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Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado - Parte V (espécies)

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Atualizado às 07:32

Na Coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos tratar agora da substituição, outra espécie de adaptação lato sensu.

6. SUBSTITUIÇÃO

A substituição lida com problemas de equivalência de institutos jurídico-materiais dentro de uma relação de prejudicialidade1.

Cuida de definir se o instituto da lei de um país pode ou não servir de condição prejudicial (ex.: filiação) para um efeito produzido por uma questão principal (ex.: sucessão mortis causa) da ordem jurídica de um outro país pressupondo figuras distintas.

A substituição destina-se a definir se o instituto de uma lei pode ser considerado equivalente ao instituto que, à luz da lei de outro país, é questão prejudicial à resolução de uma questão principal.

A substituição visa a responder a esta pergunta: o instituto da lei de um país é ou não equivalente à condição jurídica referida pela lei de outro país2?

Há quem defenda que a substituição só se aplica quando se trata de uma questão prejudicial para a lex fori3. Afonso Patrão, com razão, discorda dessa necessidade de se envolver a lex fori4. Basta que haja uma relação de prejudicialidade entre questões de leis diferentes, sem que necessariamente uma dessas leis seja o do foro. Ex.: sucessão mortis causa (questão principal) disciplinada por uma lei e filiação (questão prejudicial) disciplinada por outra lei. Não necessariamente essas leis envolvidas são as do foro.

A substituição exigirá do jurista enfrentar um problema de interpretação das regras materiais envolvidas.

Citamos um exemplo: o caso da sucessão mortis causa de um brasileiro residente no Brasil com dois filhos adotivos: um adotado de acordo com a lei brasileira e que mora no Brasil; e outro adotado à luz da lei da Arábia Saudita e que mora nessa nação do Golfo Pérsico.

A lex successionis é a lei brasileira. Ela disciplinará a questão principal: a sucessão mortis causa. A lei brasileira reconhece os filhos adotivos como herdeiros.

O problema é que, para resolver a questão principal, é necessário resolver uma questão prejudicial: o que é filho adotivo?

A rigor, a lei brasileira (lex successionis), ao estabelecer que filho adotivo é herdeiro, parte da premissa de que o instituto da adoção é igual ou semelhante ao da lei brasileira.

Em relação ao filho adotivo brasileiro, não há complicações: ele é herdeiro. O instituto da adoção é dado pela própria lei brasileira.

No tocante, porém, ao filho saudita, teremos um problema: não há propriamente um conceito de adoção na lei árabe. Há, sim, uma figura parecida: a kafâla, a qual gera consequências jurídicas diferentes do instituto de adoção conhecido dos países ocidentais em geral5.

Daí surge a pergunta: é ou não viável considerar a kafâla da lei saudita equivalente à adoção da lei brasileira para efeito sucessório? A resposta a essa pergunta é decisiva para definir se o filho adotivo saudita é ou não herdeiro.

Adoção e kafâla são figuras diferentes. É preciso definir se elas são ou não equivalentes para efeito de definir quem é herdeiro. Em outras palavras, é fundamental estabelecer se ambas as figuras são substituíveis para efeito da questão principal: a sucessão mortis causa.

A substituição é técnica do direito internacional privado destinada a avaliar essa equivalência entre institutos de leis de países diferentes tidos como questão prejudiciais para a aplicação de uma lei.

Para definir se os institutos são ou não equivalentes, há necessidade de averiguar a função de cada um deles, segundo Hans Lewald6. Tal exigirá um aprofundamento do jurista no estudo de cada figura7.

Não se pode confundir o problema da substituição com o da questão prévia em Direito Internacional Privado, apesar de haver quem confunda os termos8. Substituição consiste em averiguar a equivalência entre institutos jurídico-materiais como uma questão prejudicial. Já a questão prévia consiste em escolher a lei competente para regular uma questão prejudicial (ex.: a filiação).

Nesse ponto, um julgado que merece citação é este, da Cour de Cassation (França, de 1931): o caso Ponnoucannamalle vs Nadimoutoupolle9.

É mais adequado defender que, nesse caso, cuidou-se de uma questão prévia (definição qual lei regularia a validade de uma adoção), e não de uma substituição.

Em suma, nesse precedente, discutiu-se se a adoção validamente feita à luz do direito hindu deveria ou não ser admitida diante do direito francês (que invalidaria essa adoção). Essa questão era prejudicial para o desate da questão principal: a definição dos herdeiros na sucessão mortis causa.

De modo mais específico, o falecido tinha vários filhos legítimos e, mesmo assim, adotou outro, indiano, de acordo com o direito indiano.

A lei francesa, que era aplicável à sucessão mortis causa dos imóveis deixados pelo falecido10, proibia a adoção quando o adotante já possuísse filhos legítimos. Foi o caso concreto. Assim, à luz da lei francesa, a adoção do filho indiano foi inválida e, por consequência, esse filho não poderia ser herdeiro.

Já a lei indiana - sob a qual foi feita a adoção - não continha essa restrição. A adoção era válida à luz dessa lei.

Como se vê, para definir a questão principal (sucessão mortis causa), é necessário definir uma questão prévia: qual a lei regerá a validade da adoção11, a francesa ou a indiana.

A Cour de Cassation entendeu que deve prevalecer a lei francesa para a questão prévia: a adoção é nula e, por consequência, não há direito sucessório12.

Esse julgado representa um problema de questão prévia no Direito Internacional Privado, e não propriamente de substituição. Não se discutiu, propriamente, a equivalência jurídico-material de institutos para efeito de definir uma questão prejudicial.

Na próxima coluna, cuidaremos da transposição, outra espécie de adaptação lato sensu.

_____________

1 JAYME, Erik. La substitution et le principe d'e'quivalence en droit international prive'. In: Annuaire de l'Institut de droit international - Session de Santiago du Chili, volume 72, p. 2007; PAREDES PÉREZ, José Ignacio. Alcance y contenido de la noción de equivalência em el derecho internacional privado. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 91-126; ROZAS, José Carlos Fernández; LORENZO, Sixto Sánchez. Derecho Internacional Privado. Navarra/Espanha: Editorial Arannzadi, 2018; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147.

2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148.

GODERCHOT-PATRIS, Sara. Retour sur la notion d'équivalence au service de la coordination des systems. In: Revue critique de droit international privé, nº 2, 2010, pp. 271-312.

4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147.

5 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição. Sobre essa espécie, deitaremos holofotes mais à frente. Para um aprofundamento sobre a kafâla, ver: CORDEIRO ÁLVAREZ, Clara Isabel. Adopción en Europa y Efectos de la Kafâla em el marco del convenio europeo de derechos humanos. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 455-489.

LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 132.

7 Jorge Alberto Silva faz interessante análise sobre o reconhecimento, no México, de casamento religioso celebrado no exterior. Considera que, à luz da lei mexicana, o casamento religioso não gera efeitos civis: no máximo, indica um concubinato "o un simple amasiato". Pondera, porém, que a jurisprudência mexicana reconhece casamentos religiosos celebrados no exterior por questões de direito internacional privado (ALBERTO SILVA, Jorge. Reconocimiento del matrimonio religioso contraído en el extranjero (perspectiva mexicana). In: Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XLVII, núm. 141, septiembre-diciembre de 2014). Assim, seria possível, pela técnica da substituição, considerar o casamento religioso celebrado em um país que o admite como equivalente ao casamento civil mexicano, se essa questão for prejudicial.

8 FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 231.

9 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148; FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 235; ALBERTO SILVA, Jorge. Aplicación de Normas Conflictuales: La Aportación del Juez. México: Editora Fontamara, 2010.

10 Os imóveis situavam-se na Cochinchina (região sul do atual Vietname), que foi uma colônia francesa até 1948.

11 Há quem trate esse julgado como não sendo um tema de questão prévia propriamente dito.

12 No caso concreto, o neto do autor da herança (o filho indiano adotivo do autor da herança) pleiteava o direito hereditário por direito de representação. É que o filho indiano adotivo era premorto ao tempo da abertura da sucessão. O neto - que foi representado por sua mãe (a Sra. Ponnoucannamalle) - pleitou sua participação da herança como herdeiro necessário (que tem direito à legítima) diante do fato de que o autor da herança havia feito um testamento excluindo-o totalmente da herança. Antes de morrer, o autor da herança havia feito um testamento excluindo totalmente esse neto da herança. O neto, a seu turno, pleitou a nulidade do testamento por este ter violado a legítima, que é assegurada aos herdeiros necessários.