COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas de Direito Médico e Bioética >
  4. CFM ofende preceitos constitucionais fundamentais ao restringir aborto legal

CFM ofende preceitos constitucionais fundamentais ao restringir aborto legal

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Atualizado às 09:25

No início de abril de 2024, foi publicada, no Diário Oficial da União, norma editada pelo Conselho Federal de Medicina - Resolução 2.378/2024 -, que prevê a proibição do procedimento de assistolia fetal em gestações decorrentes de estupro. O texto normativo, em artigo único a tematizar a questão, especifica o seguinte: 

É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.

Poucos dias depois, órgãos do sistema de justiça, da classe médica e da sociedade civil iniciaram uma série de manifestações contra a referida resolução. O Ministério Público Federal, a Sociedade Brasileira de Bioética e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ajuizaram Ação Civil Pública com pedido de tutela de urgência (ACP 5015960-59.2024.4.04.7100) em face do CFM, objetivando a declaração de nulidade do ato normativo, por restringir indevidamente direito fundamental de mulheres, em especial o direito de acesso ao melhor atendimento de profissionais de saúde para a realização de aborto legal, o que cria ilegalmente mais "uma barreira à integridade dos cuidados de saúde".

Em 18 de abril, a 8ª Vara Federal de Porto Alegre, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, deferiu o pedido liminar no bojo da ACP para suspender os efeitos da Resolução n. 2.378/24, vedando a utilização do ato normativo para obstar o procedimento ou impor punição disciplinar aos médicos que o realizarem.

Em sede constitucional, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com suporte técnico do ANIS - Instituto de Bioética, CRAVINAS - Clínica de Direitos Humanos e Reprodutivos da Universidade de Brasília e do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, também questionou a constitucionalidade da resolução ao ajuizar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 11411 pedindo a  suspensão da eficácia da norma impugnada até o julgamento final da ação.

Em 26 de abril, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região conferiu efeito suspensivo ao agravo de instrumento interposto pelo Conselho Federal de Medicina e reformou a decisão recorrida afirmando que a ADPF 989 e a ADPF 1.141 discutem o tema, por isso não seria adequada, no momento, a prolação de decisões singulares com eficácia e abrangência nacional determinando a suspensão do ato normativo atacado. Como se pode ver, a discussão está longe de terminar. Enquanto isso, a insegurança jurídica só aumenta e, com ela, o risco persecutório de profissionais da Medicina.

Isso porque a Resolução 2.378/2024, ao estabelecer vedações não dispostas em lei, repercute não somente discussões já antigas sobre os limites da competência do CFM para regulamentar determinadas matérias, como também intensifica o cenário de obstáculos à interrupção da gravidez nas hipóteses permitidas pelo ordenamento jurídico.2 São elas: i) quando a gestação é decorrente de estupro/violência sexual; ii) quando há risco de vida para a pessoa gestante (art. 128, I e II, Código Penal) e; iii) desde 2012, o STF estendeu a excludente de ilicitude para a gestação de anencéfalos, por meio da ADPF 54.

Embora a ementa da Resolução 2.378/2024 a sintetize como normativa que "regulamenta o ato médico de assistolia fetal", a literalidade da redação expressa patente proibição aos profissionais da Medicina quanto à realização do procedimento, o qual é descrito como "ato médico que ocasiona o feticídio"3.

Além de a autarquia federal violar o princípio da legalidade e apropriar-se inadequadamente da competência do Congresso Nacional de legislar sobre o tema, extrapolando o seu poder regulamentar, ao produzir alteração normativa de caráter primário por tipificar a conduta de profissionais médicos, pode-se afirmar que diversos outros preceitos fundamentais são ofendidos pela resolução do CFM.

Há uma série de evidências científicas sobre a utilização terapêutica da assistolia fetal em gestações avançadas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde4, recomenda-se a indução da assistolia fetal como um procedimento pré-abortamento5, isto é, antes do esvaziamento uterino nas gestações acima de 20 semanas.6 O Ministério da Saúde, no âmbito da Nota Técnica Conjunta 37/2023 SAPS/SAES/MS, também sinaliza que a indução de assistolia fetal, ao preceder as induções medicamentosas nos casos de abortamento, trata-se de técnica que produz cuidados em saúde, "por trazer benefícios emocionais, legais e éticos relacionados ao impedimento da expulsão fetal com sinais transitórios de vida".7

Sendo assim, ao preconizar que os profissionais não poderão se valer do procedimento nos casos de aborto decorrente de estupro, o CFM impede que a melhor técnica disponível na saúde seja aplicada, o que é atentatório á liberdade científica (artigo 5º, IX, da Constituição Federal) e contraria o próprio Código de Ética Médica, o qual estipula, em seu artigo 32, que é vedado ao profissional "deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente".

Adicionalmente, o CFM impõe uma restrição de forma discriminatória ao limitar a proibição do uso da técnica aos casos de gravidez resultante de estupro, sem qualquer respaldo jurídico, científico e ético para tanto.

Da mesma forma, a norma viola a liberdade do exercício da profissão prevista no artigo 5°, inciso XIII, da Constituição Federal, pois impede que a(o) profissional da Medicina escolha técnica segura e eficaz na condução do abortamento. Tal proibição, ademais, agrava a insegurança jurídica que já paira nos serviços de atendimento ao aborto, especialmente nos casos oriundos de violência sexual, questão que vem sendo denunciada no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 989.

Todas essas violações potencializam a vulnerabilidade de meninas, mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar que buscam o aborto nas hipóteses autorizadas8, principalmente nas situações decorrentes de estupro. Isso porque, segundo o IPEA, a cada minuto, praticamente duas pessoas são estupradas9 e, dentre as consequências sofridas pelas vítimas do estupro, a terceira maior prevalência diz respeito à gravidez (7,1%). Na faixa etária entre 14 e 17 anos, a proporção de vítimas que ficam grávidas cresce para 15%.10

Portanto, impossibilitar a interrupção da gestação em casos de estupro - em caráter seletivo e discriminatório, como a Resolução do CFM o faz - caracteriza patente violação ao direito à saúde, o que, por sua vez, também pode acarretar danos ao projeto de vida de quem tem frustrado o acesso aos melhores cuidados em saúde ao buscar o aborto legal.  

Por sinal, o fundamento apresentado na Resolução 2.378/2024, CFM para se proibir o procedimento de assistolia, de que "toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida, direito esse que deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção", em alusão ao artigo 4.1. da Convenção Americana de Direitos Humanos, não se sustenta.  Na decisão do caso Artavia Murillo vs. Costa Rica (2012)11, a Corte Interamericana de Direitos Humanos interpretou aquele dispositivo e esclareceu que, devido à expressão "em geral" presente no artigo, a proteção do direito à vida não pode ser absoluta nem incondicional: ela deve ser gradual e progressiva, de acordo com o seu desenvolvimento. Além disso, na mesma decisão, a CorteIDH consignou que o objeto de proteção do direito à vida é principalmente a mulher grávida, pois é ela que carrega a potencialidade da existência de vida, afirmando-se o direito à integridade pessoal em relação à autonomia e à saúde sexual e reprodutiva.

Como se vê, trata-se de precedente instaurado há mais de uma década, amplamente difundido na literatura especializada12, que reflete a interpretação evolutiva e sistemática adotada pela CorteIDH no que tange à Convenção Americana de Direitos Humanos, de modo que a resolução do CFM, ao ignorá-lo, também esbarra no crivo da convencionalidade. 

A propósito, este entendimento se alinha à Recomendação Geral n° 35 do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), que preconiza que as violações dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como a recusa ou atraso no acesso ao aborto seguro e aos cuidados pós-aborto, a imposição forçada de gravidez, o abuso e maus-tratos a mulheres e meninas que buscam informações, produtos e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, são consideradas formas de violência de gênero. Ainda, dependendo das circunstâncias, essas violações podem ser equiparadas à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. 

Estes argumentos parecem encontrar reflexo no posicionamento de diversas entidades e organizações que se manifestaram publicamente em relação à Resolução 2.378/2024, incluindo a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)13 e Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice - Brasil)14, que contam com representantes da classe médica. 

O contexto apresentado nos mostra, portanto, a necessidade de um debate pautado em evidências científicas, tanto da saúde quanto do direito, sobre a regulamentação da interrupção da gravidez e dos atos realizados pelos sistemas de saúde a fim de garantir acesso ao abortamento seguro e fortalecer as políticas de planejamento reprodutivo. A atenção humanizada às mulheres, meninas e demais pessoas com capacidade de gestar em abortamento pressupõe atenção à gestante prioritariamente e o respeito a direitos fundamentais que não podem ser solapados por normas ético-profissionais.

__________

1 A ADPF 1141 apresenta pedido de medida cautelar e distribuição por prevenção por conexão com a ADPF 989/DF, ação na qual se objetiva o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional em relação ao aborto legal. Disponível aqui.

2 LIMA, Francielle Elisabet Nogueira; SCHIOCCHET, Taysa; NUNES, Mariana. Além da lei: os desafios do aborto legal no Brasil. Migalhas de Direito Médico e Bioética, 04 de dez 2023. Disponível aqui. Acesso em: 23 de abril de 2024.

3 Termo que não leva em consideração a diferenciação biológica entre embrião (até a 8ª semana de gestação e feto (a partir da 8ª semana de gestação até seu termo) e sequer tem previsão no ordenamento jurídico penal brasileiro.

4 Segundo as Orientações Técnicas da Organização Mundial de Saúde1 (OMS) o abortamento pode ser: a) farmacológico (ou medicamentoso), no qual se utilizam fármacos para finalizar a gravidez (método médico); b) cirúrgico, no qual se utilizam procedimentos transcervicais para finalizar a gravidez (método cirúrgico) (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Abortamento   seguro: orientação técnica de políticas para sistemas de saúde. 2.ed. OMS, 2013).

5 Abortamento é "a expulsão do feto antes de sua viabilidade" (BLAKISTON. Dicionário médico. 2a. ed. São Paulo: Andrei, 1997. p. 18). O aborto, segundo a OMS, "é uma intervenção de saúde segura e não complexa que pode ser eficazmente gerida usando medicamentos ou um procedimento cirúrgico em vários contextos. As complicações são raras tanto com o aborto farmacológico como no cirúrgico. (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Diretrizes sobre cuidados no aborto, 2022. Disponível em: Disponível aqui. Acesso em 16 fev. 2023).         

6 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Clinical practice handbook for quality abortion care, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 de abril de 2024.

7 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota Técnica Conjunta nº 37/2023-SAPS/SAES/MS. Disponível aqui. Acesso em: 11 de abril de 2024.

8 As restrições legais ao abortamento não ajudam a diminuir sua ocorrência nem a assegurar o aumento de taxas de natalidade, isso porque "o estatuto jurídico do aborto não altera a necessidade de aborto de uma mulher, mas afeta significativamente o seu acesso ao aborto seguro" (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Diretrizes sobre cuidados no aborto, op. cit.).

9 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Elucidando a Prevalência de Estupro no Brasil a Partir de Diferentes Bases de Dados, 2023, p. 22. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2024.

10 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Estupro no Brasil: Uma radiografia segundo os dados da Saúde, 2014, p. 15-16. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2024.

11 "(...) Por outro lado, em relação à controvérsia sobre quando começa a vida humana, a Corte considera que se trata de uma questão apreciada de diversas formas sob uma perspectiva biológica, médica, ética, moral, filosófica e religiosa, e coincide com tribunais internacionais e nacionais, no sentido de que não existe uma definição consensual sobre o início da vida. (...) A expressão "toda pessoa" é utilizada em vários artigos da Convenção Americana e da Declaração Americana. Ao analisar todos estes artigos não é factível argumentar que um embrião seja titular e exerça os direitos consagrados em cada um destes artigos. Além disso, tendo em consideração o já argumentado no sentido que a concepção somente ocorre dentro do corpo da mulher (pars. 186 e 187 supra), pode se concluir em relação ao artigo 4.1 da Convenção que o objeto direto de proteção é, fundamentalmente, a mulher grávida, em vista de que a defesa do não nascido se realiza essencialmente através da proteção da mulher, como se observa no artigo 15.3.a) do Protocolo de San Salvador, que obriga os Estados Parte a "conceder atendimento e ajuda especiais à mãe antes e durante um período razoável depois do parto", e do artigo VII da Declaração Americana, que consagra o direito de uma mulher em estado de gravidez a proteção, cuidados e ajudas especiais. Portanto, a Corte conclui que a interpretação histórica e sistemática dos antecedentes existentes no Sistema Interamericano confirma que não é procedente conceder o status de pessoa ao embrião", grifado (OEA. Corte IDH. Sentença. Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) Vs. Costa Rica, 28 de novembro de 2012. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2024).

12 LEGALE, Siddharta; RIBEIRO, Raissa; FONSECA, Priscila Silva. O aborto no sistema interamericano de direitos humanos: contribuições feministas. Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 103-135, jan./abr. 2022.

13 FEBRASGO. Nota sobre a Resolução do CFM 2378. Disponível aqui. Acesso em: 13 de abril de 2024.

14 DOCTORS FOR CHOICE BRASIL (@doctorsforchoicebr). "Na mídia", 5 de abril de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 13 de abril de 2024.