commune) começaram a focar os direitos subjetivos, e não as ações. E, por isso, desenvolveram os conceitos de ius in personam e ius in rem e, em consequência, desenharam as primeiras linhas fronteiriças entre os direitos pessoais (obrigacionais) e os direitos das coisas.

Robert Stevens (2011, pp. 83-84) dá exemplo com base no direito inglês, envolvendo responsabilidade civil. Na Inglaterra, quando se trata de direitos in rem, o titular tem direito oponível a terceiros, inclusive o direito à indenização (responsabilidade civil). No caso de ius in personam, o direito só é oponível contra a parte, e não contra terceiros.

Suponha que uma companhia ferroviária adquira o direito de utilizar uma ponte para travessia de vagões mediante um lease. Trata-se de um direito in rem à luz do direito inglês. Suponha que um terceiro negligente, com seu caminhão, cause um dano à ponte e, assim, inviabilize o seu uso pela companhia ferroviária. Nesse caso, o direito de arrendatária (leaseholder) foi violado por um terceiro. Como o referido direito é oponível erga omnes, o terceiro terá o dever de indenizar a companhia ferroviária: esta, pois, pode pleitear indenização diretamente contra o caminhoneiro negligente.

Situação diferente seria se a companhia ferroviária tivesse adquirido o direito de usar a ponte por meio de uma licença (contractual licence) negociada com o proprietário. A contractual licence não é direito in rem na Inglaterra, e sim direito in personam. O direito da companhia (licensee) só seria oponível contra o dono da ponte. Se, pois, o caminhoneiro negligente causar dano à ponte, a companhia férrea não poderá pleitear indenização contra ele por falta de direito oponível a ele.

Nesse exemplo, a companhia só poderia pleitear indenização do dono da ponte. Este, a seu turno, por ser o titular da propriedade (que é um direito in rem), poderá reivindicar indenização contra o caminhoneiro relapso, mas essa indenização ater-se-á aos danos sofridos com a ponte e, portanto, não abrangerá os direitos da companhia ferroviária ou de outros licenciados (licensees). Enfatize-se que esse regime de responsabilidade civil vigora na Inglaterra, porque o direito inglês não adota a concepção germânica de transferred loss.

Alerte-se que, no Brasil, a solução seria diferente, pois o dever de indenizar não seria vinculado propriamente à natureza jurídica do vínculo da vítima com a coisa. Quem causa dano a outrem tem de indenizar. O motorista relapso causou dano à companhia. Em último caso, poder-se-ia invocar a doutrina do terceiro cúmplice para fortalecer o dever de indenizar contra o motorista negligente. Igualmente o dono da ponte poderia pedir indenização contra o caminhoneiro pelos prejuízos sofridos com a ruptura dos contratos de "licença".

Retornando ao exemplo acima sob a perspectiva do direito inglês. No common law lease, o arrendatário (leasee) tem o exclusivo controle de coisa arrendada. Há um direito in rem, oponível erga omnes. É diferente do licence, por meio do qual o dono da coisa apenas concede ao licenciado (licensee) um simples privilégio em relação ao próprio dono para usar a coisa. Cuida-se de um ius in personam.

Como se vê, nos sistemas jurídicos - com inclusão do inglês -, é preciso definir as categorias de direitos que se configuram como ius in rem no sentido romano e os que constituem ius personam também no sentido romano.

No caso do ius in rem, como ele vincula terceiros, há necessidade de lei. Deixar as partes criarem livremente direitos in rem geraria insegurança jurídica a terceiros. Estes poderiam ser incapazes de descobrir o conteúdo do direito, como os seus deveres e seus direitos em relação à coisa.

A criação de direitos in rem livremente pelas partes poderia criar restrições excessivos ou até mesmo incompreensíveis nos bens, afastando-os do tráfego jurídico pelo receio de terceiros em adquiri-lo. Basta imaginar o impacto bruto e deletério na economia se todos os imóveis do país estivessem onerados por direitos in rem de difícil compreensão ou de excessivas restrições.

Além disso, à luz do princípio da legalidade, terceiros só podem ser obrigados a algo por lei ou por pacto expresso do qual eles sejam partes.

Enfim, os sistemas jurídicos, com inclusão do inglês, possuem, ainda que em diferentes intensidades, um regime de numerus clausus de direitos in rem no sentido puro romano8.

E, para definir se um direito é in rem ou in personam, é irrelevante o nomen iuris. O que importa é o conteúdo.

Continuaremos a tratar do tema na próxima coluna.

__________

1 TRÓLEZ, Antonio Huerta. El Derecho Real. El Derecho de Propiedad. Adquisición: el título y el modo. Pérdida de Dominio. In: PÉREZ, Manuel Ángel Rueda (coord.). Instituciones de Derecho Privado. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2017, p. 88.

2 Robert Stevens trata disso.

3 BERDEJO, José Luis LaCruz. Elementos de Derecho Civil III: derechos reales, Volumen Primeiro. Madrid: Dykinson, 2008, p. 1.

4 BERDEJO, José Luis LaCruz. Elementos de Derecho Civil III: derechos reales, Volumen Primeiro. Madrid: Dykinson, 2008, pp. 1 e 159.

5 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 111.

6 MARCHI, Eduardo Cesar Silveira Vita. A propriedade horizontal no Direito Romano. São Paulo/Brasil: Quartier Latin, 2002, p. 113.

7 DÍEZ-Picazo, Luis. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial III: Las relaciones jurídico-reales, el Registro de la Propiedade, la posesión. Navarra/Espanha: Editorial Aranzadi, 2008, p. 135.

8 Robert Stevens trata disso.