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Slow Medicine: simplesmente medicina

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Atualizado às 07:22

Em um tempo de açodamento e superficialidade nas relações, o sopesamento de valores  e  a conduta reflexiva nem sempre são bem vistas e ficam cada vez mais em desuso. Isso em acentua em um cenário de desenvolvimento em volume exacerbado de modalidades tecnológicas, mediadas ou não pela Inteligência Artificial, que culminam nas mais variadas possibilidades de dispositivos aplicáveis em saúde e que, em não raras vezes, servem como suporte para sustentar narrativas que pregam soluções simples e rápidas para problemas complexos. Consequentemente, às mentes menos despertas, isso pode gerar uma espécie de encantamento que chega a ser pueril, pela falta de letramento mínimo das soluções que são oferecias, fato que pode atingir tanto o público leigo como profissionais que não tenham o mínimo de massa crítica aguçada.

Então, a pressa toma conta de todas as vertentes da sociedade, afinal esse é o elemento que se traduz como o traço característico da atualidade. Porém, essa mesma pressa pode levar a decisões não muito acertadas. O paciente, por sua vez, que está cada vez mais impaciente com tudo, quer respostas na mesma velocidade, pois acredita que a tecnologia tem a salvação para tudo, todavia, por falta de conhecimento, desconsidera a existência das variantes inerentes a qualquer ecossistema.

Com efeito, é bem verdade que a tecnologia e o avanço científico quando aplicados adequadamente trazem muitos ganhos, inclusive na assertividade que essas ferramentas de apoio à assistência da saúde possam causar no diagnóstico e tratamento, algo que, invariavelmente, causará reflexos na forma de atuar do profissional da saúde.  Contudo, apesar do propalado acréscimo trazer, em alguns aspectos, a possibilidade de aumento de segurança para o paciente, jamais reduzirá a Medicina a uma certeza da exatidão matemática tendente a se resumir o ato a uma obrigação de resultado. Isso porque, a Medicina guarda aspectos imponderáveis, próprios de peculiaridades e reações de um organismo vivo, que, por vezes, pode ser individualizável ao paciente, e impossível de controle.

Por esse motivo, cada vez mais é necessário verificar concretamente se essas aludidas novas tecnologias tão propagadas pelos mais variados e, por vezes, ardis instrumentos de marketing, de fato, estão maduras para o seu uso, ou seja, se quando da finalização das etapas metodológicas para se atestar segurança e eficácia dos resultados das pesquisas ocorridas em ambiente controlado de laboratório, a fim de possibilitar a aplicabilidade no mundo real com existência de plena relação de efetividade.

Nesse sentido, com o ímpeto de chamar a atenção e se apresentado sob a forma de revolução cultural contra a noção de que o que é mais rápido é sempre melhor, pauta-se a filosofia Slow, não com a proposta fazer tudo a um passo lento, mas fazer tudo na velocidade certa. Essa filosofia abrange várias vertentes como alimentação, estilo de vida, moda, sustentabilidade e saúde.

Notadamente, dentro do escopo relacionado aos cuidados em saúde, a Slow Medicine - termo utilizado pela primeira vez pelo médico cardiologista  Alberto Dolara (2002)1 e traduzido no Brasil como Medicina sem Pressa - refere-se à busca por equilíbrio em detrimento a ênfase exagerada de processos rápidos na assistência, que levam à redução da qualidade e expõe o paciente a riscos desnecessários. Em realidade, o que se pretende é associar o termo Slow  Medicine a uma Medicina reflexiva, como forma de chamar a atenção para uma dimensão mais humana na assistência em saúde e, sobretudo, centrada nas necessidades do paciente. Destarte, é um apelo internacional por um cuidado mais consciente.2 Para tanto, atua com função educadora vislumbrando divulgação de informações amplas e robustas para auxiliar os pacientes nas melhores escolhas. Incentiva o autocuidado, ajuda o paciente e a comunidade na literacia em saúde 3, auxiliando na construção do conjunto de habilidades e competências que cada indivíduo possui para buscar compreender, avaliar e dar sentido às informações sobre saúde.

Atualmente, em muitas situações profissionais que nada introjetaram do seminal objetivo do movimento apropriam-se do termo e o utilizam como forma de engajamento, publicidade e outras efemeridades. Por esse motivo é necessário destacar que Slow Medicine não é um mero anglicismo para fomentar uma nova grife, um modismo ou uma tendência passageira. Muito menos se pretende estabelecer como especialidade médica, certificação de boas práticas, ou na criação de relação de médicos diferenciados. Antes de tudo, a Slow Medicine pretende aprimorar a assistência com resgate de valores perdidos ao longo do tempo.4 Por esse motivo, apenas pretende a Slow Medicine reensinar os médicos a individualizarem suas condutas, desenvolver uma visão mais crítica a respeito das informações acessadas.

Em suma, trata-se de uma filosofia e de uma prática em saúde que busca oferecer o melhor cuidado, baseando-se nas melhores evidências científicas, com foco centrado no paciente, elaborando decisões ponderadas e cautelosas e, sempre que possível, compartilhadas. Propõe um cuidado que busca a tecnologia apropriada à singularidade de cada paciente e de sua situação vivencial, tendo como premissa que nem sempre fazer mais significa fazer o melhor. Por isso que se arrima na fundamental necessidade de priorizar análise pormenorizada sobre a utilização dos novos tratamentos e meios procedimentos diagnósticos e se eles, realmente, trazem maiores benefícios do que riscos ao paciente. 5

O tempo é visto como elemento essencial, seja ele para ouvir, refletir, construir relações sólidas e duradouras entre médicos, pacientes, famílias e comunidade. Importante esclarecer, contudo, que o fato de um profissional seguir a filosofia e, por consequência, adotar uma postura slow, não significa dizer que precisará de mais tempo cronológico para estabelecer vínculos importantes e fazer avaliações acuradas em pouco tempo. É possivel ser treinado para otimizar o tempo e, principalmente, entender que quando estiver diante do paciente, deverá estar presente no tempo presente.

Os profissionais de saúde atuam com atenção, equilíbrio e educação.6 Tudo começa a partir do diálogo cuidadoso com empatia e aproximação, segundo o qual se propõe entrevistar e examinar o paciente, equilibrar benefícios e danos das intervenções diagnósticas e terapêuticas, sendo ponderado para intervir quando os sintomas são indiferenciados,  comprometido com a observação como uma importante estratégia diagnóstica e terapêutica e cauteloso sobre a adoção de novos testes diagnósticos e terapias até que a evidência estabeleça seu valor.7 Existe o olhar humanizado, a escuta ativa e a conduta fundamentada na compaixão e no constante "colocar-se no lugar do outro". Busca identificar e reconhecer a singularidade, a capacidade e autodeterminação do paciente, objetivando encaixar suas características e história de vida, para que se sinta acolhido e colaborativo no processo do cuidado. 

Para tanto, a autonomia do paciente é elevada a um patamar adequado, sendo que, há a aposição do conceito positivo de saúde, com foco no autocuidado, resiliência, e prevenção. No mesmo mote, considera os valores, expectativas e desejos do paciente como invioláveis por estar umbilicalmente vinculado com o fundamento da dignidade da pessoa humana.  Considera que é condição inerente da autonomia do paciente o direito de se expressar amplamente. O profissional, portanto, incentiva a comunicação honestaponderada e completa com o paciente, é respeitoso, acolhe e levar em consideração os valores, preferências. Nesse sentido,  reconhece o valor das narrativas individuais na prática clínica, não apenas para validar a experiência do paciente, mas também incentivar a criatividade e autorreflexão no médico, enveredando  para a Medicina Narrativa.8 O profissional com base na informação do paciente e dentro da autonomia técnica tem preparo para utilizar ferramentas mediadas pela Medicina Baseada em Evidências. Significa integrar a experiência clínica individual com as melhores evidências clínicas disponíveis a partir de pesquisas sistemáticas. Para tanto, é preparado para analisar estudos, desenhos de pesquisas, as metodologias aplicadas e se os resultados obtidos são factíveis.

Logo, o termo slow em nada se vincula a uma medicina relaxada, indolente, preguiçosa, não resolutiva, e que leva muito tempo para tomar uma decisão e iniciar uma conduta. De certo, em muitas circunstâncias, a medicina deve ser rápida, ainda mais quando se deparam com situações de grave risco de vida. No entanto, é fundamental saber refletir sobre como lidar com uma doença, o significado da prevenção e do atendimento personalizado, saber avaliar criticamente os resultados de exames diagnósticos, saber adaptar as recomendações das diretrizes a cada paciente.9

Parte-se, então, de eixos arrimados na Medicina Sóbria, Respeitosa, Justa10 e honesta. Considera-se Medicina Sóbria, na ação com moderação, de forma gradual e sem desperdícios; Medicina Respeitosa, por cuidar da preservação da dignidade e dos valores de cada pessoa; e Medicina Justa, por estar empenhada em garantir o acesso a cuidados adequados para todos. 

Por isso, não se trata de uma nova construção, mas um reenraizamento na essência da Medicina, em ampla confluência e aplicação prática dos princípios bioéticos. Nesse sentido, sumariamente, Medicina Sóbria, muito bem se adéqua aos princípios da beneficência ou não-maleficência, por visar o primum non nocere. Por sua vez, a Medicina Respeitosa, conflui com o princípio da autonomia, devido ao fato de valorizar as crenças e costumes individuais do paciente como ponto fundamental ao processo de tomada de decisão compartilhado. Por fim, a Medicina Justa, está entrelaçada com o princípio da justiça, pois, quando o profissional age racionalmente no manejo das propostas destinadas ao paciente, sem conflitos de interesse ou sem desperdícios irracionais, resulta em critérios de justiça distributiva. Não se olvide que o excesso irracional de cuidados para alguns, não deveria acontecer à custa da escassez de outros.

Propugna-se, também, na utilização da tecnologia baseada em Choosing Wisely (escolhas sábias)11 e, consequentemente, anda em direção diametralmente oposta ao desperdício irracional e exposição de riscos desnecessários a todos os participantes da assistência, pois se acredita que fazer mais nem sempre significa fazer melhor. É o caminho para um tratamento sóbrio, respeitoso e justo, partilhado pelos profissionais da saúde, pelos pacientes e  para a comunidade. 12  Em consequência, distancia-se do oferecimento de um tratamento exagerado, desrespeitoso e injusto, tão aplicados pela medicina moderna, que em muitas situações é dotado de prática agressiva, ao aplicar o uso da tecnologia acriticamente em estrito cumprimento das recomendações que afirma tratar todos da mesma maneira, de modo a negligenciar as necessidades, expectativas, desejos, ansiedades,  e medos de cada pessoa que precisa de cuidados. 

Prioriza a qualidade de vida, sopesando possíveis excessos do uso da tecnologia bem como  relação entre o risco benefício de uma conduta, sendo que, por critério de segurança do paciente, recomenda-se não intervir quando houver dúvida. Com essa linha de desdobramento lógico, enfatizam que o fato de ser fazer mais não significa fazer melhor, mas ao contrário em muitos casos.

Nos processos de tomada de decisão reflete um conhecimento científico da maior qualidade, ou seja, melhores informações e melhores evidências, o que auxilia os profissionais na seleção das condutas e exames a serem pedidos, e leva em consideração a experiência do profissional médico e a vontade do paciente.

Note-se que é essencial alicerçar a prática profissional em evidências científicas, desde que os profissionais da saúde façam uma leitura crítica da literatura científica para oferecerem cuidado sóbrio ao paciente, que consiste em empregar tudo o que for necessário, evitando-se desperdícios e excessos.

 Assim, objetivamente definem David, Willian e Muir (1996)13: Medicina baseada em evidências é o uso consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência disponível ao tomar decisões sobre o cuidado de um paciente. 14

Nesse diapasão, importante trazer, em arremate, os dez princípios que norteiam a pratica filosófica na assistência da saúde, compilados pela iniciativa Slow Medicine Holanda quais sejam15:

1. Tempo: tempo para ouvir, para entender, para refletir. Tempo para consultar e tomar decisões. A tomada de decisões melhora quando os médicos dedicam seu tempo e sua atenção cuidadosa ao paciente;

2. Individualização: cuidado particularizado, justo, apropriado. feitos na medida adequada e equitativa A individualidade em lugar da generalidade. O paciente deve ser o foco da atenção e seu ponto de vista e seus valores são fundamentais;

3. Autonomia e Auto-Cuidado: a tomada de decisão deve ser compartilhada segundo os  valores, expectativas e preferências do paciente. Isto engloba uma integração do programa de cuidados no ambiente do doente; família, vizinhos, amigos e outros recursos;

 4. Conceito positivo de saúde: transcende o antigo conceito de saúde da OMS ("um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades") o foco é no auto cuidado e resiliência, com ênfase na saúde e não na doença, abordando os cuidados de saúde e a prevenção de doenças e a manutenção da qualidade e da acessibilidade dos cuidados;

5. Prevenção: alimentação saudável é a prescrição básica para uma vida saudável. Atividade física regular.  pensamento positivo e flexibilidade mental podem (re)programar e são essenciais para manter nossos cérebros saudáveis;

 6. Qualidade de vida: fazer mais nem sempre significa fazer melhor. Mais que quantidade deve-se investir na qualidade, na aceitação do inevitável. Deve-se sempre considerar a arte médica de não intervir a sabedoria da observação clínica e a arte médica;

7. Medicina Integrativa: a medicina complementar se possível em evidências. Segurança em primeiro lugar, eficácia quando possível. Sem metáforas da luta ou guerra contra a doença. As palavras de ordem são recuperação, equilíbrio, harmonia;

8. Segurança em primeiro lugar: lembre-se do juramento de Hipócrates : Primum non nocere et in dubio abstine. Em primeiro lugar não causar o mal. Em dúvida, abstenha-se de intervir;

9. Paixão e compaixão: resgatar a paixão pelo cuidar e o sentimento da compaixão na atenção médica. Buscar incansavelmente a humanização dos cuidados à saúde;

10. Uso parcimonioso da tecnologia: a tecnologia deve servir ao homem. As novas tecnologias devem cumprir seus objetivos de auxiliar a pessoa no autocuidado e auxiliar o médico a tomar as melhores decisões para seu paciente, que busquem primordialmente melhorar sua qualidade de vida.

A Slow Medicine é, portanto, uma real retomada da medicina individualizada, pois todos somos uma única essência em nos mesmos, e não meras estatísticas em uma coletividade massificada. É o ideal resgate do "primum non nocere et in dubio abstine" (primeiro não prejudicar e na dúvida se abstenha). É o renascimento da verdadeira arte de cuidar.16

__________

1 Dolara A. Invito ad una "Slow Medicine". Ital Heart J Suppl 2002; 3: 100-1. Disponível aqui.

2- Lie Y Slow Medicine, an international appeal on mindful healthcare Disponível aqui.

3-Peres F Rodrigues KM Silva TL Literacia em Saúde Fiocruz Rio de Janeiro 2021

4- Velho JCC Slow Medicine não é uma especialidade médica. Saiba por que. Disponível aqui.

5-Note-se que apesar de conter medicine na expressão, claramente não estaria limitado apenas à Medicina.  Como tem em seu escopo mais purista a proposta de direcionar a posturas éticas, ponderadas e baseadas em boas práticas centradas na pessoa, na prática atinge transversalmente todos os profissionais da saúde.

6-Bifulco V, Bottoni A. Porque uma medicina sóbria, respeitosa e justa é possível Disponível aqui.              

7-Updates in Slow Medicine Disponível aqui.

8-Costa A C S  Medicina translacional na interseção da medicina baseada em evidências e da medicina narrativa Journal of Human Growth and Development versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598 J. Hum. Growth Dev. vol.25 no.3 São Paulo  2015 Disponível aqui.

9-Bobbio M. Chiarlo M. Arcadi P. Per Slow Medicine le prove sono indispensabili Disponível aqui.

10- Il Manifesto di Slow Medicine ETS nel Mondo Disponível aqui.

11- Velho JCC Choosing Wisely e Slow Medicine: caminhos compartilhados Disponível aqui.

12-Birolini D. Slow Medicine - um conceito em evolução Disponível aqui.

13- David S., William R., Muir G. Evidence based medicine: what it is and what it isn't BMJ; 13 January 1996 disponível aqui.

14- Velho JCC Medicina Baseada em Evidências e Slow Medicine Disponível aqui.

15- Lie Y. Slow medicine, your medicine to a healthy life Ten basics of Slow Medicine Disponível aqui.

16- Callegari L. Slow Medicine: um a interface entre a Bioética, a Medicina e o Direito Disponível aqui.