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Os possíveis impactos indiretos dos temas 6 e 1234 da repercussão geral na saúde suplementar: Uma análise à luz das súmulas vinculantes 60 e 61

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Atualizado em 18 de outubro de 2024 15:06

No início de outubro deste mês, o STF divulgou no DOU - Diário Oficial da União a súmula vinculante 61, que estabelece diretrizes para o Judiciário avaliar solicitações de fornecimento de medicamentos de alto custo ainda não incorporados ao SUS. Essas diretrizes seguem os critérios estabelecidos no julgamento do tema 6 de repercussão geral, no RE 566.471.

Alguns dias antes, o STF já havia publicado a súmula vinculante 60, determinando que os pedidos e análises de medicamentos na rede pública de saúde, bem como seus desdobramentos administrativos e jurisdicionais, devem observar os termos dos três acordos interfederativos homologados pelo STF, no contexto da governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243).

Inicialmente, observa-se que as referidas súmulas estabelecem diretrizes aplicáveis exclusivamente ao SUS e às relações dentro do regime jurídico administrativo. O STF decidiu retomar a publicação de súmulas vinculantes no contexto da judicialização da saúde, destacando sua importância na uniformização da interpretação das normas e na garantia de previsibilidade nas decisões judiciais.

Desde que a corte começou a transformar seus julgados em teses com repercussão geral, houve uma queda significativa na edição de súmulas vinculantes. Em 2023, foi publicada a súmula vinculante 59, sendo que a última anterior a ela datava de 2015. Embora os julgados com repercussão geral tenham efeito ultra partes e alcancem outros casos, sua aplicação se restringe ao âmbito interno do Poder Judiciário. Em contrapartida, as Súmulas Vinculantes impactam toda a administração pública, incluindo o Poder Executivo. O resgate desse instituto jurídico é fundamental, especialmente considerando sua relevância em questões como a dispensação de medicamentos de alto custo, registro de fármacos e a incorporação de tecnologias sanitárias no SUS1.

Um ponto específico que foi objeto de deliberação pelo STF tanto no tema 6 como no 1.234, e que avança em relação ao tema 106 do STJ1, é a deferência imposta aos juízes e juízas às decisões da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS sobre a incorporação de novos medicamentos ao SUS. Em regra, e excetuando eventuais vícios processuais na análise, não é permitido ao Judiciário reavaliar ou desconsiderar o mérito da recomendação da Conitec, que, assim, se torna vinculante2.

Mas em relação à saúde suplementar? As operadoras de planos de saúde serão impactadas por tais decisões? Haverá uma tendência de deferência, por parte do Poder Judiciário, às decisões da Cosaúde - Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar?

Nesse contexto, é fundamental entender como ocorrem as ações e os serviços de saúde no país. O sistema de saúde no Brasil é caracterizado por sua natureza mista, combinando um robusto sistema público, o SUS, com a participação significativa do setor privado. O Sistema Único de Saúde é responsável por oferecer acesso universal e gratuito a serviços e ações de saúde, diretamente ou através de instituições privadas, que atuam de forma complementar, priorizando a equidade e a integralidade no atendimento. Cerca de 70% da população brasileira dependem exclusivamente do SUS. No entanto, a crescente demanda por serviços de saúde, aliada ao subfinanciamento crônico, tem levado muitos brasileiros a buscarem alternativas no setor privado.

As operadoras de planos e seguros de saúde desempenham um papel relevante nesse cenário, oferecendo uma variedade de serviços que buscam atender às necessidades específicas dos beneficiários. Esses planos, que possuem regulamentação própria, através da lei 9.656/98, podem proporcionar agilidade no atendimento e acesso a uma gama mais ampla de especialidades médicas, muitas vezes reduzindo o tempo de espera em comparação ao sistema público. Assim, os planos de saúde se tornam uma opção atrativa para aqueles que desejam maior comodidade e uma abordagem mais personalizada ao cuidado de saúde.

A saúde suplementar no Brasil pode se organizar de diversas maneiras, oferecendo opções variadas para atender às necessidades dos usuários. Entre os modelos disponíveis, destacam-se a autogestão, onde empresas e entidades criam planos de saúde para seus colaboradores; a medicina de grupo, que reúne profissionais para oferecer serviços de forma integrada; as cooperativas médicas, que promovem a colaboração entre médicos para proporcionar atendimento de qualidade; e os seguros de saúde, que garantem cobertura financeira para despesas médicas. Essa diversidade permite que os beneficiários escolham a alternativa que melhor se adequa ao seu perfil e às suas necessidades de cuidado.

Assim como na saúde pública, na Saúde Suplementar enfrenta-se um aumento exponencial na judicialização. Cada vez mais, os beneficiários de planos de saúde recorrem à justiça para obter tratamentos e serviços em saúde. Isso acontece quando as operadoras se recusam a cobrir procedimentos, medicamentos ou internações que os beneficiários consideram essenciais para sua saúde, ocorrendo o denominado fenômeno da jurisdicionalização do processo decisório.3 4 5

Essa tendência reflete a busca dos usuários por garantir acesso a cuidados médicos que julgam necessários para sua saúde (integridade psicofísica) e vida digna, mas que as operadoras se negam a fornecer.6

No entanto, é importante notar que a negativa de procedimentos na saúde suplementar, especialmente aqueles já incluídos no rol da ANS e reconhecidos pela jurisprudência, tem consequências que vão além do setor privado, afetando diretamente o sistema público de saúde e os cofres públicos. Quando as operadoras negam cobertura para procedimentos que deveriam ser oferecidos, muitos beneficiários se veem forçados a recorrer ao SUS como alternativa, seja pela urgência do tratamento, pela falta de recursos para iniciar um processo judicial, ou pela demora na resolução de casos já judicializados.

Esta situação gera uma sobrecarga adicional no SUS, que já enfrenta desafios significativos de financiamento e capacidade. Consequentemente, há um aumento nos gastos do erário, pois o sistema público acaba absorvendo custos que, por direito, deveriam ser de responsabilidade das operadoras privadas. Além disso, a negativa de cobertura pelas operadoras também pode levar a um aumento na judicialização contra o próprio SUS, com pacientes entrando com ações contra o Estado exigindo tratamentos que foram negados pelos planos de saúde.

É importante refletir que as operadoras de planos de saúde atuam em um mercado altamente regulado e com riscos bem conhecidos. O setor de saúde suplementar no Brasil é conhecido por sua alta lucratividade, e as operadoras entram no mercado cientes das regulamentações e obrigações legais.

No entanto, parece haver uma relutância em assumir esses riscos inerentes ao negócio. A negativa de procedimentos já incluídos no rol da ANS sugere uma tentativa de maximizar lucros às custas da saúde dos beneficiários, uma postura que pode ser vista como uma forma de transferir riscos e custos para os beneficiários e para o sistema público de saúde. A implementação de mecanismos mais eficientes de ressarcimento ao SUS por parte das operadoras e a revisão dos critérios de solvência e reservas técnicas das operadoras poderiam ajudar a garantir que elas possam cumprir suas obrigações.7

A Conitec desempenha um papel crucial na avaliação e incorporação de novos medicamentos ao SUS, garantindo que as decisões sejam baseadas em evidências científicas e na eficiência dos tratamentos. Sua função de estabelecer critérios rigorosos é fundamental para a sustentabilidade do sistema de saúde pública e para a proteção dos recursos financeiros.

Já na Saúde Suplementar, a avaliação de tecnologias em saúde (ATS) que é composta pelos membros da CAMSS - Câmara de Saúde Suplementar e tem por finalidade assessorar a ANS na definição da amplitude das coberturas assistenciais dos planos de saúde.

A discussão sobre a autonomia técnica que um governo, ou uma operadora de plano de saúde, deve adotar em contraste com a crescente exigência de integrar novas tecnologias na área da saúde se revela, cada vez mais, um desafio persistente. Como podemos quantificar o valor de uma vida saudável? Até que ponto, enquanto sociedade, estamos dispostos a investir em benefícios para a saúde? Qual deve ser o critério que determina esse benefício e ele varia conforme a etapa da vida ou a condição de saúde considerada?

Em novembro de 2022, a Conitec definiu os limites de custo-efetividade para a inclusão de tratamentos. Com isso, foi sugerido o uso de um valor-referência de R$ 40 mil por ano de vida ajustado pela qualidade (QALY), correspondente a 1 PIB per capita. Para situações específicas, como doenças raras, a recomendação foi de considerar três vezes esse valor-referência8.

Já na saúde suplementar, verifica-se que as discussões sobre parâmetros de avaliação econômica no processo de atualização do Rol ainda estão engatinhando. Isso porque o cenário da saúde suplementar é bem mais complexo, pois envolve aspectos como a fragmentação do setor, a diversidade de fontes pagadoras, a dificuldade de negociação de preço, o modelo baseado no mutualismo, a falta de protocolos clínicos padronizados e falta dos debates sobre equidade.

Como tratar uma cooperativa de cinco mil vidas, e uma operadora com dois milhões de vidas, com os mesmos critérios? Por certo não podemos desconsiderar o impacto orçamentário e tratar como uma consequência que os contratantes têm que cobrir. Mas também não se pode esquecer que estamos tratando, em regra, de relações jurídicas de direito privado.

Apesar do alto custo das tecnologias sanitárias e da necessidade de uma avaliação econômica criteriosa, é fundamental destacar que, ao contrário SUS, as operadoras oe planos de saúde, exceto os planos de autogestão, funcionam sob um regime jurídico de direito privado e têm como objetivo primordial a maximização do lucro. Essa lógica de mercado impõe que, em busca de resultados financeiros, as operadoras podem negligenciar a qualidade do atendimento e o acesso dos usuários aos tratamentos necessários. Não se pode aceitar que a saúde dos indivíduos seja comprometida em nome da distribuição de lucros para acionistas; garantir o acesso à saúde deve sempre prevalecer sobre a busca pelo lucro, refletindo uma responsabilidade social (função social do contrato e deveres anexos) que é negligenciada por muitas dessas instituições.

A recente lei 14.454/22, que estabelece que o Rol da ANS é meramente exemplificativo, surgiu como efeito backlash causado por uma decisão anterior do STJ, no EREsp 1.886.929, que restringia o acesso a medicamentos e insumos necessários, e que não estivessem devidamente incorporados nas listagens do referido órgão regulador, salvo em situações excepcionais.

Com essa nova regulamentação, as operadoras de planos de saúde são agora obrigadas a fornecer tratamentos que tenham respaldo em evidências científicas, ampliando assim o acesso a terapias inovadoras e essenciais, mesmo que ainda não estejam no rol da ANS. Além disso, as tecnologias incorporadas pela Conitec devem ser automaticamente analisadas pela ANS, garantindo que, à medida que novas evidências e tecnologias sejam reconhecidas, também sejam incluídas no rol de coberturas obrigatórias. Essa mudança representa um avanço significativo na defesa dos direitos dos beneficiários, promovendo uma saúde suplementar mais justa e equitativa.

Verifica-se, porquanto, que a deferência conferida pelo STF às decisões da Conitec, conforme registrado nas Súmulas Vinculantes 60 e 61, ainda encontra limitações para aplicação na judicialização da saúde suplementar. O aprimoramento do setor deverá perpassar por iniciativas como o processo de pesquisa acoplado à incorporação (para avaliar se a tecnologia em saúde entrega o que foi prometido); acordos de risco compartilhados justos e transparentes; regras de excepcionalidades para segmentos específicos (oncologia, doenças raras e ultrarraras, por exemplo). E não podemos nos esquecer da necessidade de repensar a regulação de preços de tecnologias sanitárias no Brasil.

Trata-se de demanda premente que a CMED Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos aprimore seus mecanismos de precificação, especialmente diante do cenário atual em que tecnologias sanitárias milionárias têm se tornado cada vez mais comuns. A falta de transparência nas práticas de precificação não só compromete a sustentabilidade do sistema de saúde público e suplementar, mas também facilita abusos por parte da indústria farmacêutica, que pode explorar lacunas regulatórias para aumentar os preços de forma desproporcional.

Ao estabelecer critérios claros e justos para a avaliação de preços, a CMED poderia garantir que os custos dos medicamentos sejam mais acessíveis e que os recursos do sistema de saúde sejam utilizados de maneira eficiente, promovendo um equilíbrio entre inovação e justiça social. A transparência nesse processo é essencial para que pacientes, profissionais de saúde e gestores possam tomar decisões informadas, assegurando que o acesso a tratamentos essenciais não seja comprometido por interesses econômicos desmedidos.

Ou como asseverou Paul Farmer, aclamado antropólogo e médico estadunidense, e cofundador da organização Partners In Health: "A saúde não é um produto para ser vendido, mas um direito fundamental de cada ser humano." Essa afirmação ressalta a importância de priorizar, sempre e invariavelmente, o bem-estar das pessoas acima de considerações meramente financeiras.

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1 FILHO, João Trindade Cavalcante. As súmulas vinculantes ainda respiram (por aparelhos). In: Portal Consultor Jurídico, de 01 de outubro de 2024.

2 SANTOS, Bruno Henrique Silva. Temas 6 e 1.234 do STF, Conitec e Poder Judiciário - A dança do quadrado. In: Migalhas, de 08 de outubro de 2024. Disponível aqui.

3 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: PERFIL DAS DEMANDAS, CAUSAS E PROPOSTAS DE SOLUÇÃO. Instituto De Ensino E Pesquisa - INSPER. Disponível aqui.  Acesso em 14 de outubro de 2024.

4 Ferraz OLM. Health as a human right: the politics and judicialisation of health in Brazil. New York: Cambridge University Press; 2020.

5 AGÊNCIA BRASIL. SUS tem mais de R$ 2,9 bilhões a receber das operadoras de planos de saúde. 2018. Disponível aqui. Acesso em: acesso em 14 de outubro de 2024.

6 COSTA, Fabricio Veiga; MOTTA, Ivan Dias da; ARAÚJO, Dalvaney Aparecida de. Judicialização da saúde: a dignidade da pessoa humana e a atuação do STFno caso dos medicamentos de alto custo. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, 3, 2017 p. 844-874

7 SEBASTIANI, Rafael Teixeira, & OLIVEIRA, Rogério Nogueira de (2024). O fenômeno da judicialização da saúde no Brasil: análise pautada nos dados do CNJ existentes entre 2008 e 2023. CONTRIBUCIONES A LAS CIENCIAS SOCIALES, 17(5), e6707. https://doi.org/10.55905/revconv.17n.5-064

8 LIMA, Jordão Horácio da Silva Lima. Quanto custa uma vida? Reflexões quanto à adoção de limiares de custo-efetividade pelo SUS. In: Migalhas, 13 de junho de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 out 2024.

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1 A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.