Validade e eficácia da procuração para cuidados de saúde no ordenamento jurídico brasileiro*
segunda-feira, 11 de julho de 2022
Atualizado em 8 de julho de 2022 14:20
"Não é pelo facto de alguém se ter tornado agora incapaz
que se tem autoridade para desrespeitar a narrativa pessoal
que transporta consigo e que lhe possibilitou ter uma vida
biográfica e não meramente biológica."
Laura Ferreira dos Santos
Considerações iniciais
João é um filósofo de 50 anos de idade, saudável, no pleno gozo de suas faculdades mentais. Ao longo de sua carreira, dedicou-se aos estudos da morte e do morrer. Ciente de sua própria finitude e dos problemas éticos e jurídicos que envolvem a tomada de decisão em fim de vida, João dirige-se à um Tabelionato de Notas e lavra, em 13.01.2014, uma procuração para cuidados de saúde nomeando seu melhor amigo, Pedro, como seu procurador, dando a ele amplos e irrestritos poderes para tomar decisões acerca dos cuidados de saúde quando e se João ficar gravemente doente e impossibilitado de se autodeterminar.
No dia 20.10.2020, João sofre um grave acidente de carro e fica em estado vegetativo, impossibilitado de manifestar-se sobre seus cuidados de saúde. Pedro, então, apresenta no hospital a procuração para cuidados de saúde lavrada e, 45 dias depois, toma ciência de que o documento fora declarado ineficaz por um magistrado, nos autos da ação judicial de curatela de João, ajuizada por Maria, esposa do paciente.
A decisão judicial foi motivada da seguinte forma: "segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a procuração perde efeito com a incapacidade do mandante e, portanto, Pedro não tem direito de tomar nenhuma decisão sobre os cuidados de saúde de João."
Esse é um caso que eu inventei, inspirada em um caso real que tem sido veiculado pela imprensa brasileira. Quero, com essa ficção, analisar a validade e a eficácia da procuração para cuidados de saúde no ordenamento jurídico brasileiro.
Breves notas sobre os documentos de Diretivas Antecipadas
A ideia de que o indivíduo tem o direito de decidir, prospectivamente, sobre quais os cuidados de saúde ele gostaria de receber quando e se, no futuro, estiver impossibilitado de manifestar vontade surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial, com o reconhecimento dos direitos à vida e à liberdade pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Em paralelo a esse reconhecimento, a relação médico-paciente sofreu profundas alterações, de modo que o modelo hipocrático paternalista de tomada de decisão foi, gradativamente, dando lugar ao modelo autonomista e, mais recentemente, ao modelo solidário/compartilhado.
O modelo autonomista pretendeu dar ao paciente o protagonismo na tomada de decisões de saúde e embasou o surgimento do consentimento informado e também dos documentos de diretivas antecipadas. Enquanto o consentimento informado cuida da manifestação de vontade para um procedimento/tratamento/cuidados de saúde que o paciente necessita no momento presente; os documentos de diretivas antecipadas, surgidos dos EUA na década de 1960, tratam de manifestações sobre situações futuras e eventuais, as quais o outorgante vislumbra por meio de sua imaginação, com o objetivo de autodeterminar-se prospectivamente.
Atualmente, reconhece-se haver sete espécies de documentos de diretivas antecipadas: testamento vital, procuração para cuidados de saúde1 (também conhecida como mandato duradouro), ordens de não reanimação, diretivas para saúde mental, diretivas para demência, documentos de recusa terapêutica e plano de parto2.
O direito à manifestação prévia de vontade para cuidados de saúde tem sido reconhecido nas últimas duas décadas no Ocidente. Países como Espanha3, Portugal4, Alemanha5, Reino Unido6, França7, Itália8, Argentina9, Uruguai10 e Colômbia11 aprovaram leis que conferem validade e eficácia a documentos de manifestação antecipada de vontade em matéria de saúde, conferindo inclusive a eles força cogente diante da oposição de terceiros.
Todavia, apesar de crescente nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, o reconhecimento da autonomia prospectiva e, consequentemente, da validade e eficácia dos documentos de diretivas antecipadas, como um dos reflexos do direito à autodeterminação, ainda é incipiente no Brasil.
Procuração para cuidados de saúde x representação legal x contrato de mandato
A procuração para cuidados de saúde é "um documento que permite a um adulto competente designar uma pessoa - um procurador - que será autoridade a dar ou retirar consentimento para cuidados de saúde quando o outorgante perder a competência mental"12. Paula Távora Vítor afirma que o procurador de cuidados de saúde é um representante voluntário "e que, portanto, decide no interesse deste [representado], tendo em conta, na medida do possível, os seus desejos reconhecíveis".
Percebe-se, assim, que a pessoa que faz uma procuração para cuidados de saúde está, em verdade: (i) dizendo para o ordenamento jurídico vigente que ela não concorda em ser representada, nos seus cuidados de saúde, pelas pessoas escolhidas pela lei (representação legal); (ii) reconhecendo que, desde o Estatuto da Pessoa com Deficiência, o curador (representante legal) deixou de ter poderes decisórios sobre situações existenciais; (iii) assumindo que deseja ter o controle de seus cuidados médicos, nas situações em que não puder mais se autodeterminar, situações estas em que será substituída pelo procurador para cuidados de saúde, pessoa da sua escolha e confiança.
Neste contexto, não deve prosperar eventual aplicação análoga das normas do contrato de mandato à procuração para cuidados de saúde, na medida em que a função dos institutos é completamente distinta. A lógica legislativa do referido contrato alicerça-se na função patrimonial do mesmo e, sob esta, faz total sentido que a procuração - instrumento do contrato de mandato - perca efeito em caso de incapacidade do mandante. Em contrapartida, a procuração para cuidados de saúde alicerça-se na possibilidade de se "avançar paulatinamente no reconhecimento dessa faceta da personalidade humana", entendida como "a autodeterminação preventiva e a delegação do exercício dos direitos de personalidade"13. Trata-se de instituto cuja função é exatamente a representação voluntária da tomada de decisão de saúde, a ser efetivada exatamente nos momentos em que o outorgante estiver privado de sua capacidade decisória.
Aspectos jurídicos da procuração para cuidados de saúde
A procuração para cuidados de saúde deve ser compreendida como um negócio jurídico unilateral de caráter existencial - uma vez que regula situação jurídica subjetiva pessoal - cuja função é a representação voluntária diante da incapacidade decisória do outorgante. Estas situações configuram o que Stefano Rodotá chama de indecidibile per il legislatore14, ou seja, um espaço determinado pelo constituinte em que as escolhas acerca dos direitos de personalidade são próprias do sujeito, não podendo sofrer limitações externas.
Maria Celina Bodin de Moraes15 ensina que a dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral de tutela da personalidade humana e que, portanto, deve permear todas as relações públicas e privadas. A partir dos ensinamentos de Moraes, Rose Melo Venceslau Menezes defende que, para a concretização dessa cláusula, deve ser "garantida pelo ordenamento a promoção da sua própria personalidade através da prática de atos de autodeterminação que podem assumir a forma de qualquer situação subjetiva"16.
A teoria tradicional dos negócios jurídicos aponta como pressupostos de validade do negócio jurídico a capacidade do agente, o objeto lícito, possível, determinado ou determinável e a forma prescrita ou não defesa em lei17. E como fatores de eficácia tudo aquilo que não o integra mas contribui para a obtenção de resultado visado18, como, por exemplo, a condição, o modo/encargo e o termo. Significa dizer que apenas negócios jurídicos existenciais que violem um dos aludidos requisitos podem ser invalidados pelo Poder Judiciário. No mesmo sentido, apenas negócios jurídicos nos quais inexistam ou pendam os fatores de eficácia podem ter seus efeitos mitigados por esse poder.
Segundo Paula Távora Vítor19, a verificação de validade e eficácia da procuração para cuidados de saúde deve partir da análise da situação do outorgante no momento da feitura do documento. Deve-se avaliar se o mesmo era civilmente capaz e se possuía capacidade para consentir, pois é exatamente a perda dessa capacidade que deverá ser aferida no futuro para determinar o início e, eventualmente, o fim da eficácia do documento.
É este, portanto, o enquadramento jurídico da procuração para cuidados de saúde no Brasil: um instituto cuja função é a representação voluntária para a tomada de decisões nas situações em que o outorgante perdeu a capacidade decisória, configurando-se assim, exercício de autolimitação dos direitos de personalidade, exercício este que deve ser admitido "pela ordem jurídica quando atenda genuinamente ao propósito de realização da personalidade do seu titular."20
Considerações finais
Percebe-se, por todo o exposto, que o documento feito por João adquiriu validade no dia em que foi feito, posto que preenche os requisitos legais de validade do negócio jurídico; e eficácia no momento em que os profissionais de saúde constataram que João estava impossibilitado de se autodeterminar.
Como o direito de ajuizar uma ação no Poder Judiciário é um direito constitucional, uma pessoa que não concorde com o documento conseguirá questioná-lo em juízo. Todavia, tanto o questionamento quanto eventual decisão contrária ao documento - sem que haja razão objetiva para se duvidar da veracidade da escolha - configura-se, na verdade, desrespeito à existência do João. Não se está desrespeitando um papel, está se desrespeitando a essência de um ser humano. E, neste sentido, não importa se quem está desrespeitando essa essência é o médico, o curador, a instituição de saúde ou o Poder Judiciário: o ultraje é o mesmo e igualmente absurdo.
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*O presente artigo é um desdobramento de um post que eu fiz no instagram em 4/7/2022. O post pode ser acessado aqui.
1 O termo em inglês é: durable power of attorney for health care. Na década de 2000, a tradução mais usada era "mandato duradouro", mas a tradução literal foi incorporada na lei portuguesa 25/2012 e, eu, particularmente, tenho há alguns anos preferido usá-la em detrimento de mandato duradouro.
2 Sobre o tema: DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 6 ed. Indaiatuba: Foco, 2022.
3 ESPANHA. Govierno. LEY 41/2002, de 14 de noviembre. Básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica. Boletín Oficial del Estado, Madrid, 15 nov. 2002.
4 PORTUGAL. Lei 25/2012. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022.
5 ALEMANHA. Die gesetzlichen Grundlagen der PatVerfü im Bürgerlichen Gesetzbuch (BGB). Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022.
6 REINO UNIDO. Mental Capacity Act (2005). Disponível aqui. Acesso em 07.07.2022.
7 FRANÇA. Loi n. 2016-87, créant de nouveaux droits en faveur des malades et des personnes en fin de vie. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022.
8 ITÁLIA. Legge 2801. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022.
9 ARGENTINA. Ley n. 26.529 de 19 de noviembre de 2009. Disponível aqui. Acesso em 07 ju. 2022.
10 URUGUAI. Ley 18.473. Disponível aqui, acesso em 07 jul. 2022.
11 COLÔMBIA. Ley 1733 de 2014. Disponível aqui, acesso em 07 jul. 2022.
12 "It allows a competent adult to designate a person-a proxy decision maker-who will have the authority to give or withhold informed consent for medical procedures should the designator lose mental competence." GOLDSTEIN, Mary Kane et. al.Durable Power of Attorney for Health Care: Are We Ready for It?. In: The western journal of medicine. September 1991, v. 155, n. 3, p. 263.
13 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico paciente. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.250-251.
14 RODOTÁ, Stefano. Politici, liberateci dalla vostra coscienza. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022.
15 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
16 MENEZES, Rose Melo de Venceslau. Autonomia privada e dignidade humana. Renovar: 2009, p. 58.
17 AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
18 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 17 ed. Slavador: Editora JusPodivm, 2019, p.713.
19 VÍTOR, Paula Távora. O apelo de Ulisses: o novo regime do procurador de cuidados de saúde. In: Julgar. Edição da Associação Sindical dos Juízes portugueses e da Associación Profesional de la Magistratura. Número Especial. 2014.
20 SCHREIBER, Anderson. Direitos de Personalidade. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 27.