Testamento público e seus custos - A exorbitância das custas cartorárias no RJ e a fuga dos testadores
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Atualizado às 11:44
Em tempos de guerra comercial tarifária, em que todos os mercados têm acompanhado com apreensão a nova política comercial dos EUA e retaliações mundo afora, podemos refletir também sobre um problema bem local, certamente de outra magnitude, mas igualmente didático para refletir criticamente sobre aplicações desmesuradas de tarifas, que provocam aumentos desproporcionais de custos negociais, e produzem efeitos nefastos na economia - a exorbitância das custas cartorárias praticadas no Rio de Janeiro.
Vamos ao contexto. Com origem ainda nas Ordenações do Reino de Portugal, a tradição cartorária brasileira se consolidou como elemento de segurança jurídica em nossa sociedade, na medida em que atos jurídicos realizados na presença de tabeliães, profissionais dotados de fé pública a quem são delegadas as atividades notariais e de registro, ganham maior confiabilidade, segurança com relação à identidade das pessoas que os praticam, e rastreabilidade, tendo também a vantagem da impossibilidade de extravio de documentos.
As atividades notariais e de registro são prestadas por pessoas que, com lastro no artigo 236 da Constituição, assumem delegação do Poder Público, agindo, portanto, em nome do Estado, tanto que para iniciarem suas atividades devem ser aprovadas em concurso público de provas e títulos, sendo então nomeadas para assumir suas funções em alguma serventia notarial e registral, mais conhecida como cartório1.
Os tabeliães e registradores são, então, particulares em colaboração com o Poder Público, por sua possibilidade de conferir fé pública a atos privados, sendo enquadrados como agentes públicos, tendo seus atos inclusive fiscalizados pelo Poder Judiciário. Não à toa, o STF, fixou no recurso extraordinário 842.8462, o entendimento de que há responsabilidade direta e objetiva do Estado por danos causados a terceiros em decorrência da atividade notarial, cabendo o direito de regresso contra o causador do dano em caso de dolo ou culpa.
Não obstante, os serviços notariais e de registro são prestados em caráter privado, conforme a letra da própria Constituição, tanto que sua remuneração é variável conforme o lucro obtido pelo cartório a cada mês.
A contrapartida que devida aos tabeliães pela realização de atos que tomam a forma pública recebe o nome de emolumentos extrajudiciais, ou simplesmente emolumentos, cujas normas gerais de fixação são estabelecidas pela lei 10.169/2000, que em seu artigo 1o prevê que os próprios Estados e o Distrito Federal devem fixar o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro.
Assim, cada Estado tem autonomia para fixação das próprias custas e, no Rio de Janeiro, a lei estadual 3.350/99 dispõe sobre as custas judiciais e os emolumentos dos Serviços notariais e de registros no Estado do Rio de Janeiro, atribuindo à Corregedoria Geral da Justiça a regulamentação da matéria, que aprova a atualização da Tabela com os valores cobrados, dentre os quais, aqueles referentes à lavratura de atos públicos.
Atos públicos aqui de forma sucinta entendidos como aqueles que, por força de lei, precisam ser revestidos de forma pública, ou também, queles que, ainda que não necessariamente precisam de forma pública, é possível às partes interessadas a escolha pela realização de atos que poderiam ser particulares, mas que são celebrados perante tabeliães, justamente pelas vantagens de segurança e confiabilidade. Dentre estes atos, estão aqueles relacionados à disposição sobre o patrimônio, que costumam ocorrer em contextos de planejamento sucessório.
No planejamento sucessório, qualquer pessoa, apoiada por profissionais não apenas do Direito, mas eventualmente também de saúde, contadores, administradores, conforme aplicável, tem a oportunidade de, diante da fotografia de sua própria vida, refletir sobre suas possibilidades e desejos, buscando dispor sobre seus interesses existenciais e patrimoniais, bem como a sucessão de seus bens e direitos.
O planejamento atende a diversos objetivos, e permite à pessoa fazer uma gestão mais alinhada aos próprios valores e interesses, e evitar conflitos entre os herdeiros e eventualmente terceiros afetados pelo seu falecimento, por exemplo, se a pessoa for inserida em alguma iniciativa empresarial e participar em certa sociedade, os seus sócios e parceiros de negócios.
Uma das várias ferramentas possíveis a ser empregada no planejamento é o testamento, que, e aqui voltamos aos cartórios, pode se realizar por via particular, mas também pública. Sendo pública, o ato será revestido de fé pública, assegurando a identidade da pessoa testadora, inclusive sendo esta forma a opção possível sob determinadas circunstâncias, por exemplo, quando o testador é analfabeto ou está impedido de assinar por causa permanente ou transitória3, embora a interpretação das regras relativas à forma previstas em lei já tenha sido flexibilizada pelo STJ4.
Como profissional atuante também na área de planejamento patrimonial e sucessório, tenho acompanhado um fenômeno preocupante nos últimos meses: a migração de usuários dos serviços notariais fluminenses para cartórios de outros Estados, bem como a crescente opção pelo testamento particular. Ainda que o testamento particular seja perfeitamente válido quando realizado nos termos de nossa legislação civil, esse movimento pode comprometer, em alguns casos, a segurança jurídica, a validade e a eficácia de disposições de última vontade, sobretudo para idosos e pessoas vulneráveis.
O testamento particular, embora legal, exige maior rigor probatório, enquanto o público, declarado por seu autor e lavrado pelo tabelião na presença de duas testemunhas e arquivado com segurança, é mais resistente a vícios de forma, fraudes e contestações futuras. Por ser público, é mais facilmente reconhecido por qualquer pessoa, e por isto "a forma mais utilizada no Brasil, em virtude da segurança que o cerca, não só porque o notário é dotado de fé pública e tem o dever de esclarecer e prevenir invalidades, mas porque não se corre o risco de ineficácia ou extravio, pois sempre pode ser extraída certidão com mesmo valor."5
Entendidas tais premissas, a escolha entre a forma pública ou particular deveria ser sempre pautada por critérios técnicos, conforme o mais recomendável a cada caso concreto, mais do que econômicos. Contudo, no Rio de Janeiro, o fator econômico tem pesado exorbitantemente na balança.
No Rio de Janeiro, a Corregedoria Geral de Justiça do Estado aprovou, por meio da Portaria CGJ 2.828/2024, a tabela de custas para 20256, estabelecendo que o valor para lavratura de atos deve ser calculado de acordo com o valor declarado, partindo de um mínimo de R$279,92, e chegando ao máximo de R$115.751,59, valor teto para cobranças cartorárias.
A título de comparação, o valor para a escritura pública de um testamento em São Paulo7 é único, portanto, há um valor fixo cobrado de R$2.371,75, independentemente do valor do patrimônio declarado. No Distrito Federal8, o valor também é único, de R$ 353,25 por ato. Pernambuco9 segue também o padrão de valor único, cobrando R$905,66 por ato, assim como Rio Grande do Sul10, que cobra R$720,26 por testamento público. Em Minas Gerais11, que adota, como o Rio de Janeiro, uma tabela variável, o mínimo cobrado é de R$108,93, mas o máximo é de R$5.261,10.
Ainda que estabelecido um teto para lavratura dos testamentos e das escrituras de inventário e partilha de bens, os valores previstos são tão altos que têm provocado fuga dos cartórios do Estado do Rio. Não se ignora que os emolumentos são apenas em parte efetivamente recebidos pelos titulares dos cartórios, que na prática, têm vários 'sócios' em sua receita12.
Mas, fato é que quem paga a conta são os usuários dos serviços. Assim, a todos os interessados que recorrem aos cartórios para a realização de atos públicos. Seja por imposição legal conforme a natureza do ato, ou por opção das partes, a prática de custos totalmente disparatados está provocando a fuga dos cartórios do Rio de Janeiro, com algumas famílias optando por realizar seus atos perante serventias em outros Estados, ou, sempre que possível, renunciando ao caráter público do ato, recorrendo, portanto, a testamentos particulares.
Eventual argumento de que os custos se justificam por melhorias tecnológicas e modernização estrutural não se sustenta. Em outros Estados, as mesmas inovações vêm sendo implementadas sem onerar de forma tão desproporcional os usuários dos serviços cartorários. A lógica arrecadatória parece ter esquecido que a função de natureza pública conferida ao tabelião, que não pode ser desviada sob pena de desnaturar o próprio serviço de interesse público que é delegado aos titulares de cartórios, cujos preços deveriam, por sua natureza, observar os princípios da modicidade, proporcionalidade e eficiência.
Se a autonomia privada, que respalda a realização de atos de organização dos próprios interesses via planejamento patrimonial e sucessório, é um imperativo constitucional em nosso ordenamento, deve-se lembrar que para o seu efetivo exercício exige-se que sejam oferecidas condições jurídicas e materiais adequadas. Quando o custo de lavratura de um ato essencial para a disposição do patrimônio, como o testamento, afasta o cidadão do serviço público, há ofensa direta à própria autonomia privada.
Se a política tarifária fluminense não for revista, o sistema notarial corre risco de esvaziamento, em prejuízo aos usuários dos serviços e às próprias serventias cartorárias. A migração para serventias de outros Estados já é uma realidade, sobretudo em casos de testadores com patrimônio em diversas unidades federativas. Está posta uma 'guerra comercial' que não chega a ser da magnitude deflagrada pela nova administração norte-americana, mas que impacta diretamente a economia fluminense e os interesses de todos os cidadãos da região, inclusive quem aprovou a política tarifária em vigor.
Por fim, ao menos ressalve-se que para atos sem conteúdo econômico, aplicam-se as custas mínimas, de maneira que aqueles que seguem usando a forma pública testamentária, e precisam retificar alguma disposição de última vontade, como por exemplo, substituir a indicação de tutores para filhos menores diante da própria falta, ou a indicação de um testamenteiro em substituição ao originalmente nomeado, seja por falecimento do testamenteiro original, ou qualquer razão que leve o(a) testador (a) a rever a nomeação antes feita, certo é que decisões de caráter meramente existencial, portanto que não modifiquem a livre disposição sobre os bens já realizada, não devem ser cobradas por qualquer valor proporcional ao patrimônio. Da mesma maneira, a lavratura do testamento público se feita apenas para revogação de ato anterior também deverá cobrada em valor fixo, pelas custas mínimas.
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1 As serventias cartorárias, embora amplamente inseridas no contexto da realização de atos jurídicos, não possuem personalidade jurídica, pois é o titular de cada cartório que exerce as funções delegadas em nome próprio.
2 STF. RE 842.846-SC. Rel. Min. Luiz Fux. DJe. 08/07/2020
3 NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Venceslau; org. TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil, vol. 7, direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2020, págs. 142-143.
4 Como no REsp 1.633.254, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em que, por exemplo, se admitiu como válido testamento particular que, mesmo não tendo sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital. No fundamento da decisão, a Segunda Seção destacou que cada situação deve ser analisada individualmente, para que se verifique se a ausência de alguma formalidade é suficiente para comprometer a validade do testamento, em confronto com os demais elementos de prova, e ressaltou que o objetivo a ser alcançado deve ser a preservação da manifestação de última vontade do falecido, de modo que as formalidades legais devem ser examinadas à luz dessa diretriz máxima.
5 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Sucessões, volume 6, 10ª edição, 2024.
6 Disponível aqui.
7 Disponível aqui.
8 Disponível aqui.
9 Disponível aqui.
10 Disponível aqui.
11 Disponível aqui.
12 Por exemplo, o artigo 5º da mesma Portaria CGJ 2.828/2024 prevê:
Art. 5°. Sobre os emolumentos previstos nas Tabelas em anexo incidirão, ainda, os acréscimos:
a) de 20% (vinte por cento), destinado ao Fundo Especial do Tribunal de Justiça - FETJ, criado pela Lei nº 3.217/1999;
b) de 5% (cinco por cento), destinado ao Fundo Especial da Procuradoria Geral do Estado - FUNPERJ, criado pela Lei Complementar Estadual nº 111/2006;
c) de 5% (cinco por cento), destinado ao Fundo Especial da Defensoria Pública Geral do Estado - FUNDPERJ, criado pela Lei Estadual nº 4664/2005;
d) de 6% (seis por cento) destinado ao fundo de apoio aos Registradores Civis das Pessoas Naturais do Estado do Rio de Janeiro - FUNARPEN/RJ, criado pela Lei Estadual nº 6.281/2012, com a atual redação dada pela lei estadual 10.234/23.