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ADPF 442 e a constitucionalidade do aborto: o Roe v. Wade brasileiro?

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Atualizado às 07:37

Palavras iniciais

Em 22 de janeiro de 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu o caso Roe v. Wade e considerou inconstitucional leis estaduais que criminalizassem o aborto sem levar em conta o estágio da gravidez, por violação à cláusula do devido processo legal prevista na XIV emenda à Constituição, que protege o direito à privacidade dos cidadãos contra ações estatais.

Essa conformação da questão constitucional sofreu alterações em anos seguintes até que, em 24 de junho de 2022, no caso Dobbs v. Jackson, a Suprema Corte revogou os precedentes, considerando que a Constituição dos Estados Unidos não conferia um direito ao aborto. Por consequência, relegou aos Estados a autoridade para regulamentar a questão.

Mesmo com o reconhecimento, a partir de 1973, da proteção constitucional do direito ao aborto nos Estados Unidos, a questão nunca foi totalmente sedimentada na ambiência americana, como se constata a partir de diversas tentativas de revogar o precedente, empreitada bem-sucedida em 2022.

Pode-se questionar: se Roe v. Wade foi revogado, qual a relevância de rememorá-lo?

A reminiscência se faz pela importância do precedente na perspectiva constitucional. Havia, como até hoje há, uma divisão da opinião dos cidadãos americanos a respeito do aborto. Como destacou o justice Blackmun na redação da opinion of the court, no caso Roe v. Wade, as preferências filosóficas de cada um, suas experiências, a exposição individual às dificuldades da existência humana, as crenças religiosas, o posicionamento individual em relação à vida e à importância da família e seus valores, os standards morais que cada um estabelece para sua vida influenciam a tomada de posição acerca questão. Aspectos sociais também foram lembrados como tempo impacto complicador, tais como o crescimento populacional, poluição, pobreza, racismo. Ainda assim, sem a previsão expressa de permissão constitucional à prática do aborto, a Suprema Corte americana encontrou fundamento a legitimá-la.

No Brasil, o cenário não é muito diferente. A divisão de opinião a respeito do assunto é evidente. O desacordo moral sobre o aborto está presente na sociedade brasileira e suscita debates mesmo em circunstâncias nas quais a legislação infraconstitucional autoriza a interrupção da gravidez. Recentemente, o Min. Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe a utilização de uma técnica clínica (assistolia fetal) para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro1.

E em 08 de março de 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental autuada sob o nº. 442 e distribuída à Min. Rosa Weber (hoje aposentada), alegando a não recepção, pela Constituição brasileira de 1988, dos arts. 124 e 126, do Código Penal, os quais criminalizam o autoaborto e o aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante.

A indagação que se põe, então: será a ADPF 442 o Roe v. Wade brasileiro, com a descriminalização do aborto a partir de uma interpretação constitucional? O julgamento começou e conta com um voto favorável à descriminalização, o qual será aqui analisado.

Aborto, STF, e o voto da Min. Rosa Weber na ADPF 442

A ADPF 442 não será a primeira vez que o STF brasileiro enfrentará o debate sobre o aborto ou sobre aspecto que se relacione com a questão, a saber, a proteção constitucional da vida humana em desenvolvimento.

Na ADPF 542, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos arts. 124, 126, 128, I e II, todos do Código Penal. A ADI 35103 permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias e o descarte de embriões não implantados, registrando que nem todo estágio da vida humana recebe a mesma proteção. Por fim, no HC 124.3064, a 1ª Turma do STF, por maioria, deu interpretação conforme à Constituição aos arts. 124, 125 e 126, todos do Código Penal, e excluiu da sua incidência a interrupção voluntária da gravidez no primeiro trimestre da gestação.

O voto da Min. Rosa Weber na ADPF 442, proferido no plenário virtual, julgou procedente em parte o pedido para declarar a não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do Código Penal, de modo a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras doze semanas e se estrutura, quanto ao mérito, em quatro alicerces: (i) direito à vida e âmbito de proteção no constitucionalismo; (ii) direitos fundamentais das mulheres; (iii) direitos sexuais e reprodutivos como direitos fundamentais no desenho constitucional e (iv) justiça social reprodutiva como resposta institucional aos deveres fundamentais de proteção.

O primeiro dos alicerces do voto (i), pode-se dizer, adota perspectiva ontológica de análise do direito à vida, performando um exame jurídico-dogmático desse direito. Desse modo, se desenvolve a partir da delimitação da titularidade do direito fundamental à vida à luz do texto constitucional e da refutação da tese de proteção absoluta desse direito frente aos demais direitos fundamentais, além de incorporar análise sob a perspectiva do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Resolvido o problema da titularidade, o voto afasta a possibilidade de conflito entre direitos fundamentais ante a desigualdade das posições jurídicas ocupadas pelo feto/embrião e pela mulher.

A Min. Rosa Weber seguiu o raciocínio desenvolvido na ADI 3510 e na ADPF 54 ao assentar que a garantia da inviolabilidade do direito à vida se dá aos nascidos. A ausência de referência, em qualquer passagem do texto constitucional, aos não nascidos, induz à conclusão de que o constituinte não se comprometeu com a tese do direito à vida desde a concepção5.

E a refutação da tese do caráter absoluto do direito à vida frente a outros direitos fundamentais dá-se sob os argumentos de que: a) o texto constitucional não definiu o conteúdo do direito à vida ou identificou explicitamente seu âmbito de proteção; b) a estrutura lógica da norma do direito fundamental à vida exige atividade interpretativa posterior de densificação do seu âmbito de proteção, sempre sujeita ao controle da proporcionalidade da justificação por meio da interpretação constitucional; c) o direito à vida apresenta caráter policêntrico, cujos conteúdos têm a dignidade da pessoa humana como vetor normativo.

A partir do estudo do modo como a legislação infraconstitucional civil e penal tutela o direito à vida, a Ministra sustentou haver uma proteção incremental, uma gradação na importância da vida protegida como bem jurídico. Os distintos graus de reprovabilidade criminal aos atentados à vida intra e extra-uterina (evidenciados a partir das diferentes punições) e a existência de cláusulas excludentes de ilicitude tornam evidente, segundo o voto, que o Direito Penal não considera a vida como valor único e absoluto. Se absoluto fosse, qualquer interrupção da gravidez seria proibida6.  

O feto ou o embrião, nessa linha de raciocínio, não são titulares do direito fundamental à vida. Em consequência, o argumento de que a discussão a respeito do aborto contrapõe dois direitos fundamentais (do embrião/feto vs. da gestante) baseia-se em premissa equivocada; somente a mulher é titular de direitos fundamentais.

Isso não significa, registrou a Ministra, que o Estado careça de interesse legítimo em proteger a vida humana em todas suas formas. Há, pois, conflito de valores constitucionais de proteção. Todavia, o interesse do Estado cede quando em conflito com direitos fundamentais, avaliando-se a situação a partir da tutela incremental ou progressiva da vida como bem jurídico pelo que, a depender do estágio de desenvolvimento biológico do feto, diminui o interesse estatal em sua proteção, sobrepondo-se a tutela dos direitos da mulher.

E os direitos da mulher constituem o seguinte alicerce (ii) do voto da Min. Rosa Weber, que procede à reconstrução histórica da luta pela afirmação de direitos e rememora a atuação do STF em corrigir e afastar estigmas históricos, sociais, culturais, profissionais e jurídicos em relação às mulheres.

Centra o argumento na circunstância de que, se a gravidez é fenômeno biológico exclusivamente feminino e afeta de forma significativa o corpo da mulher, provocando mudanças fisiológicas e biológicas com a alteração hormonal (além dos aspectos psicológicos), afastar a histórica discriminação por questões de gênero exige reconhecer a autodeterminação feminina como elemento estruturante da dignidade das mulheres, viabilizando o exercício de sua autonomia e garantindo a saúde psico-físico-moral com a escolha da mulher pela maternidade, não sua imposição pelo Estado pela via da criminalização do aborto.  

A imposição da continuidade da gravidez representa, segundo a Ministra, uma forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas. Nesse contexto, ao Estado, por conduta negativa, compete respeitar as liberdades individuais da mulher, sua autonomia e as escolhas que faz para conformar livremente o desenvolvimento de sua personalidade.

Prossegue o voto, então, para o alicerce seguinte (iii) ao tratar dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos fundamentais de mesmo status constitucional que os direitos fundamentais individuais. Isso porque a Constituição relacionou o direito à saúde à dignidade da pessoa humana, de modo que o âmbito de proteção desse direito exige tanto prestação estatais positivas como abstenção de interferências na esfera privada dos indivíduos, preservando sua integridade física e e mental.

No campo da saúde reprodutiva, o direito ao livre planejamento familiar previsto no art. 229, §7º, da Constituição, assegura a não coerção estatal na decisão acerca da maternidade, o que encontra respaldo também no direito internacional dos direitos humanos voltados à proteção das mulheres.

Por fim, o último alicerce do voto (iv) reclama a face prestacional dos direitos reprodutivos e sexuais antes reconhecidos, uma via de promoção pela qual o Estado, na proteção do direito à saúde sexual e reprodutiva da mulher, viabilize um sistema que permita o exercício de sua autodeterminação na persecução do projeto de vida digna. Políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada são insuficientes pois há grupos em situação de vulnerabilidade sem acesso a tais políticas ou ao planejamento familiar; e mesmo métodos contraceptivos podem falhar.

Quando não se superam as barreiras de acessibilidade ou quando falham os métodos contraceptivos, o aborto clandestino revela-se como a única via efetiva para resolver a situação de gravidez indesejada, submetendo a mulher a riscos de complicações de saúde e ao peso da persecução penal. Os ônus de falhas estruturais ou de métodos contraceptivos recaem de forma excessiva e desmedida sobre a mulher. Por isso, a criminalização do aborto nas primeiras 12 semanas, na visão da Ministra, é contrária à constituição.

O voto se encerra submetendo as normas de criminalização do aborto ao teste da proporcionalidade, ao qual falham, na visão da Ministra Rosa Weber, pois a tutela criminal não se mostrou adequada para diminuir a ocorrência do aborto na sociedade; a efetivação de políticas públicas preventivas da gravidez indesejada pela realização da justiça social reprodutiva se mostra como alternativa de mais eficácia à proteção tanto da vida da mulher como do feto, ao contrário da criminalização e não há proporcionalidade em sentido estrito pois a tutela penal atual dá prevalência absoluta à vida em potencial em detrimento dos direitos da mulher.

Comentário e conclusão

O voto da Min. Rosa Weber, complexo e abrangendo argumentos de diversos matizes, era esperado, em razão da posição assumida pela julgadora no HC 124.306. Sob o ponto de vista da justificação argumentativa, entretanto, seria prudente haver fundamentação explicita sobre a demarcação temporal eleita para a descriminalização do aborto - 12 primeiras semanas da gestação. É possível inferir a razão de ser a partir das referências que a Ministra fez a decisões de outras jurisdições em quadro sintético apresentado no voto mas, em questão controvertida como essa, recomenda-se a maior clareza possível.

Note-se que no julgamento do HC 124.306, a Ministra destacou exatamente a justificação de Roe v. Wade, que adotou esse marco temporal para afastar qualquer possibilidade de intervenção estatal pois, até o fim do primeiro trimestre, a taxa de mortalidade das mulheres na prática do aborto é menor do que a taxa de mortalidade em um parto regular e a decisão deve ser apenas da mulher e seu médico. A partir desse ponto, o Estado poderia regular o aborto para salvaguardar a vida da gestante (mas não o proscrever por completo). E a partir do fim do segundo trimestre, o Estado teria legitimidade para proibir o aborto com vistas à proteção da vida em potencial pois o feto se torna viável, ou seja, potencialmente sobrevive fora do útero, ainda que com ajuda.

Já quanto à defesa da autonomia das mulheres, dos direitos sexuais e reprodutivos e da análise da adequação à regra da proporcionalidade em muito encampa o raciocínio desenvolvido pelo Min. Roberto Barroso, precisamente ao relatar o HC 124.306.

A Organização Mundial de Saúde destaca que 6 em cada 10 gravidezes indesejadas acabam em aborto induzido; embora o aborto seja um procedimento relativamente seguro se performado por pessoas com a habilidade necessária, aproximadamente 45% dão-se de forma insegura, o que pode causar mortes de mulheres, ou resultar em complicações físicas ou mentais, além de problemas sociais e econômicos tanto para a mulher, como para as comunidades e para os sistemas de saúde. Por isso, a OMS trata a falta de acesso ao aborto seguro como política pública de saúde e um problema de direitos humanos7, como menciona a Ministra em seu voto.

No mundo, segundo o Center for Reproductive Rights, uma organização global de direitos humanos que defende os direitos reprodutivos (e, dentre eles, o aborto legal), 77 países atualmente permitem o aborto por decisão da mulher (com variação entre o limite da idade gestacional); 12 países permitem o aborto com base em justificativas de natureza econômica e social; 47 países permitem quando há risco à saúde da gestante; 44 países permitem quando há risco à vida da gestante e 21 países proíbem completamente a prática8. Parece, pois, haver uma tendência rumo à liberdade de decisão da gestante.

O debate sobre o aborto envolve questões sensíveis como qual o papel do Estado na regulação de escolhas íntimas e pessoais dos cidadãos, especialmente quando o fundamento da intervenção pode ser atribuído a convicções morais e religiosas não compartilhadas por toda a coletividade e até que ponto a moralidade pode ou deve influenciar políticas públicas.

Cabe ao STF responder aos difíceis questionamentos. Prever o posicionamento dos ministros é impossível, mas, ao menos se mantida a mesma linha de raciocínio, já se espera que se unam à Min. Rosa Weber, não apenas o Min. Roberto Barroso (que pediu destaque do julgamento virtual), como também o Min. Edson Fachin, que com eles formou a maioria no julgamento do HC antes mencionado. Aguardemos.

__________

1 STF, ADPF/MC 1141, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 20/05/2024.

2 STF, ADPF 54, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 12/04/2012

3 STF, ADI 3510, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 29/05/2008

4 STF, Habeas Corpus 124.306/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 09/08/2016.

5 Em Roe v. Wade, a Suprema Corte americana também se deparou a indefinição constitucional do termo pessoa. O justice Blackmun analisou as passagens da Constituição americana com referência ao termo para concluir que a menção na XIV Emenda não incluía os não-nascidos (SUPREME COURT OF THE UNITED STATES, Roe v. Wade. 410 U.S. 113 (1973), p. 159).

6 Essa linha de raciocínio, defendendo a ausência de proteção absoluta da vida, encontra respaldo na jusfilosofia de Ronald Dworkin, que identifica um fundamento derivado (derivative) e um fundamento independente (separado, detached) para a defesa da vida do feto. O primeiro considera que o feto teria interesses próprios; o segundo, que o aborto é errado por viola a santidade e o valor intrínseco da vida. Ao considerar que o feto não poderia dispor de interesses próprios, o fundamento para a proibição do aborto recairia, segundo o autor, em um fundamento independente (separado) de preservação do valor intrínseco da vida ou de sua santidade, porém, apesar de admitir que o Estado pode defender valores intrínsecos, Dworkin não visualiza essa possibilidade quando houver grande impacto sobre a vida de pessoas em particular, considerável desacordo sobre tal valor intrínseco ou quando a razão para a defesa do valor intrínseco se basear em algo pessoal ou religioso. E a defesa do valor intrínseco da vida, tal como formulada por críticos do aborto, tem fundamento religioso. Por consequência, o Estado não poderia adotá-lo para proibir a prática. A posição do autor, que é mais complexa do que a simples exposição supra, pode ser melhor compreendida em: DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009 e DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral a Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Ver ainda, DUTRA, Delamar José Volpato. Moralidade política e bioética: os fundamentos liberais da legitimidade do controle de constitucionalidade. Veritas, Porto Alegre, v. 52, n. 1, p. 59-78, mar. 2007. A proteção do ordenamento brasileiro em relação ao valor da vida, como constata a Ministra, seria derivada e não independente. E sendo derivada, deve ser analisada a partir de sua relação com os demais interesses, como a autonomia da mulher, por exemplo.

7 WHO. Abortion. Key facts. 17 may 2024. Disponível aqui.

8 Disponível aqui.