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Temas 6 e 1.234 do STF, Conitec e Poder Judiciário - A dança do quadrado

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Atualizado em 4 de outubro de 2024 14:50

Os julgamentos dos Temas de Repercussão Geral 6 (RE 566.471) e 1.234 (RE 1.366.243) pelo STF foram dois marcos históricos na judicialização da saúde no Brasil. No tema 6, o STF estabeleceu requisitos para a concessão judicial de medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS.

Já no tema 1.234, que originariamente tratava da legitimidade passiva da União nas ações em que se buscam medicamentos não padronizados nas políticas públicas, o STF ampliou consideravelmente a questão afetada para julgamento para, mediante a instauração de amplo procedimento autocompositivo, tratar de uma série de pontos relacionados à judicialização da saúde em si.

Neste momento, chamo o leitor para refletir sobre um ponto específico que foi objeto de deliberação pelo STF tanto no tema 6 como no 1.234, que é a deferência imposta aos juízes e juízas às decisões da Conitec sobre a incorporação de novos medicamentos ao SUS.

Na tese do tema 6, o STF consignou o seguinte:

"(...) 3. Sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do art. 489, § 1º, incisos V e VI, e art. 927, inciso III, § 1º, ambos do Código de Processo Civil, o Poder Judiciário, ao apreciar pedido de concessão de medicamentos não incorporados, deverá obrigatoriamente: (a) analisar o ato administrativo comissivo ou omissivo de não incorporação pela Conitec ou da negativa de fornecimento da via administrativa, à luz das circunstâncias do caso concreto e da legislação de regência, especialmente a política pública do SUS, não sendo possível a incursão no mérito do ato administrativo."

Já no tema 1.234, consta na tese firmada que:

"(...) 4.1) No exercício do controle de legalidade, o Poder Judiciário não pode substituir a vontade do administrador, mas tão somente verificar se o ato administrativo específico daquele caso concreto está em conformidade com as balizas presentes na Constituição Federal, na legislação de regência e na política pública no SUS. 4.2) A análise jurisdicional do ato administrativo que indefere o fornecimento de medicamento não incorporado restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato de não incorporação e do ato administrativo questionado, à luz do controle de legalidade e da teoria dos motivos determinantes, não sendo possível incursão no mérito administrativo, ressalvada a cognição do ato administrativo discricionário, o qual se vincula à existência, à veracidade e à legitimidade dos motivos apontados como fundamentos para a sua adoção, a sujeitar o ente público aos seus termos."

Como se pode perceber, o STF adotou uma posição rígida em relação à necessidade de observância, pelo Poder Judiciário, do mérito das decisões da Conitec que recomendam a não incorporação de um medicamento ao SUS. Como regra, e ressalvando vícios procedimentais no processo de análise, não é possível uma reavaliação judicial ou a desconsideração do mérito da recomendação da Conitec, que passa a ser, então, vinculante.

Concordando-se ou não com o STF, é compreensível a decisão de vincular os juízes às recomendações da Conitec. O que se tem observado em grande parte das decisões judiciais em processos de saúde é a desconsideração das análises da Conitec, que ora sequer são verificadas, ora são mencionadas, mas deixadas de lado em favor de prescrições ou relatórios médicos individuais, ou então de notas técnicas - também individuais - produzidas por Natjus - Núcleos de Apoio Técnico. Sobre isso, o relatório "Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução"1, realizado pelo Insper em parceria com o CNJ, informa o seguinte:

"Os dados ora analisados indicam que em todos os estados e instâncias os juízes referem-se mais aos NATs do que à Conitec em suas decisões. O fato de não citarem a Conitec tanto quanto os NATs pode indicar um menor conhecimento dos magistrados sobre a política de incorporação de tecnologias, ou, também, uma confiança maior de juízes na competência dos técnicos do NAT para discutir a política de saúde. Nesse sentido, os magistrados prefeririam referir-se ao NAT do que apostar em seus próprios conhecimentos sobre o SUS e citar a Conitec.

(...)

Mesmo em São Paulo, estado que ainda registra os maiores índices de casos novos ajuizados todos os anos, apenas 72 das mais de 80 mil decisões analisadas fazem referência à Comissão. O Tribunal que mais faz referência à Conitec é o TRF4, com 359 ou 2,28% de suas decisões. Isso não significa que pertencer à justiça federal implica maior probabilidade de os casos fazerem referência tanto aos NATs quanto à Conitec."

O estudo foi publicado em 2019. Desde então, provavelmente o índice de adesão do Poder Judiciário às recomendações da Conitec tenha aumentado, mas certamente ainda não atingiu um patamar satisfatório de deferência que se espera em favor de um órgão altamente qualificado para avaliar a incorporação de tecnologias de saúde ao SUS.

A importância da adesão judicial às análises e decisões técnicas da Administração Pública na definição da política de assistência farmacêutica é inquestionável. O Poder Executivo - especialmente por meio da Conitec - é a instância com competência, legitimidade e capacidade técnica para avaliar as novas tecnologias em saúde passíveis de incorporação ao SUS, devendo as suas decisões ser respeitadas pelo Poder Judiciário, que normalmente atua em caráter pontual nas demandas de saúde, sem uma perspectiva global e necessária para o aperfeiçoamento e a sustentabilidade do SUS.

Por essas razões, havendo decisão expressa do Ministério da Saúde, após a devida avaliação da Conitec, pela não incorporação de um determinado medicamento ao SUS, não cabe, via de regra, ao Poder Judiciário imiscuir-se em nova análise e desconsiderar a decisão do gestor e do órgão técnico capacitado para avaliação de tecnologias em saúde. Foi nesse sentido que o STF decidiu nos já referidos temas 6 e 1.234 de repercussão geral.

Apesar de tudo isso, é preciso que sejam assegurados meios de, excepcionalmente, questionar e até mesmo revisar as recomendações da Conitec judicialmente.

Ninguém, por mais qualificado que seja, é insuscetível a erros. Por isso, também a Conitec pode errar e isso não é nenhum demérito dela. Já tive a oportunidade de tecer algumas considerações críticas à atuação da Conitec, por exemplo, nas avaliações de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME2. Isso pelo fato de aquela Comissão ter alterado seu entendimento de forma sucessiva e em um curto espaço de tempo, sem que as razões para a mudança tivessem ficado suficientemente claras.

Pode ser citada em acréscimo, também, a recomendação da Conitec pela não incorporação ao SUS do metilfenidato e da lisdexanfetamina para o tratamento de TDAH em crianças (Relatório 601). A conclusão, que foi fundamentada na ausência de evidências científicas consistentes acerca da efetividade do tratamento, é contrária à de várias e reputadas agências estrangeiras de avaliação de tecnologias em saúde, tais como o Nice (Inglaterra), o CADTH (Canadá), o SMS (Escócia) e o PBAC (Austrália).

Isso constou no próprio relatório da Conitec. Além disso, o PCDT do TDAH (Portaria Conjunta SAES/SCTIE 14, de 29 de julho de 2022) não prevê o uso de nenhum medicamento para o tratamento da doença nas crianças. Por outro lado, é fato notório que o metilfenidato é largamente utilizado na prática médica. Trata-se, então, de uma situação em que a recomendação da Conitec poderia ao menos ser questionada judicialmente, ainda que fosse ao final mantida.

Certamente os eventuais equívocos da Conitec na avaliação das evidências científicas e da relação de custo x efetividade das tecnologias que se propõem a ser incorporadas ao SUS serão muito menores do que aqueles que podem ser cometidos pelo Poder Judiciário, que não tem expertise nem atribuição originária para isso. Os erros assumidos com a deferência às decisões da Conitec, portanto, serão seguramente menores do que aqueles perpetrados com uma reavaliação judicial indiscriminada das recomendações da comissão.

A deferência às decisões da Conitec, então, é mais custo-efetiva (apropriando-se da terminologia das avaliações de tecnologias em saúde) do que um poder de reavaliação amplo do Judiciário, mesmo considerando os possíveis equívocos da Conitec. Assumir que algumas avaliações podem estar equivocadas é um remédio amargo, mas melhor do que a alternativa de permitir ampla investigação judicial do mérito das aludidas recomendações.

Os compositores Serafim Borges e Sharon Acioly Arcoverde sabiamente disseram, em uma de suas canções, o seguinte:

Eu disse ado-a-ado

Cada um no seu quadrado

Ado-a-ado!

Cada um no seu quadrado

De fato, não cabe ao Poder Judiciário dançar no quadrado que é da Conitec.

Mesmo diante de tudo isso, não se pode fechar completamente as portas para o questionamento judicial das recomendações da Conitec em relação àqueles poucos - mas existentes - casos em que ela pode eventualmente falhar, até porque o direito de acesso à Justiça é uma garantia constitucional.

Ninguém está imune a uma intervenção do Poder Judiciário quando pratica um ato irregular. O que é preciso é cautela na admissão dessa possibilidade na hipótese de interferência em uma política pública para perscrutar um ato de acentuada complexidade técnica ou de alta discricionariedade, como é uma avaliação da Conitec.

Os questionamentos devem ser feitos, no entanto, em ações coletivas ajuizadas especificamente com esse propósito. As ações podem ser propostas tanto pelo Ministério Público como pela Defensoria Pública ou por entidades ou associações que representam os pacientes. Isso confere legitimidade à atuação judicial em prol de toda a política pública existente, e não apenas do tratamento de determinadas pessoas nas ações individuais.

As ações coletivas, além de se voltarem para a política pública em si, permitem uma ampla e profunda instrução, com a participação de diversos atores, inclusive a título colaborativo (amicus curiae), e produzem efeitos em todo o território nacional. Nada disso ocorre nas ações individuais propostas por cada paciente.

Com as discussões sendo feitas em demandas coletivas, permite-se, de forma criteriosa, qualificada e menos intrusiva, o controle das avaliações da Conitec que possam eventualmente estar equivocadas, sem dela retirar a prerrogativa originária de avaliar novas tecnologias a serem incorporadas ao SUS.

Essa possibilidade não significa afronta ao que foi decidido pelo STF nos temas 6 e 1.234 de repercussão geral pelo simples fato de que o questionamento de uma avaliação da Conitec não seria feito em uma ação individual que busca o fornecimento de medicamento. Essa situação (ação individual em que se pretende o recebimento de um tratamento do SUS) é que foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal nos referidos julgados. 

O que se propõe aqui é eventual questionamento de uma recomendação da Conitec em uma ação coletiva específica e que teria como objeto a política pública em si. Também nas ações coletivas - é bom frisar - a deferência do Poder Judiciário às recomendações da Conitec deve ser a regra, mas assegurada a possibilidade de, mediante profunda instrução probatória, auxílio de especialistas e instituições capacitadas e colaboração do próprio Poder Executivo, eventualmente ser demonstrada uma falha na avaliação de tecnologia em saúde.

Desta maneira, assegura-se o estrito cumprimento das deliberações do STF, preserva-se a competência da Conitec como regra geral, cuida-se da sustentabilidade das políticas públicas de saúde, mas tudo isso sem afastar a possibilidade de um excepcional e criterioso controle judicial de atos da Conitec que possam não ter seguido as melhores evidências científicas ou econômicas, a serem satisfatoriamente demonstradas.

Enfim, são muito bem-vindas as decisões do STF, que impõem a necessária deferência judicial às avaliações da Conitec, mas sem impedir eventual correção por meio de ações específicas direcionadas pontualmente contra recomendações que não estejam seguindo as melhores evidências científicas ou econômicas na avaliação da incorporação de novos tratamentos ao SUS, até porque, voltando à Dança do Quadrado, no quadrado do Poder Judiciário também está a possibilidade de corrigir eventuais irregularidades praticadas inclusive no exercício das competências discricionárias ou técnicas do Poder Executivo.

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1 Disponível aqui 

2 Disponível aqui