O transhumanismo entre a evolução humana e o abandono da humanidade
segunda-feira, 4 de abril de 2022
Atualizado em 1 de abril de 2022 18:11
O estágio atual da evolução tecnológica não demanda uma reflexão mais acurada para que se constate a imersão de tecnologia em meio aos mais diversos aparatos e atividades com os quais lidamos no cotidiano. O modo como nos tornamos dependentes da internet revela, por si só, ser impensável projetar um futuro em que a tecnologia não se apresente em todos os momentos de nossas vidas.
Muito embora a revolução tecnológica venha provocando intensos impactos sociais, talvez a maior ruptura tecnológica esteja em vias de emergir: propõe-se, por meio do movimento conhecido como transhumanismo, a superação dos limites físicos, morais e intelectuais dos seres humanos. O fenômeno em questão diz respeito a uma perspectiva de investimento na transformação da condição humana,1 no sentido de promover seu aperfeiçoamento a partir do uso da ciência e da tecnologia, com fulcro no aumento da capacidade cognitiva e na superação de barreiras físicas, sensoriais e psicológicas, qualidades marcantemente humanas. A proposta do movimento transhumanista tem por objetivo empregar toda a tecnologia possível para permitir que seres humanos transcendam suas capacidades naturais, o que, em princípio, propiciará o surgimento de uma nova categoria de entes artificialmente aperfeiçoados em relação às limitações que naturalmente demarcam a condição humana.
Vivemos um período de possível - e talvez definitiva - ruptura humanitária, baseada na premissa de que a aceleração da evolução tecnológica se opõe ao "atraso" da evolução orgânica; daí decorre a ideia de que as máquinas têm mais chances de impor seu modelo evolutivo que os organismos vivos, particularmente humanos. Tal como proposta, a revolução transhumanista desafiará a adoção de uma nova escalada terminológica: o Homo sapiens, espécie à qual pertencemos, será alçado à condição de Homo Deus,2 em que o ser humano (ou pós-humano) assume o papel de criador e gestor de seu próprio universo.
Cumpre colher de Nick Bostrom,3 um dos mais destacados adeptos do movimento transhumanista, uma compreensão mais aprofundada do que se deva entender por transhumanismo, que, segundo ele, é uma forma de pensar sobre o futuro baseada na premissa de que a espécie humana, em sua forma corrente, não representa o fim de nossa evolução, mas um estágio inicial. Eis como o autor propõe a definição de transhumanismo:
(1) O movimento intelectual e cultural que afirma a possibilidade e o desejo de melhorar fundamentalmente a condição humana por meio da aplicação da razão, especialmente pelo desenvolvimento e ampla disponibilização de tecnologias que eliminem o envelhecimento e aperfeiçoem enormemente as capacidades humanas intelectuais, físicas e psicológicas.
(2) O estudo das ramificações, promessas e potenciais perigos das tecnologias que nos permitirão superar limitações humanas fundamentais, e o estudo relacionado das questões éticas envolvidas no desenvolvimento e uso de tais tecnologias.
É precisamente na esteira deste pensamento evolucionista, em que o ser humano rompe com sua própria biologia e passa a assumir as rédeas de seus estágios evolutivos vindouros, que emergem movimentos como o transhumanismo: afinal, terminologicamente, o prefixo "trans" significa, em sua etimologia latina, "além" ou "através de"; trata-se de expressar a ideia de uma travessia, de mutação de uma condição a outra.4 Já o termo "humanismo" deve ser aqui compreendido como o que define o cotidiano dos seres humanos, seus atos, seus dilemas, sua vida, enfim. A conjunção semântica exprime, então, o que pode ser qualificado como "além do humano".5
É possível, aliás, identificar duas vias distintas para o transhumanismo, tomada a expressão lato sensu: uma, de viés mais moderado, que propõe o emprego de tecnologias avançadas que visem ao aprimoramento das capacidades humanas; a outra, de caráter mais radical, sugere não apenas a superação de determinadas habilidades humanas, mas a superação da própria natureza humana. No primeiro caso, fala-se em um transhumanismo stricto sensu, que preserva a essência das características humanas, por meio de biomelhoramentos que permitam ampliá-las e aprimorá-las. Na derradeira hipótese, manifesta-se a perspectiva pós-humanista, que propõem um radical e definitivo abandono da condição humana, o que poderia se dar das seguintes formas, entre outras: mediante a fusão do corpo humano com as máquinas, criando-se um ciborgue, isto é, um híbrido composto de partes ora orgânicas, ora cibernéticas; ou por meio da transferência da consciência humana para máquinas ou para ambientes virtuais que independam de suportes físicos, o que significaria, essencialmente, realizar uma ou várias "cópias" da mente humana e transferi-las para um aparato distinto do corpo humano, como um robô, ou mesmo para um aparato integralmente virtual.
Ambos os modelos apresentados encontram correspondência com a proposta transhumanista. A perspectiva transhumanista em sentido estrito e o movimento pós-humanista partem das mesmas bases - a ideia de que os humanos são seres in fieri, que podem e devem ser aprimorados - e compartilham os mesmos meios, nomeadamente a proposta de valer-se da biotecnologia para transgredir as limitações que naturalmente demarcam a condição humana. Estas perspectivas divergem essencialmente quanto aos fins: enquanto o transhumanismo propõe o aperfeiçoamento dos seres humanos, em uma perspectiva (ainda) antropocêntrica, que não descaracteriza ou desnatura a essência das pessoas, o pós-humanismo tem por meta a desconstrução dos seres humanos como os conhecemos, rumo a uma verdadeira constituição de novos seres pós-humanos. Neste sentido, a filosofia pós-humanista pode ser considerada como "pós-antropocêntrica".
Com o fito de atingir concepções mais precisas neste domínio, Nick Bostrom6 aponta que um ser pós-humano é aquele que ostenta ao menos uma capacidade pós-humana, entendida esta enquanto "uma capacidade central geral que excede enormemente o máximo atingível por qualquer ser humano atual que não empregue recursos a novos meios tecnológicos". Esta "capacidade central geral" a que alude o autor pode ser entendida em três vertentes: i) extensão da saúde, isto é, a capacidade de permanecer totalmente saudável, ativo e produtivo tanto mental quanto fisicamente; ii) cognição, entendida como as capacidades intelectuais em geral, tais como a memória, o raciocínio e a atenção, assim como as faculdades especiais como a capacidade de entender e apreciar música, humor, erotismo e espiritualidade, entre outras, iii) emoção, considerada como a capacidade de aproveitar a vida e retribuir de forma afetivamente apropriada às outras pessoas e às situações da vida.
O movimento transhumanista, enfim, parte da premissa de que a essência dos seres humanos não seria pré-determinada e imutável, mas antes maleável e, por isso, manipulável pela criatividade humana. Por isso mesmo, as revoluções propostas pelo movimento transhumanista implicam transformações drásticas em relação a muito daquilo que reconhecemos como sendo intrinsecamente humano: nossos corpos, nossos limites e capacidades, nossa finitude. Este é o momento de indagar que destino vislumbramos para a humanidade. Devemos permitir que a ciência e a tecnologia nos conduzam para além do que até aqui permitiram nossa biografia e nossa biologia? Não se estaria a correr o risco de afetarmos a própria essência dos seres humanos? E o que, afinal, nos torna humanos?
Em sendo admitida a existência de uma natureza intrínseca e unicamente atribuída aos seres humanos, caberia então indagar se as intervenções biotecnológicas pretendidas pelos transhumanistas poderiam desnaturar a condição humana ou, dito de outra forma, desumanizar os seres humanos. Se a resposta for positiva, coloca-se como impeditivo o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
De fato, algumas das propostas pós-humanistas rumam na direção de negar e superar a condição humana, mas o movimento transhumanista não pode ser reduzido a tais fins mais extremistas; afinal, conforme apontado, as vias transhumanistas mais brandas propõem apenas e tão-somente o emprego da tecnologia para superar algumas deficiências e vulnerabilidades e, eventualmente, promover o aprimoramento de determinadas capacidades humanas, sem que tal implique um abandono de nossa natural condição humana.
Assim, em vez de adotar uma posição de categórico rechaço - em nome de uma visão bioconservadora da humanidade - ou de plena e integral aceitação das propostas transhumanistas - a revelar uma perspectiva bioprogressista quanto ao futuro da humanidade -, cabe refletir acerca delas e, de forma ponderada, apontar quais seriam as propostas transhumanistas conformes à dignidade humana e quais podem contribuir para estabelecer uma condição desumana em relação às pessoas.
a) Em primeiro lugar, cabe defender a plena legitimidade das intervenções biotecnológicas de cunho estritamente terapêutico, cujo propósito reside, afinal, em eliminar doenças e propiciar boas condições de saúde aos indivíduos.
Muito embora persistam inarredáveis e graves controvérsias a respeito, cumpre advogar inclusive a legalidade das alterações no genoma que também observem fins terapêuticos, sejam em caráter reativo ou curativo - quando se verificarem patologias que podem ser curadas por meio de intervenções genéticas - ou mesmo preventivo, com o fito de evitar a ocorrência de futuras enfermidades. Neste caso, entende-se que a alteração genética não caracteriza uma violação à dignidade da pessoa humana, sendo antes um modo de promovê-la, não apenas porque o emprego desta técnica corresponderá (presumivelmente) à vontade do paciente ou de seus representantes legais, como também porque o que poderia atentar contra a dignidade - e mesmo à vida - do indivíduo seria não utilizar esta tecnologia, desde que se possa garantir a segurança no seu manuseio.7
Cabe ingressar, neste particular domínio, nos domínios da eugenia, que admite duas espécies, a negativa e a positiva. Enquanto a negativa propõe a erradicação de enfermidades de ordem genética, inclusive e nomeadamente em nascituros, a positiva propõe apenas a possibilidade de uma caprichosa escolha sobre certas características humanas supostamente desejáveis. Por corresponder aos objetivos terapêuticos próprios da medicina, defende-se que a eugenia negativa possa ser levada a efeito, o que, naturalmente, haveria de ser objeto de adequada regulação e fiscalização por comitês de ética e outros órgãos encarregados de assegurar a legitimidade e a higidez de tal prática. A eugenia positiva, lado outro, deve ser veementemente rechaçada, não apenas por não corresponder a quaisquer fins curativos, mas sobretudo por propor a odiosa ideia de que certas qualidades humanas são mais "adequadas" que outras, o que caracteriza, enfim, uma posição de puro e indesejável preconceito.
b) Quanto às intervenções de caráter melhorador, somente seriam admissíveis se não vierem a propiciar posições de vantagem ao indivíduo que viesse a empregá-las em seu proveito, em detrimento de uma potencial desvantagem de terceiros.
O que se objetiva, a partir desta premissa, é evitar que as pessoas que não tenham acesso às intervenções melhoradoras, e mesmo aquelas que prefiram não se submeter a elas, se vejam em situação de desvantagem em relação aos indivíduos aprimorados. Não se vislumbra, ao menos à partida, como dotar uma pessoa de uma capacidade de visão aperfeiçoada possa colocar outras pessoas em condições desvantajosas (ainda que não se descarte a análise de determinadas circunstâncias em concreto); do mesmo modo, a introjeção de um chip subcutâneo que permita a uma pessoa realizar tarefas simples como abrir portas ou acionar aparelhos eletrodomésticos à distância não implicará, em princípio, a potencialidade de danos ou de uma situação de inferioridade concreta por parte de terceiros.
Outra é a perspectiva quando um desportista se vale de técnicas melhoradoras com o propósito de superar seus adversários, ou quando uma pessoa aperfeiçoa suas capacidades intelectuais e se sujeita a um certame para o provimento de cargos, sejam de natureza privada ou pública. A competição, em qualquer destes casos, seria marcantemente desigual, e tal desigualdade não resultaria do mérito, do esforço ou de um dom natural dos contendores aperfeiçoados sobre seus rivais, mas antes das intervenções que artificialmente lhes permitiram superar os demais.
Naturalmente, a análise sobre quais intervenções podem ou não ser de algum modo lesivas à sociedade há de ser ponderada mediante as vicissitudes de cada caso em concreto, mas este pode ser um critério importante para segregar as intervenções transhumanistas que podem ou não ser admitidas.
c) No que toca às posições pós-humanistas, particularmente a hibridização de seres humanos rumo à constituição de ciborgues e a transposição da consciência para suportes extracorpóreos, cabe rejeitá-las de plano, por serem condutas que violam gravemente o princípio da dignidade da pessoa humana, eis que comprometem a própria preservação da espécie e da natureza humanas.
A humanidade encontra-se em um momento crucial de sua evolução, em que cumprirá decidir até que ponto se pretende que a tecnologia possa conduzir os caminhos que serão doravante trilhados. À medida em que as propostas transhumanistas vão assumindo contornos mais reais, reclama-se do jurista - e eventualmente também do legislador - que seja capaz de oferecer respostas aos problemas que se avizinham. O chamado do presente exige que se deva determinar, agora e em definitivo, o que se espera do futuro dos seres humanos.
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1 VILAÇA, Murilo Mariano; DIAS, Maria Clara Marques. Transumanismo e o futuro (pós-) humano. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2014, p. 341-362.
2 Expressão cunhada por HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã (trad. Paulo Geiger). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
3 BOSTROM, Nick. The transhumanist FAQ: a general introduction. World Transhumanist Association, 2003.
4 CAMPIONE, Roger. A vueltas con el Transhumanismo: cuestiones de futuro imperfecto. CEFD: Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho, n. 40, 2019, p. 46.
5 GÓMEZ, Jairo Andrés Villalba. Human transformations through technology: a contribution to a historical study on transhumanism. Revista Logos Ciencia & Tecnología, v. 11, n. 1, jan- mar. 2019, p. 139.
6 BOSTROM, Nick. Why I want to be a transhumanist when I grow up. Medical Enhancement and Posthumanity, eds. Bert Gordijn and Ruth Chadwick (Springer, 2008), p. 1-2.
7 DIÉGUEZ, Antonio. La función ideológica del transhumanismo y algunos de sus presupuestos. ISEGORÍA. Revista de Filosofía Moral y Política n. 63, jul.-dez., 2020, p. 371.