Adaptação lato sensu de direitos estrangeiros com foco no Direito Privado - Parte IV (espécies)
terça-feira, 31 de outubro de 2023
Atualizado às 08:39
Na coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos expor mais exemplos práticos, além dos já mencionados.
João Baptista Machado (1960, pp. 331-332) dá outro exemplo convidativo da adaptação. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19601.
Suponha um casal alemão que tenha obtido a nacionalidade sueca. Suponha que o marido faleça. Indaga-se: o outro terá direito à meação dos bens comuns? E terá também direito sucessório?
A rigor, pelos elementos de conexão indicados por João Baptista Machado na década de 1960, a viúva nada herdaria (direito sucessório) nem nada mearia (direito de família).
É que o direito sueco haveria de disciplinar a sucessão mortis causa e, à luz dele, a viúva nada herdaria. E nada herdaria por um motivo: a lei sueca parte da premissa de que a viúva já terá sido beneficiada com a meação por regras de direito de família.
O direito alemão daria as regras de direito de família e, sob sua ótica, a viúva não teria direito algum a meação. E não teria direito à meação, porque, sob a lógica da lei alemã, a viúva seria herdeira.
Tanto na lei alemã quanto na lei sueca, a regra de meação (direito de família) está umbilicalmente conectada à regra da herança (direito sucessório) na lei alemã. Fragmentá-las no caso concreto geraria um resultado inadmissível no exemplo acima.
Não é admissível que, por regras tradicionais de conflito de normas, a viúva não tenha qualquer direito patrimonial. Trata-se de uma situação que, a nosso sentir, envolve tanto uma contradição teleológica (a finalidade das leis se contradize no caso concreto) quanto de incompatibilidade material (o conteúdo das normas não é compatível).
Cabe ao jurista corrigir esse resultado inadmissível por meio da adaptação stricto sensu.
João Baptista Machado2 fornece outro exemplo similar. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19603.
Dois ingleses, domiciliados na Inglaterra, casam-se sem uma convenção antenupcial. Posteriomente, mudam-se para a França. Morre o marido. Indaga-se: a viúva terá direito à meação (direito de família) ou direito à herança (direito sucessório)?
À luz das regras tradicionais de conflito de normas em direito internacional privado, nada tocaria à viúva.
É que a lei inglesa seria aplicada para o direito de família. Segundo ela, o regime de bens de quem casa sem pacto antenupcial é o da separação de bens. Essa regra de direito de família inglesa justifica-se pelo fato de que, futuramente, o viúvo terá direito hereditário. A opção legislativa de direito de família está umbilicalmente conectada à opção sucessória no direito inglês. Assim, no exemplo acima, a viúva não teria qualquer meação, portanto.
Acontece que a sucessão mortis causa não será disciplinada pela lei inglesa na hipótese acima, segundo as regras tradicionais de conflito de normas. Aplicar-se-á aí o direito de francês, em virtude do qual, no exemplo acima, a viúva não terá nenhum direito na sucessão mobiliária. Essa opção legislativa sucessória francesa conecta-se intrinsecamente com a regra francesa de direito de família em assegurar o direito à meação sobre os bens adquiridos ao longo do casamento.
Ao aplicar a lei inglesa apenas quanto à meação (direito de família) e a lei francesa em relação à herança (direito sucessória), chegaremos a um resultado inadmissível: a viúva, no exemplo acima, não terá direito a qualquer proveito patrimonial4.
É mister corrigir esse contrassenso lógico e essa incompatibilidade material das normas oriundas da aplicação distributiva das duas ordens jurídicas. A ferramenta adequada para tanto é adaptação stricto sensu.
Conflitos entre o estatuto real também podem atrair a adaptação stricto sensu. A lei que rege a constituição, a modificação e extinção dos direitos reais (geralmente, a lex situs) nem sempre é a mesma lei que rege o título gerador desse direito (ex.: lex sucessionis, lex contractus etc.). Ao aplicar as regras conflituais tradicionais, um resultado inadmissível ou impossível pode ser obtido, o que convocará a incidência da técnica da adaptação strcito sensu.
João Baptista Machado (1960, p. 334) cita um julgado de 1986, do tribunal de Dresden, capital do Estado5 alemão da Saxônia.
A esposa herdou um imóvel situado na Saxônia. O regime de bens era regido pela lei de outro local, da antiga região de Westfália6. Por esse regime de bens, haveria comunicação do imóvel em razão do regime de bens em favor do marido.
Acontece que a lei da Saxônica, que regrava o estatuto real, estabelecia que a transmissão do bem por força de regime de bens não pode ser automática; não é ex vi legis.
O "simples jogo de normas de conflito" desaguou em um resultado inadmissível ou impossível: o marido tem direito ao imóvel pela comunicação decorrente do regime de bens à luz da lei de Westfália, mas a efetivação desse direito (a transmissão imobiliária) encontra obstáculo na lex situs.
Para corrigir esse contrassenso teleológico e essa incompatibilidade material, o Tribunal de Dresden valeu-se de uma adequação stricto sensu: obrigou a esposa a criar uma situação jurídica próxima à do estatuto matrimonial, conferindo ao marido um direito de disposição sobre o imóvel.
Na próxima coluna, trataremos das outras espécies de adaptação lato sensu.
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1 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960.
2 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 333-334.
3 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960.
4 João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 332-333) lembra exemplo absolutamente similar nos EUA, levando em conta o quadro normativo da década de 1960. A lei do Massachussets adota o regime da separação de bens como regra, mas, em compensação, garante direito sucessório ao viúvo. Já a lei da Califórnia elege o regime da comunhão de bens como regra e, como contrapartida, nega direito hereditário ao viúvo.
5 Bundesland.
6 Integrante atualmente do Estado alemão de Renânia do Norte-Vestfália.