Transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. O que esperar da campanha um só coração?
terça-feira, 21 de maio de 2024
Atualizado em 20 de maio de 2024 13:27
A doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano é um dos gestos mais altruístas conhecidos, mas também o que enfrenta uma série de resistências motivadas por diferentes razões, que acabaram refletindo na lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
Em 2001 o legislador alterou a norma para determinar que nos casos de retirada post mortem (após a morte) de tecidos, órgãos e partes do corpo humano não bastaria a declaração prévia do morto, seria também necessária a consulta à família que pode simplesmente desconsiderar a vontade declarada pelo falecido e negar a remoção. Trata-se de intervenção desarrazoada na autodeterminação sobre o corpo.
Desde então, muito se avançou nas técnicas de transplantes e nas discussões sobre as doações. Parte significativa da população compreende a importância do ato e se declara doadora, embora não tenha por hábito registrar essa vontade.
Poucas pessoas sabem, mas a declaração de doador tem forma livre. O que significa que o registro pode ser feito por diversos meios: diretivas antecipadas de vontade; escritura pública; instrumento particular; gravação em vídeo; declaração à equipe médica e até por manifestações em redes sociais. Até pouco tempo, podia-se, inclusive, declarar a opção pela doação em documentos como a Carteira de Habilitação, opção que infelizmente já não existe mais.
Paradoxalmente, na mesma medida que a aceitação do ato aumenta, crescem as propostas de burocratização das declarações. Em abril passado comemoramos o lançamento da Campanha Um Só Coração: Seja Vida na Vida de Alguém. Doe Órgãos, idealizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Colégio Notarial do Brasil e Ministério da Saúde. A iniciativa marcou a regulamentação do Sistema de Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos1 (AEDO - Provimento n. 164/2024, CNJ), que prevê a autorização eletrônica gratuita por meio da Central Nacional de Doadores de Órgãos. Segundo a campanha, para ser doador bastaria formalizar a vontade por meio de um formulário digital.
Mas não é bem assim... A iniciativa que deveria facilitar o acesso à formalização da declaração, na verdade a dificulta: 1- porque adota o sistema e-notariado (Certificado Digital Notarizado ou Certificado ICP-Brasil), sistema que para liberar a assinatura digital exige que a pessoa compareça a um Cartório para coletar sua ficha de assinatura (se já não a tem); 2- após conseguir gerar a assinatura pelo e-notariado a pessoa ainda tem que agendar um horário com um Cartório para gravar a declaração em videoconferência, confirmando ser doadora de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Só após e com a assinatura digital de um notário, a AEDO ficaria disponível para consulta no Sistema Nacional de Transplantes.
Não foram poucos os relatos recebidos. Os próprios autores que este texto subscrevem tiveram percepções distintas do sistema. Enquanto um facilmente conseguiu produzir o documento, por já ter assinatura (em cartão físico) em cartório, o outro desistiu do processo por todas as dificuldades antes narradas, optando por manter sua declaração (já existente) em diretivas antecipadas de vontade.
Em resumo, o sistema não é intuitivo, exige conhecimentos informáticos que boa parte da população não tem; é restritivo; dificulta o acesso para pessoas que residem distantes de Cartórios; dificulta a finalização da declaração para pessoas que têm dificuldade com equipamentos eletrônicos; impede a declaração por quem não tem meios eletrônicos. Trata-se, portanto, de sistema que não voltou seus olhos à facilitação do acesso à declaração de doador, mas que a burocratiza em prol de uma desnecessária suposta segurança jurídica que, no final das contas, sequer servirá para dispensar a consulta à família para a remoção dos órgãos, de acordo com a legislação atual.
Infelizmente, da maneira proposta, é um sistema que tende ao desuso e que não alcançará as finalidades almejadas.
Por fim, apenas para registrar opções viáveis, se considerada necessária a assinatura digital, o banco de dados poderia usar a assinatura eletrônica fornecida pelo sistema gov.br, mais acessível (embora também possa restringir o acesso em razão das dificuldades de uso de sistemas eletrônicos e inexistência de tecnologia assistiva), tão segura quanto a utilizada pelo e-notariado, mas que não exige nenhum tipo deslocamento presencial. A gravação em vídeo poderia ser uma ação facultativa do declarante e não obrigatória. Se a família pretende questionar capacidade no momento da confecção da declaração, não é a existência de um vídeo que evitará a discussão, daí a importância de também de se pensar na (necessária) mudança da legislação, para retirar o protagonismo da família em uma decisão tão íntima, que por certo deve (ou deveria) ser unicamente do indivíduo em consulta à sua própria consciência.
Em temas que apresentam dilemas complexos, burocratizar a manifestação de vontade é deslocar o foco da discussão para noções idealizadas de suposta segurança jurídica. Dificulta-se a declaração, em vez de se promover ampla adesão e a realização da autonomia decisória.
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1 Disponível aqui.