A multifuncionalidade da responsabilidade civil no contexto das novas tecnologias genéticas
segunda-feira, 7 de março de 2022
Atualizado às 08:25
A responsabilidade civil, fonte do direito das obrigações, foi inserida no Código Civil de 2002 como locus preferencial das disfuncionalidades na atividade econômica e nas relações humanas. No sistema do direito privado a interferência do ordenamento no exercício de atos e atividades se dará a posteriori, no momento patológico do dano - função reparatória - apta a corrigir o desequilíbrio econômico subsequente à lesão.
De fato, o art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Dessa forma, sanciona-se o efeito da conduta, e não a conduta em si. A pretensão é neutralizar os efeitos da violação por força da compensação dos danos. Justifica-se, assim, a tendência ao deslocamento do eixo da responsabilidade civil para o fato jurídico lesivo, gerando o sintoma da "proliferação de danos". Porém, considerando o contexto da segunda década do século XXI, há que se questionar se a monofuncionalidade da responsabilidade civil ainda corresponderia ao conceito de "direito de danos". No cenário atual, pretende-se uma responsabilidade civil para muito além dos danos. Não se trata tão somente de um mecanismo de contenção de danos, mas também de contenção de comportamentos.
Diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil. A trajetória do modelo jurídico da responsabilidade civil, no século XXI, deixa de ser linear e estática tornando-se sensível e adaptável à nova realidade em evolução1. Em julgado paradigmático de 2017, das Seções Unidas da Corte de Cassação Italiana,2 considerou-se que "deve ser superado o caráter monofuncional da responsabilidade civil, pois lateralmente à preponderante e primária função compensatória se reconhece também uma natureza polifuncional que se projeta em outras dimensões, dentre as quais as principais são a preventiva e a punitiva, que não são ontologicamente incompatíveis com o ordenamento italiano e, sobretudo, respondem a uma exigência de efetividade da tutela jurídica".
No que tange a atual conjuntura do direito brasileiro, evidenciam-se três funções para a responsabilidade civil: (1) Função reparatória: função de transferência dos danos do patrimônio do lesante ao lesado como forma de reequilíbrio patrimonial; (2) Função punitiva: sanção consistente na aplicação de uma pena civil como forma de desestímulo de comportamentos reprováveis; (3) Função precaucional: com objetivo de inibir atividades potencialmente danosas. A função preventiva, por sua vez, é considerada um princípio do direito de danos e não, propriamente, uma quarta função. Destaca-se, portanto, como consequência necessária da incidência das demais funções, o que não impede sua manifestação autônoma, ou seja, objetivo essencial da responsabilidade civil contemporânea.
De fato, o sentido do termo "responsabilidade" tal qual inserido no Código Civil, é ainda definido em seu sentido clássico como o exato fator de atribuição e qualificação da obrigação de indenizar. Entretanto, esse seria apenas um dos sentidos da responsabilidade, os demais encontram-se ocultos. Ao lado da função compensatória da responsabilidade civil (liability) destacam-se também, nas jurisdições do common law, três outros sentidos: "responsibility", "accountability" e "answerability". Os três diferem do sentido monopolístico que as jurisdições da civil law conferem a liability, e apresentam em comum, o fato de transcenderem a função judicial de desfazimento de prejuízos, conferindo novas dimensões à responsabilidade, capazes de responder à complexidade e velocidade dos arranjos sociais.3
Assim, a liability seria apenas uma das "camadas" da responsabilidade civil, que se destaca na tutela das situações existenciais, uma vez que a definição de regramentos próprios decorre de uma expectativa deontológica (dever-ser) da interação entre inovação e regulação em um ecossistema no qual o risco é inerente às atividades exploradas.4 Por outro lado, os termos responsibility, accountability e answerability, representam o repensar da responsabilidade civil a partir da compreensão das exigências econômicas e sociais de um determinado ambiente. Executam exemplarmente as funções preventiva e precaucional da responsabilidade civil, eventualmente complementadas pela função compensatória (liability)5.
Enquanto a liability se situa no passado - sempre atrelada ao princípio da reparação integral dos danos - a responsibility é perene, transitando entre o passado, o presente e o futuro e, sobretudo, assumindo um viés preventivo que atua em caráter ex ante. É um conceito prospectivo de responsabilidade, um instrumento para autogoverno e modelação da vida, sem regras oficiais, trata-se de uma decisão diária posta a cada pessoa em seu dever de não interferir indevidamente na esfera alheia.
A accountability, por seu turno, amplia o espectro da responsabilidade civil mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança. No plano ex ante, atua mediante a inserção de regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos (métodos regulatórios de governança). Além disso, impõe o compliance como forma de planificação para os riscos de maior impacto negativo.
Já na vertente ex post, a accountability atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para delimitar os remédios mais adequados. Estabelecem-se padrões e garantias instrumentais que atuam como parâmetros objetivos para a mensuração do risco em comparação com outras atividades.
Enquanto liability, responsibility e accountability centram a atenção no agente que conduz uma atividade potencialmente danosa, a answerability se dirige ao outro lado da relação: aos destinatários de responsabilidade. Assim, a responsabilidade como answerability - "explicabilidade" - oferece uma justificativa adicional para a tutela da pessoa humana, destacando-se como mais uma camada da função preventiva da responsabilidade. Trata-se de procedimento recíproco de justificação de escolhas que extrapola o direito à informação, facultando-se a compreensão do processo em sua integralidade. A decisão deve ser explicada de uma forma que o sujeito possa compreender o resultado, e assim se situar em relação ao que deve ser modificado. O desafio está na identificação/compreensão de quem deve responder, por quê e a quem as respostas se destinam. Desse modo, alcança-se a "supervisão" cuja pretensão é a complementação dos métodos regulatórios de governança (accountability). A supervisão permitiria a verificação e controle em um processo, sendo possível separar os comportamentos aceitáveis dos inaceitáveis. Aliás, mesmo quando existem regras, o supervisor pode verificar se o processo agiu de forma consistente dentro delas, sopesando as considerações nas circunstâncias específicas do cenário.
A partir da multifuncionalidade da responsabilidade civil permite-se um olhar singular - mais compreensivo e contemporâneo - em relação aos novos paradigmas decorrentes do exponencial progresso tecnológico. Os avanços científicos na área biomédica geram impactos inegáveis na vida dos seres humanos o que, muitas vezes, implica na inserção de novos riscos sociais que potencializam a ocorrência de novos danos. É nesse contexto que a responsabilidade civil experimenta novas funções, e mostra-se vocacionada a lidar com os desafios que as contínuas mudanças impõem. Afinal, a tecnologia não configura uma força externa sobre a qual não há nenhum controle, como bem reflete Klaus Schwab - autor da expressão "4. Revolução industrial" - não estamos limitados por uma escolha binária entre "aceitar e viver com ela" ou "rejeitar e viver sem ela".6
Tecnologias genéticas que possibilitam a manipulação de sequências do DNA humano, como exemplo, a técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9, rompem com paradigmas e inovam de forma revolucionária, criando desafios inéditos que suscitam adequações do sistema jurídico aos novos anseios. Caracterizada por sua alta eficiência, facilidade de uso e baixo custo, a técnica tem sido definida como ferramenta promissora no mapeamento de doenças graves de caráter hereditário, na maioria das vezes incuráveis. Essas intervenções genéticas, com o propósito de evitar enfermidades, têm gerado expectativa positiva no que se refere às medidas de prevenção e de criação de novas alternativas terapêuticas em humanos.
Entretanto, mesmo considerando seus benefícios terapêuticos preventivos, devido ao seu ineditismo, potencialidade danosa e possibilidade de promover mudanças permanentes no DNA, com eventual impacto sobre as futuras gerações, essa tecnologia tem suscitado intensos debates, particularmente na seara da responsabilidade civil. Decerto, no campo da biotecnologia, não é rara a discussão em torno dos riscos potenciais ou, até mesmo, incertos quando se trata de ineditismo tecnológico como é o caso da técnica de edição gênica - CRISPR/Cas9. Pondera-se não apenas a sua legitimidade, como também suas eventuais repercussões jurídicas. Torna-se essencial a discussão ampliada do tema o que implica em conceber outras estratégias de enfrentamento dos desafios da responsabilidade civil frente aos "novos riscos"7,8. Essas estratégias incluem a visão multifuncional da responsabilidade civil.
Em resposta à complexidade imposta pelos desafios da edição genética, apenas uma das funções da responsabilidade civil (liability - função compensatória) parece-nos insuficiente. Diante dos "novos riscos", potencialmente relacionados à técnica, vislumbra-se para além da função compensatória (liability), os demais sentidos da responsabilidade civil: "responsibility", "accountability" e "answerability".
A "responsibility", como já exposto, relaciona-se ao sentido moral de responsabilidade e assume um viés preventivo (ex ante ao princípio de neminem laedere). No caso da edição genética, além do efeito preventivo da "responsibility" se dirigir ao interventor -significando a inserção de ética no exercício de sua atividade -, percebe-se também sua atuação ex post: garantindo informação ao interventor/ofensor de como deverá se comportar após a ocorrência do dano. Em outro sentido, a "responsibility" assumiria grande relevância, visto que, em função de seu caráter perene, atuaria não somente perante o indivíduo que se submeteu à técnica, mas se perpetuaria pelas gerações futuras e por toda a humanidade. Afinal, estamos diante de riscos imprevisíveis de potencial lesivo transgeracional.
De modo complementar, a "accountability" não se restringe a mera ferramenta de resguardo. Nesse caso, a responsabilidade civil, visivelmente, assume funções de promoção e difusão de direitos fundamentais. No enfrentamento dos desafios que a técnica CRISPR/Cas9 representa, destaca-se, como de extrema relevância, o princípio da precaução. A compreensão de que o risco é o fundamento essencial para que sejam estabelecidos critérios próprios de imputação advindos do desvio dos parâmetros de segurança já é uma constatação. O gerenciamento do estado de incerteza quanto ao risco corresponde a medida proativa no sentido de anteceder o dano. Torna-se inegável a aplicabilidade da função "accountability" no contexto da edição genética. A garantia de maior segurança da técnica fica evidente mediante inclusão de parâmetros regulatórios preventivos eficientes (governança), aliada à evidenciação dos riscos de maior impacto negativo (compliance). Além disso, em caráter ex post, o efeito da "accountability" se manifesta atuando como guia para identificação e quantificação de responsabilidades baseado em parâmetros objetivos - demanda visível das tecnologias genéticas.
Por fim, depreende-se evidente aplicabilidade da "answerability" no cenário das tecnologias genéticas. O conceito de supervisão, alcançado a partir da relação de "explicabilidade" complementa os métodos regulatórios de segurança. Assim, viabiliza-se a análise dos comportamentos aceitáveis e inaceitáveis, sopesando as considerações nas circunstâncias específicas do cenário. E o mais relevante, em relação à edição genética - a supervisão permite as verificações e controles em um processo, mesmo quando o comportamento desejável não pudesse ser especificado com antecedência, como uma regra.
Ao ensejo do vigésimo aniversário do Código Civil, relembramos o culturalismo de Reale, na sua concepção acerca dos modelos jurídicos e da experiência humana concreta de cada sociedade em sua historicidade, no que chama, de "normativismo concreto".9 E é justamente a operabilidade da função preventiva que se alcança ao de forma prospectiva recepcionarmos camadas diversas de responsabilidade com origem no common law, contudo perfeitamente adaptáveis ao estágio atual de relações sociais onde a função compensatória por si só já não é capaz de responder aos reclamos de tutela de direitos fundamentais diante de novas tecnologias.
Graziella Trindade Clemente é pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae/Universidade de Coimbra. Doutora em Biologia Celular e Mestre em Ciências Morfológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico/Universidade de Coimbra. Professora Titular do Centro Universitário Newton Paiva. Professora dos cursos de Pós-graduação em Direito Médico e Bioética - PUCMinas; Direito Médico, da Saúde e Bioética - Faculdade Baiana de Direito. Vice-Coordenadora do COEP - Centro Universitário Newton Paiva. Membro Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Advogada e Odontóloga.
Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Professor permanente do PPGD (Doutorado e Mestrado) do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic, Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC.
__________
1 ROSENVALD, Nelson. 4 Conceitos de Responsabilidade Civil para a 4ª Revolução Industrial e o Capitalismo de Vigilância. In: Ehrhardt, M.J. (Org.). Direito Civil: Futuros Possíveis. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p.175-203.
2 Cassazione Civile, Sezioni Unite., Sentenza 05/07/2017 n° 16601.
3 KROLL. Joshua. A. Accountability in Computer Systems- Oxford Handbook of the Ethics of Artificial Intelligence. Chapter 9, p. 11.
4 GELLERT, Raphaël. Understanding data protection as risk regulation. Journal of Internet Law, Alphen aan den Rijn, v. 18, n. 1, p. 3-15, mai. 2015, p. 6-7.
5 ROSENVALD, Nelson. 4 Conceitos de Responsabilidade Civil para a 4ª Revolução Industrial e o Capitalismo de Vigilância. In: Ehrhardt, M.J. (Org.). Direito Civil: Futuros Possíveis. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p.175-203.
6 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial, São Paulo, Edipro, p, 14, 2016.
7 CLEMENTE, G. T. Responsabilidade Civil, Edição Gênica e o CRISPR. In: ROSENVALD, N.; DRESCH, R. F. V.; WESENDONCK, T. (Org.). Responsabilidade Civil - Novos Riscos. Indaiatuba, SP: Foco, 2019, p. 301-317.
8 CLEMENTE, G.T.; ROSENVALD, N. Edição Gênica e os limites da responsabilidade civil. In: MARTINS, G. M.; ROSENVALD, N. (Org.). Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020, p. 235-261.
9 A norma jurídica não éconcebida como simples estrutura lógico-formal, antes consiste em um "modelo ético-funcional que, intrínseca e necessariamente, prevê e envolve o momento futuro de uma ação vetorial e prospectiva concreta". (REALE, Miguel, O Direito como Experiência, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 191).