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Tecnologias digitais emergentes e o Direito Civil e médico no prelúdio de um admirável mundo novo - Parte I

segunda-feira, 20 de março de 2023

Atualizado às 08:51

Vivemos dias velozes e ultraconectados. Dias cuja única permanência é a mudança. Está ocorrendo - e a pandemia acelerou isso - uma passagem, em múltiplos setores, do universo físico-tradicional para o universo digital. Cremos que essas tendências se acentuarão de modo ainda mais rápido, numa velocidade e descentralização sem precedentes. Os avanços científicos dos próximos anos - e das próximas décadas - nos surpreenderão de modo constante. O perfil do mundo que conhecemos se alterou, e está constantemente se alterando. Se já achávamos que tudo mudava rápido, talvez nos espantemos ainda mais com o caráter e o perfil das próximas mudanças.

Medicina, transportes, comunicações, viagens espaciais (e novos conhecimentos astronômicos), tudo isso ganhará cores revolucionárias e abalará velhas estruturas. Em termos comportamentais, a sociedade busca estruturas menos assimétricas e desiguais. Na dimensão jurídica, o conceito de vulnerabilidade ganha extrema importância no direito privado do século XXI. Situações de assimetria e desvantagem - seja econômica, etária, informacional, de gênero, racial, tecnológica - são levadas em conta na solução dos conflitos. Sobretudo no campo da Medicina, nota-se o frequente debate sobre vulnerabilidade, além da profunda modificação da relação médico-paciente com o grande arsenal tecnológico: atendimentos médicos à distância (telemedicina), robôs cuidadores, cirurgias robóticas, algoritmos de Inteligência Artificial no diagnóstico e propostas de tratamento, cuidados do paciente pela representação digital (medical digital twins), predições do quadro clínico com base em dados genéticos, Internet das Coisas (IoT) e wearable devices (tecnologias "vestíveis") na avaliação e monitoramento médicos constantes, análises clínicas e treinamento médico nas realidades virtual e aumentada etc.

Com a inédita disrupção tecnológica, o desafio - em termos normativos - é tentar regular todas essas inovações, observando os perfis dos direitos fundamentais. Podemos dizer, sem exagero, que as possibilidades das tecnologias digitais emergentes são infinitas e espantosas - e já fazem parte do nosso dia a dia. Luís Roberto Barroso ressalta que a "conjugação da tecnologia da informação, da Inteligência Artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os comportamentos individuais, os relacionamentos humanos e o mercado de trabalho, desafiando soluções em múltiplas dimensões".1

É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. O direito deve espelhar o nível evolutivo da sociedade em que se insere. Se essa sociedade muda profundamente, o direito deve acompanhar as mudanças - de modo criativo e responsável -, se quiser continuar a ter relevância. George Ripert - professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris - cunhou frase célebre na década de 40 do século passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito". É preciso ter aquele senso, já dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo.

Nestas breves reflexões, a intenção é clara: trazer somente uma palavra inicial, de contextualização, sobre esses temas. Apenas para que a leitora e o leitor percebam o sentido - e a relevância - das mudanças que estão ocorrendo. Não é preciso muito esforço de argumentação para evidenciar que são mudanças que têm profundo impacto no direito privado (e não só nele).

Vale destacar que, o presente texto faz parte de uma edição especial de abertura desta coluna, em 2023, e será dividido em Partes I e II. Propõe-se, nas linhas que seguem, uma visão panorâmica dos impactos das tecnologias digitais emergentes sobre o direito civil e médico, a partir das seguintes perspectivas: 1) Presença digital também é presença; 2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico.

1) Presença digital também é presença

, no mundo, quase 200 países e uma única internet. É inegável que a questão dos limites e distâncias físicas perdem muito de sua importância, pois essa rede de conexões - veloz e descentralizada - torna possível que estejamos presentes, diante dos outros, mesmo que fisicamente não estejamos. A partir daí ocorre uma infinidade de relações existenciais e patrimoniais, e o mundo interage de uma forma inédita. O direito de acesso à internet a todos (Marco Civil Internet, art. 4º, I) é essencial à construção de um Brasil menos desigual. A palavra de ordem, hoje, é inclusão digital. Alguém sem internet, atualmente, é alguém condenado ao isolamento comunicacional - e, em certo sentido, até social.

Nossas práticas cotidianas são indissociáveis da Internet. Somos hoje seres progressivamente digitais, e isso se tornou algo tão cotidiano que sequer nos damos conta. Só nos daríamos se perdêssemos de forma abrupta essa conexão digital, esse mundo em rede. Virou rotina para quase todos nós a interação digital ao vivo em reuniões, aulas e audiências judiciais etc. Inúmeras plataformas hoje oferecem esses serviços - que com a pandemia adquiriu ares de essencialidade, sobretudo para eventos profissionais (não por acaso as ações do Zoom dispararam na Bolsa americana).       

Todo esse fenômeno tem evidente repercussão jurídica, alterando o conceito de presença. Hoje podemos estar diante dos outros, ainda que não estejamos fisicamente diante deles. O "estar diante" assume outros significados e outras formas em nossos dias. A presença não precisa mais ser física, no sentido tradicional. A presença digital também é presença em termos jurídicos - e cada vez mais o será. Aliás, nas relações de família, a doutrina tem enfatizado a importância dessas tecnologias (literalmente na palma da mão) para permitir o contato, por som e imagem, a qualquer distância, pelo tempo que desejarmos, sem muitos custos. Assim, por exemplo, o direito fundamental à convivência entre filhos e pais pode ser exercido mesmo que um deles habite fisicamente em outro lugar.

Além disso, na pós-modernidade, o conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade tem ganhado uma especial tônica. Há uma nova realidade social, ancorada na informação massificada na internet. Um dos danos colaterais da modernidade líquida, afirmada por Zygmunt Bauman,2 diz respeito a atual configuração do antigo conflito entre os espaços público e privado, ou seja, entre a informação e a privacidade. O deslocamento para o ambiente público de atos que eram eminentemente privados é hoje muito evidente e resulta do desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação, as quais possibilitam uma rede de dados ilimitada e de acesso público.

Em ambiente digital, assumem grande importância as discussões sobre os eventuais danos sofridos pelos usuários da internet, bem como o direito de retirada de uma informação ofensiva, a sua retificação ou, conforme o caso, a retratação por parte do responsável. Além disso, Guilherme Martins afirma que o atual desenvolvimento tecnológico tem alterado radicalmente o equilíbrio entre lembrança e esquecimento, pois "a regra, hoje, é a recordação dos fatos ocorridos, enquanto esquecer se tornou a exceção. (...) os usuários da Internet, cujos passos são sempre reconstruídos pelas técnicas de rastreamento, acabam frequentemente privados da escolha quanto à técnica de obtenção de dados e quanto às informações que serão colhidas a seu respeito".3

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 1.010.606 (caso Aida Curi), fixou entendimento de que o direito ao esquecimento é incompatível com sistema constitucional brasileiro, mas excessos e abusos no exercício da liberdade de expressão e da informação devem ser vistos caso a caso. A privacidade (como fundamento do direito ao esquecimento) pode ceder a outros direitos e interesses, tais como o direito à manifestação do pensamento, à livre circulação da informação e à liberdade de imprensa. É necessária, como afirmam Maria de Fátima F. de Sá e Bruno Torquato, "uma avaliação casuística, tendo em vista o tipo de informação, o quanto ela atinge a vida privada do indivíduo e o interesse do público na informação".4

Outra questão a ser ponderada é a de que a evolução das tecnologias de informação e comunicação tem aberto novas oportunidades para a interação entre fornecedores e consumidores. A relação entre as marcas e seus públicos foi se adaptando ao surgimento de plataformas digitais e redes sociais, enquanto novos canais de mídia e produção de conteúdo. E, nesse cenário, algumas pessoas que se destacam em ambiente digital pela influência que exercem em determinados nichos - conhecidas como "influenciadores digitais" - começaram a utilizar suas redes sociais para divulgar marcas e produtos.

São frequentes os episódios nos quais a atuação de influenciadores se configura como publicidade ilícita (artigo 37, §2º, do CDC), na espécie "abusiva". Isso porque, como ressalta Michael César Silva, essas pessoas induzem o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança, violando o princípio do consumo com responsabilidade social, o qual determina que a publicidade não deve induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável.5

A Era Digital também trouxe dinamismo e agilidade na propagação de informações e oportunidades para profissionais da saúde se conectarem com seus potenciais clientes. Os novos padrões da publicidade, especialmente em mídias sociais, têm gerado um grande desafio de adequação das técnicas de captação de pacientes no mundo digital aos preceitos éticos e legais. Nesse cenário, verifica-se que o direito à imagem é disponível (art. 20, do Código Civil), mas para os profissionais da Medicina há limitação na esfera deontológica (art. 75, do Código de Ética Médica), de modo que, mesmo diante de eventual autorização (licitude da conduta), o médico pode, em tese, ser responsabilizado eticamente. Além disso, tem-se evidenciado o frequente debate sobre os resultados postados pelos profissionais poderem ser interpretados como promessa de resultado, com a consequente transformação da obrigação de meios em resultado.6

Ainda no campo do direito médico, observa-se que a Telemedicina tem despontado como via de amplo acesso à saúde e, ao mesmo tempo, denota-se um novo significado do "estar presente", com profundo impacto na relação médico-paciente. Antes de ser realizada uma teleconsulta, por exemplo, o paciente precisa receber - e compreender - algumas informações importantes, tais como: benefícios, riscos, indicação da plataforma utilizada e, ainda, comparação do atendimento médico presencial em relação ao oferecido à distância. Ademais, o consentimento informado (leia-se, livre e esclarecido) adquire certas peculiaridades, pois há necessidade de um "duplo consentimento" do paciente, tendo em vista que, além do consentimento referente ao tratamento e intervenção médica, o direito à informação adequada engloba a ideia de consentir para o uso das novas tecnologias, a partir do conhecimento de seu funcionamento, objetivos, suas vantagens, custos, riscos e alternativas.7

Ressalta-se que há também alteração no processo do médico para obtenção do diagnóstico nas teleconsultas, pois no exame físico, o profissional deixa de ser o agente ativo e repassa ao paciente (ou representante legal) esse papel, por meio de orientações para que o doente mesmo assista o médico na realização do exame e resolva algumas questões solicitadas pelo profissional. Dada a complexidade de um atendimento médico à distância, tem-se ressaltado a importância de o profissional da saúde ter uma visão proativa, no sentido de pensar em como levar ao paciente as informações necessárias e que ele realmente as compreenda, realizando remotamente seu próprio exame físico a partir das orientações médicas passadas durante a teleconsulta.

Eric Topol vislumbra um futuro breve em que as inovações tecnológicas mudarão definitivamente a experiência hospitalar, tendo em vista a disseminação dos chamados smart hospitals (hospitais inteligentes) e virtual hospitals (hospitais virtuais) ao redor do mundo.   Embora sejam necessárias as UTIs, salas de cirurgia e de emergência, o quarto normal de hospital é altamente suscetível à substituição em algumas situações, pelo conforto e praticidade do local de residência do paciente, especialmente idosos e pessoas com doenças crônicas, que necessitam de constante monitoramento médico, abrindo-se, assim, espaço para o surgimento dos virtual hospitals. O atendimento e monitoramento médico é feito por Telemedicina e com apoio de algoritmos de Inteligência Artificial, big data e as mais diversas tecnologias digitais emergentes.8

O "estar presente" na Medicina tem assumido, portanto, novas formas com os atendimentos e monitoramento médicos à distância. Inevitavelmente, as repercussões jurídicas são inúmeras. Merece especial atenção a questão da garantia de sigilo da informação e privacidade do paciente pela ampliação da circulação, conexão e tratamento de dados pessoais sensíveis, o que potencializa os riscos de vazamento ou tratamento/compartilhamento irregular. Além disso, como visto, há de se considerar um novo modelo de consentimento do paciente e a maior complexidade na aferição da responsabilidade civil.

2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico

Virou lugar-comum dizer que vivemos, hoje, na Sociedade da Informação - mas talvez seja necessário ir além e afirmar que estamos diante da Sociedade da Hiperinformação. Tamanho é o volume de informações disponível, tamanha é a velocidade de sua transmissão. Trata-se de algo realmente sem paralelo na história humana. A sociedade global vive um período no qual grandes players econômicos e plataformas digitais têm amplamente utilizado dados pessoais para controlar e decodificar comportamentos, no intuito de auferirem maior lucro, conforme explica Shoshana Zuboff, no livro "A Era do Capitalismo da Vigilância".

Em decorrência do desenvolvimento tecnológico e da virtualização da vida no ambiente da Internet - com o fluxo incessante de dados que seus titulares a todo tempo acabam por transmiti-los nas tecnologias digitais emergentes sem sequer perceber -, vislumbra-se um cenário da informação em direção à vigilância, que é amplificada em uma "sociedade em rede". Informações e dados pessoais - compreendidos como preferências, situações e opções da vida - são utilizados indevidamente por empresas. Nesse contexto, a prática denominada profiling ("perfilamento") reflete uma faceta da utilização de algoritmos em grandes acervos de dados (big data), que propicia o delineamento do perfil comportamental do indivíduo, o qual passa a ser analisado e objetificado a partir dessas projeções.

A velocidade com que tecnologias disruptivas têm sido lançadas e a capacidade de armazenamento e processamento de dados evidenciam os riscos da hiperconectividade e propiciam lesões ao chamado corpo eletrônico ou digital. Há também um cenário que propicia publicidades virtuais que utilizam de maneira indevida os dados pessoais dos consumidores, promovendo ofertas direcionadas e importunadoras, além de práticas comerciais como geopricing e geoblocking, as quais empregam o uso de dados pessoais e dados de conexão dos consumidores para o direcionamento da oferta de produtos e serviços no mercado de consumo. Conceitos como o de Stefano Rodotà (corpo elettronico) ou de Roger Clarke (digital persona) repercutem diretamente na aferição dos impactos jurídicos das tecnologias digitais emergentes.

Inovações tecnológicas geram mudanças culturais. Uma delas - intensamente presente, mas nem sempre notada - é a superdocumentação que existe em nossas vidas. Todos andamos com câmeras e máquinas fotográficas potentes na palma da mão (smartphones), lidamos cada vez mais com tecnologias de rede, como a geolocalização, por exemplo. Aliás, parece claro que algoritmos e códigos-fonte têm, no século XXI, função cada vez maior de regular comportamentos. Nesse contexto, algo parece certo: os cidadãos não conseguem controlar, de modo efetivo, o fluxo de dados pessoais atualmente (nestas primeiras décadas do século XXI). O fluxo de dados é incessante e não conhece limitação geográfica. Os titulares de dados, nesse sentido, são vulneráveis, ou talvez até hipervulneráveis.

Em uma sociedade na qual as informações se tornam a riqueza mais importante, assevera Stefano Rodotà que a tutela da privacidade contribui de forma decisiva para o equilíbrio dos poderes. Isso porque o fim da privacidade não representa apenas um risco para as liberdades individuais, mas pode também conduzir ao fim da democracia. A privacidade constitui um elemento fundamental da cidadania dos novos tempos, da "cidadania eletrônica".

Ademais, diante da possibilidade dos dados pessoais do morto serem coletados por empresas, a partir de redes sociais, textos, e-mails, mensagens, imagens etc., permitindo-se reconstrução digital póstuma da voz e da imagem  - a exemplo da publicidade ocorrida por meio da reconstrução digital de imagem e da voz do falecido pai do jogador Zico - , doutrinadores como Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Filipe Medon, Fernanda Schaefer e Frederico Glitz têm ressaltado a necessidade de se discutir a autodeterminação corporal após a morte e direitos relacionados à herança digital, dando-se, ainda, um passo além, para refletir sobre a tutela da identidade pessoal e valores existenciais do morto.9

Essa discussão enquadra-se no contexto dos bens da personalidade como bens digitais existenciais, conforme defende Bruno Zampier, em trabalho pioneiro no Brasil,10 ao apresentar a ideia de um testamento digital (digital will) formulado a partir de serviços disponibilizados por sites específicos na Internet, ou mesmo por um testamento particular regido pelo Código Civil. O autor defende a possibilidade de haver uma diretiva antecipada da vontade para este fim.

No setor da saúde, desenvolveram-se, nos últimos anos, diversas soluções de big data e Inteligência Artificial em aplicativos de smartphones e wearable devices (tecnologias "vestíveis") - para gerenciamento de medicamentos e monitoramento frequente da condição física e mental, dieta e exercícios físicos -, que coletam inúmeras dados pessoais e analisam sinais vitais, batimentos cardíacos, temperatura, humor, cognição, atividade física etc. Por isso, um dos maiores receios com o implemento de novas tecnologias na Medicina, segundo afirmam Nicholson Price e Roger Allan Ford,11 refere-se à privacidade e proteção de dados pessoais sensíveis, pois uma quantidade imensa de informações sensíveis é coletada e, ainda, pode ser eventualmente compartilhada ou tratada de forma irregular, o que aumenta o potencial de vazamentos de dados e de danos mediatos e imediatos aos seus titulares.

Frank Pasquale relata evento ocorrido em 2008, nos Estados Unidos, em que os dados de prescrição médica estavam sendo utilizados no mercado de seguros individuais, pois as farmácias repassavam a relação de compras de remédios às seguradoras.12 Com a coleta de milhões de informações de pedidos, as empresas readequavam suas políticas, a fim de excluir da cobertura algumas doenças e impor cobranças mais altas do prêmio a determinadas pessoas. Ainda, pode-se cogitar a possibilidade de empresas atribuírem determinadas condições médicas quando a pessoa faz algumas pesquisas on-line sobre uma doença, preenche algum formulário e acaba associado a essa doença em bancos de dados comerciais.

Surgem cada vez mais criativas formas de coleta e tratamento de dados pessoais, o que renova, ininterruptamente, a necessidade de mecanismos para assegurar o direito à autodeterminação informativa como instrumento de promoção da pessoa. Inclusive, visando compatibilizar o assédio irrefreável das empresas que atuam com dados para realizar práticas abusivas de mercado, há quem defenda que a responsabilidade civil pela perturbação do sossego na Internet é um caminho viável. Por meio de uma nova garantia fundamental chamada "habeas mente", concretizar-se-ia, segundo Arthur Basan, os direitos à autodeterminação informativa e à privacidade.13

O marco da discussão sobre a proteção dos dados pessoais como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro é o julgamento pelo STF, em 2020, no âmbito de cinco ações diretas de inconstitucionalidade - ADI 6.387, ADI 6.388, ADI 6.389, ADI 6.390 e ADI 6393 -, que suspendeu a eficácia da MP 954/2020, a qual autorizava a transferência (para o IBGE) de toda a base de dados dos usuários de telefonia fixa e móvel do Brasil. O Supremo, na oportunidade, reconheceu o direito fundamental à proteção de dados (assinale-se que a decisão do STF foi anterior à vigência da Lei n. 13.709/18 - Lei Geral de Proteção de Dados). Posteriormente, o Congresso Nacional aprovou a PEC incluindo a proteção de dados pessoais no rol do art. 5º da Constituição Federal, reconhecendo de modo explícito sua qualidade de direito fundamental. Assim, o art. 5º, inc. LXXIX, passou a dispor que "é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Frise-se, contudo, que a comunidade jurídica já vinha anteriormente reconhecendo o direito à proteção de dados como um princípio implícito no ordenamento brasileiro.

Por fim, vale um destaque: a polifuncionalidade da responsabilidade tem merecido especial destaque na doutrina brasileira, especialmente por Nelson Rosenvald, no contexto de tecnologias digitais emergentes e na atividade de tratamento de dados pessoais, tendo em vista a tendência de irreparabilidade de danos à privacidade, identidade pessoal, liberdade e igualdade, além de existir notável potencial de uma imensa quantidade de pessoas ser atingida.14

O art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual "aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Contudo, esse é apenas um dos sentidos da responsabilidade, e os demais encontram-se ocultos no texto legal. Defende-se uma nova concepção da responsabilidade civil proativa no tratamento de dados pessoais. É preciso ser superada a visão do ordenamento positivo como mero impositor de sanções negativas, a partir de normas com funções protetoras ou repressivas, adotando-se, assim, um espectro voltado a sanções positivas, isto é, trazer incentivos para que o possível ofensor aja de forma a evitar ou mitigar o dano, a partir do cumprimento das diretrizes estabelecidas na lei. Essas mudanças também ilustram a evolução das legislações sobre proteção de dados em direção a um regime de proteção de privacidade mais preventivo e proativo.15

Em que pese os parâmetros de conduta dos agentes de tratamento de dados pessoais elencados no art. 50 e 51 da LGPD não possuírem previsão de natureza cogente, há parcela da doutrina brasileira que entende o seguinte: caso esses parâmetros sejam adequadamente seguidos, deverão ser considerados para os fins de mitigação de eventual responsabilização administrativa ou civil.16 Isso porque é tempo de "alargarmos os horizontes e investirmos em uma função promocional da responsabilidade civil, na qual a tônica será a aplicação das sanções premiais" - isto é, para além de compensar, punir e prever danos, a responsabilidade civil deve "criteriosamente recompensar a virtude e os comportamentos benevolentes de pessoas naturais e jurídicas".17

No direito médico, com a recente publicação no Brasil da lei 14.510/2022, reforçou-se a importância da governança de dados de saúde e, no âmbito da Telemática em Saúde (subdividida, a partir da sua finalidade, em Telessaúde e Telemedicina), serem implementadas práticas e estratégias voltadas para usar os meios telemáticos de forma mais segura e eficaz. O princípio da responsabilidade digital, apontado como princípio informador da Telessaúde no art. 2°, da lei 14.510/22 (art. 26-A, IX, da lei 8.080/90), direciona-se, segundo Fernanda Schaefer, "ao que se entende por accountability, parte importante da governança de dados (plano ex ante no qual se insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil também para os parâmetros regulatórios preventivos".18

O objetivo é ampliar o espectro da responsabilidade, por meio da inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post. Nesse sentido, Romualdo Baptista dos Santos é categórico: "a responsabilidade digital ou accountability digital mencionada na Lei da Telessaúde se refere à observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina, além das normas sobre proteção de dados pessoais, a fim de evitar a ocorrência de danos. Se, a despeito de todos esses cuidados, o dano se concretizar, o descumprimento dessas normas é determinante para configuração do nexo de causalidade para efeito do dever de reparação."19

O princípio da accountability, ao estabelecer possíveis caminhos para conciliar a desejável inovação com a necessária segurança jurídica, demonstra como as funções preventiva e precaucional da responsabilidade civil orientam o desenvolvimento tecnológico no setor da saúde, neste primeiro quartel do séc. XXI. Inclusive, José Faleiros Jr. e Nelson Rosenvald explicam que a vertente ex post da accountability atua como um guia para o juiz, norteando a identificação e quantificação das responsabilidades, estabelecendo os remédios mais adequados e sua gradação/dosagem para cada tipo de tecnologia e situação concreta, a partir do reconhecimento da polissemia da responsabilidade civil. Nesse sentido, os doutrinadores ponderaram que, se o causador do dano investe com efetividade em compliance, pode-se cogitar a mitigação (redução equitativa) da indenização, numa espécie de sanção premial por seguir determinados standards de conduta (parágrafo único do art. 944 do CC).20

Ainda, nesse contexto, destaca-se a importante proposição de Hans Jonas, de uma ética da responsabilidade (princípio da responsabilidade). Trata-se de uma tarefa prognóstica e profilática em vista das consequências. A responsabilidade tem um princípio interno, portanto, porque está ligado à capacidade de previsão da consequência. Diante dos novos riscos e desafios tecnológicos, a responsabilidade é, sobretudo, uma forma de evitar que o próprio dano se concretize. Em outras palavras, não se trata de uma responsabilidade por uma ação já cometida, mas um compromisso por fazer ou deixar de fazer algo. A responsabilidade se liga à ideia de precaução em relação aos futuros efeitos ambivalentes da ação presente. De fato, a função compensatória por si só já não é capaz de responder aos reclamos de tutela de direitos fundamentais no contexto das tecnologias digitais emergentes.

Diante dessas breves reflexões, observa-se que todas essas são realidades fantásticas, mas de certa forma, assustadoras. Não se pode negar que existem perigos para as relações humanas. Razão, ciência, humanismo e progresso: ideais do Iluminismo que são notadamente atemporais, conforme aponta Steven Pinker na obra "O Novo Iluminismo: em Defesa da Razão, da Ciência e do Humanismo". Um olhar crítico pondera: as inovações tecnológicas laçam luzes sobre a condição humana, o que evidencia a necessidade de impulsionar o pensamento crítico e o processo contínuo da descoberta e melhoria do conhecimento, bem como o aperfeiçoamento gradual e/ou ressignificação dos institutos e normas. Isso tende a se tornar mais acentuado no futuro. Gostemos ou não, novos paradigmas se aproximam e é essencial tentar entendê-los.

Em breve, traremos a continuação do presente texto, com análise dos impactos de novas tecnologias no direito civil e médico a partir de uma terceira e quarta perspectivas: 3) O Admirável Mundo Novo da Inteligência Artificial e o ChatGPT; 4) Metaverso e os Gêmeos Digitais (digital twins).

__________

1 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78.

2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

3 MARTINS, Guilherme Magalhães. Direito ao esquecimento na era da memória e da tecnologia. Revista dos Tribunais, v. 1019, p. 109-153, set. 2020.

4 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NEVES, Bruno Torquato de Oliveira. O direito ao esquecimento e a decisão do Supremo Tribunal Federal na Tese de Repercussão Geral n. 786. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, v. 28, p. 193-206, abr./jun. 2021.

5 Sobre o tema, destacam-se os seguintes trabalhos de Michael C. Silva: BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César.; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, 2019.  SILVA, Michael César.; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES Glayder Daywerth Pereira. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Migalhas de Responsabilidade Civil, 10/06/2020.

6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; NOGAROLI, Rafaella. Ser visto para ser lembrado: a publicidade médica em redes sociais como desencadeadora de Responsabilidade Civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 24/05/2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/366566/publicidade-medica-em-redes-sociais-como-responsabilidade-civil. Acesso em 17 jun. 2022.

7 DANTAS, Eduardo. NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020.

8 KFOURI NETO, M; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência artificial nas decisões clínicas e a responsabilidade civil médica por eventos adversos no contexto dos hospitais virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; CÉSAR SILVA, Michael; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito digital e Inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1079-1107.

9 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MEDON, Filipe. A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 19/08/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022. SCHAEFER, Fernanda; FREDERICO, Glitz. A existência da responsabilidade contratual post mortem: Breves notas a partir da série Upload. Migalhas de Responsabilidade Civil, 21/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022.

10 ZAMPIER. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, passim.

11 FORD, Roger Allan; PRICE, W. Nicholson. Privacy and accountability in black-box medicine, Michigan Telecommunications & Technology Law Review, v. 23, p. 1-43, 2016.

12 PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015, p. 26-30.

13 BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais. O direito ao sossego. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 185-201.

14 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022.

15 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022.

16 ROSENVALD, Nelson. O compliance e a redução equitativa da indenização na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 9/03/2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022.

17 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 4. ed. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 210-216.

18 SCHAEFER, Fernanda. Telessaúde e responsabilidade digital na lei 14.510/22. Migalhas de Responsabilidade Civil, 14/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023.

19 SANTOS, Romualdo Baptista dos Santos. A responsabilidade digital na lei da telessaúde. O que é isso?. Migalhas de Responsabilidade Civil, 7/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023.

20 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas.  Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 771-807.