COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas de Direito Médico e Bioética >
  4. Uma breve análise da violência obstétrica à luz da teoria principialista da bioética

Uma breve análise da violência obstétrica à luz da teoria principialista da bioética

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Atualizado às 08:44

Para início da análise, é importante trazer alguns esclarecimentos sobre a violência obstétrica e as suas nuances. Dentre as várias conceituações de violência obstétrica na doutrina e na legislação - nacional e estrangeira -, merece destaque a definição da lei venezuelana, considerando ter sido o primeiro diploma a definir o instituto como uma das 19 formas elencadas de violência contra a mulher.

A conduta passa a ser definida pela Ley Organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia, no ano de 2007, como sendo a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde, que se expressa por meio de tratamento desumanizador, de abuso de medicalização e da patologização dos processos naturais. Isso acaba por resultar em perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.

Apesar de hoje ser muito claro que a violência pode ser perpetrada por outros agentes que não os médicos ginecologistas e obstetras, a polêmica acerca do uso do termo "violência obstétrica" permanece atual, sendo considerada pelo Conselho Federal de Medicina e pela Febrasgo como inadequada. Em meados de 2022, a Febrasgo considerou a expressão preconceituosa, seguindo a linha do Parecer 32 do CFM que entendeu se tratar de expressão "[...] impregnada de uma agressividade que beira a histeria".

Emblemática é a acusação de que as mulheres são histéricas ao acusar um sistema que, como em diversos outros momentos históricos e por diferentes meios, controla os corpos femininos. Ao término de um século de freudismo, a histeria continua intimamente ligada à feminilidade, e as diversas tentativas de controle dessa corporeidade, conceitual ou não, por meio de acusações, muitas vezes, de suposto desequilíbrio e de falta de capacidade para tomar decisões1.

Justamente nesse ponto, reside uma grande premissa dos estudos acerca da violência obstétrica: a autonomia. A histeria foi uma forma de manifestação da submissão à qual o sexo feminino estava exposto e foi desaparecendo a partir da emancipação das mulheres e a constante busca por autonomia2, seja no âmbito social, econômico, intelectual ou, como é o caso do presente estudo, no tocante à capacidade de decidir sobre o próprio corpo.

Seguindo a linha de Bourdieu, no que se referente à violência simbólica, a visão androcêntrica - centrada no masculino - impôs-se como neutra, ratificando a dominação masculina sobre a qual se alicerça o patriarcado3. Assim, em diversos seguimentos, a figura masculina atua como dominante, seja em termos numéricos, seja em termos de acesso aos instrumentos de controle e poder.

Por isso, faz-se importante uma construção baseada nos estudos da chamada "medicina da mulher" provada por meio de dados estatísticos e de fundamentação teórica o fardo do corpo sobre as existências femininas4. Isso transita em diversos campos, dentre os quais, destacam-se questões de saúde mental, de saúde pública, dos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo os direitos de gestar e de parir de forma digna.

Dito isso, resta traçar um paralelo desse panorama com os estudos da Bioética Principialista5. Necessário compreender que a proposta principialista como uma teoria Bioética não apenas remonta às origens da própria disciplina como exerce grande influência nos códigos de ética das diferentes profissões na área da saúde até hoje. Apesar de ser alvo de críticas, é inegável que a proposta de Beauchamp e Childress de uma teoria ética, baseada em princípios morais, representa um grande passo para o estudo da bioética6.

Outras correntes baseadas nesses princípios surgiram posteriormente em decorrência de críticas à vertente principialista clássica. Com o passar do tempo, outros princípios se somaram aos clássicos princípios da Bioética de Beauchamp e Childress, merecendo destaque (e leitura posterior)  a abrangência dos valores contidos na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada pela UNESCO7, a qual amplia o rol dos quatro princípios que guiam a Bioética Principialista clássica, quais sejam: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça.

Apesar das diversas significações de autonomia, pode-se estabelecer um ponto em comum entre praticamente todas elas, elo esse que se refere às duas condições essenciais para pensar em autonomia, quais sejam: a liberdade - independência de influências controladoras -; e a qualidade de agente - capacidade de agir intencionalmente. Mais uma vez, faz-se necessário considerar a diversidade de valores incorporados ao termo autonomia, o qual denota diversos outros significados, que não convêm serem aqui explicitados de forma mais acentuada, tendo em vista o recorte adotado.

Segundo a obra de Beauchamp e Childress, o termo autonomia adquire sentidos diversos, tais como: autogoverno, direitos de liberdade, privacidade, escolha individual, liberdade da vontade, seleção do próprio comportamento e pertencimento a si mesmo8. Pertencer a si própria no âmbito do gestar e do parir exige necessariamente dois fatores importantes: um deles seria a informação, necessariamente atrelada a uma decisão autônoma, na medida em que decidir exige instrução e compreensão acerca das causas e das consequências de um ato; e o segundo elemento seria a medicina baseada em evidências.

Faz-se aqui um paralelo entre a medicina baseada em evidências e o princípio da beneficência; este refere-se à obrigação moral de agir em benefício de outros, configurando-se como uma obrigação de ajudar outras pessoas, promovendo seus interesses legítimos e importantes9, o qual deve ser assegurado em consonância com o princípio da autonomia, sob pena de configurar-se uma situação paternalista. Essa, por sua vez, incide diretamente sobre os corpos femininos, ocultando informação e desrespeitando a autonomia da paciente em prol de uma suposta beneficência não lastreada em evidências, que, por vezes, configura-se como maleficência, a qual será analisada à luz da não-maleficência.

O princípio da não-maleficência se traduz na máxima de não causar o mal ao outro intencionalmente, assemelhando-se, dessa maneira, ao princípio da beneficência, que impõe prestações positivas no sentido de assegurar que o indivíduo não venha a sofrer danos. "[...] Determina o não infringir qualquer mal intencionalmente dele decorre a regra de fidelidade, entendida como a obrigatoriedade de manter as promessas e, o limite [...] de procurar sempre o bem da pessoa"10.

Nesse sentido, importante é a análise do que Daniel Serrão chama de Aconselhamento Ético, o qual corresponde à orientação para a maximização do acerto nas decisões do outro, protegendo-os dos possíveis riscos e perigos ou erros e maximizando a sua capacidade11. É recomendado, pois, no âmbito da obstetrícia, que o profissional de saúde exerça o aconselhamento de forma muito habilidosa sob pena de converter-se em uma imposição, transformando-se, de um conselho elaborado, a propostas que devem ser acatadas, o que, por vezes, incide nas vias de parto ou na tolerância de medidas que se caracterizam violentas.

Importa esclarecer que a violência obstétrica, nitidamente associada à não-maleficência, pode ser ilustrada, por exemplo, pelos protocolos e doutrinas atualizadas no âmbito médico, os quais desaconselham de forma expressa uma série de medidas populares no âmbito obstétrico. Nesse sentido, em 1996, a OMS desenvolveu uma classificação das práticas comuns na condução do parto normal, orientando para o que deve e o que não deve ser feito nesse procedimento, elencando algumas práticas claramente prejudiciais ou ineficazes. Aconselhou a OMS que determinadas condutas, embora habituais, fossem eliminadas, tais como: infusão intravenosa de rotina no trabalho de parto: posição de litotomia (mulher deitada) corriqueiramente adotada; esforço de puxo prolongado e dirigido; esforço de puxo prolongado e dirigido; e exames vaginais repetidos ou frequentes.

Assim, em sede de compreensão do cenário coletivo no qual se insere a violência obstétrica, marcado por cirurgias cesarianas eletivas que chegam a 88% dos nascimentos, enquanto, na rede pública nacional, esse índice representa 46%, ambos os cenários com índices superiores ao recomendado pela OMS12. Trata-se, pois, de um cenário marcado por intervenções médicas, medicamentosas, não esclarecidas e, por vezes, não conscientes dos riscos atrelados à decisão, mesmo nas hipóteses nas quais a mulher pode exercê-la no tocante ao parto.

A informação é elemento necessário para assegurar uma experiência digna e percebida como positiva, podendo decidir de maneira esclarecida e consciente, o que, por vezes, não lhes é assegurado no Brasil, seja pela ausência de recursos técnicos e hospitalares, seja pela inacessibilidade de informações acerca de direitos reprodutivos e das diretrizes brasileiras acerca do parto seguro para além do conhecimento técnico da doutrina mais recente e baseada em evidências, analisada a partir da aplicação do princípio da justiça.

A Justiça se traduz na obra de Beauchamp e Childress como um princípio relacionado à erradicação de formas de exclusão social, negando qualquer forma de discriminação baseadas em características dos sujeitos, exemplificando na própria obra uma possível distinção de gênero como sendo uma violação ao dito princípio. Conduz a obra para a sugestão de políticas públicas que levem em consideração raça e gênero em prol de uma assistência digna, justa e igualitária.

Para além da desigualdade estruturada pelo patriarcado e os julgamentos e responsabilidades atribuídas à mulher no que se refere à condução da sua gestação e parto, muitas vezes, estão as gestantes e as parturientes desassistidas e desamparadas em diversos aspectos. Algumas mulheres abandonadas por parceiro íntimo, por equipe técnica e sem acesso à informação atualizada e baseada em evidências que possa fazê-la compreender e subsidiar a sua decisão acerca da condução da gestação sem relegá-la ao médico ou ao profissional de saúde que a "acompanha" (ainda que de forma pontual).

Isso porque não se pode falar de violência obstétrica, de princípios bioéticos, ou de diversos outros temas existenciais relacionados ao Biodireito, sem mencionar as questões de gênero, de raça e de todas as adversidades que delas decorrem. São muitas as mulheres atravessadas pelas mais diferentes desigualdades, vulnerabilidades e irregular acesso a instrumentos de poder e de informação, mas todas elas estão imersas em um cenário sistêmico de institucionalização do parto que coloca esse momento como um campo de legitimação de intervenções que "desnaturalizam" o ato de gerar uma vida.

Gestar e parir são processos naturais, por vezes, cercados de mitos, mistérios e desatualizações que interferem diretamente nos valores de autonomia e beneficência, muitas vezes, autorizando uma conduta que conduz a uma prática maledicente. A não-maleficência caracteriza-se por condutas desaconselhadas e sem evidências científicas, as quais geram (ou estão propensas a gerar) danos e agravos em saúde física e/ou mental. Já, no tocante à Justiça, é preocupante (continuar a) observar um cenário de preponderância de uma cultura médica intervencionista em detrimento da observância de aspectos físicos, emocionais, econômicos e sociais que atuam como fatores impeditivos ao estabelecimento de um processo que considere a autonomia e a dignidade das mulheres13.

----------

MICHELS, A. Histeria e feminilidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online], v. 4, n. 1 pp. 33-51, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-14982001000100003.

MURIBECA, M. M. M. Da problemática sedução da histeria à enigmática sedução do feminino em Freud. Estud. psicanal.,  Belo Horizonte, n. 39, p. 67-79, jul. 2013. Disponível aqui. Acesso em:  28 jul.  2022.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helene Kühner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

4 MARTINS, A. P. V. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004.

BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Princípios de Ética Médica. São Paulo: Loyola, 2002.

5 DEJEANNE, S. Os fundamentos da bioética e a teoria principialista. Thaumazein - Revista on-line de filosofia, Santa Maria, RS, v. 4, n. 7, p. 32-45, jul. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2014. p. 34

Organizações das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Tradução para o português: Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, 2005.

BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002. op cit.

DANTAS, I. Constituição e bioética (breves e curtas notas). In: SARLET, I. W; LEITE, G. S. (orgs.). Direitos fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008.

10 NEVES, Maria do Céu Patrão; OSSWALD, Walter. Bioética Simples. Lisboa: Verbo, 2008, p. 85/86.

11 SERRÃO, Daniel. Aconselhamento Ético. In: ASCENÇÃO, José de Oliveira (org.). Estudos de Direito da Bioética, v. III. Coimbra: Almedina, 2009.

12 Leal, Maria do Carmo e Gama, Silvana Granado Nogueira daNascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública [online]. 2014, v. 30, n. Suppl 1 [Acessado 28 Agosto 2022] , pp. S5. Disponível aqui.

13 GRIBOSKI, R. A.; GUILHEM, D. Mulheres e profissionais de saúde: o imaginário cultural na humanização ao parto e nascimento. Texto contexto - enferm., Florianópolis, v. 15, n. 1, mar. 2006. Disponível aqui. Acesso em: 27 nov. 2009.