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Lições deixadas pelo processo de reforma do Código Civil francês na disciplina de Responsabilidade Civil

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Atualizado em 16 de agosto de 2024 13:03

O Direito Civil francês passou por um processo de discussão para reforma do Código Civil na disciplina de responsabilidade civil que culminou com alterações legislativas que merecem ser consideradas, dado o importante debate sobre a reforma legislativa do Código Civil brasileiro.

Na exposição de motivos da proposta de lei 678, é possível acompanhar a trajetória desse processo de modificação da lei francesa. No texto é referido que a partir dos anos 2000 ganhou força o movimento para a reforma do Código Civil francês no Direito das Obrigações para reforçar a acessibilidade e a segurança jurídica do Direito da Responsabilidade Civil.1

O processo de modificação legislativa francês foi acompanhado de ampla discussão e debate e contou com expoentes da disciplina como coordenadores dos trabalhos. Nessa direção, em 2005 um primeiro grupo de trabalho dirigido por Pierre Catala e Geneviève Viney, entregou um projeto de reforma das obrigações e da prescrição, denominado anteprojeto Catala. Um outro projeto, denominado anteprojeto Terré foi elaborado a partir de 2008 por um grupo de trabalho constituído sob a direção de François Terré.2

Com base nessas reflexões, em julho de 2009, o Senado francês propôs 28 recomendações para uma reforma da responsabilidade civil.3

Somente em 13/3/17 o Ministério da Justiça apresentou um projeto de reforma de responsabilidade civil depois de uma consulta pública realizada no ano de 2016.

A partir desse projeto, e inspirado também no relatório adotado pela comissão de leis do Senado de 22/7/20, que apontou para "necessidade de obter uma reforma do Direito da Responsabilidade Civil esperada e útil", foi apresentada no Senado a proposta de lei 678 para a reforma do Código Civil francês em 29/7/20.4

Todo esse percurso para elaboração legislativa foi acompanhado pela comunidade acadêmica francesa que se ocupou do tema em debates para discutir as mudanças e desafios apresentados pela proposta. Nesse sentido, em 22/10/21, foi realizado um encontro na Universidade de Nîmes, que reuniu diversos juristas com a finalidade de compreender de maneira crítica, a extensão e o impacto da reforma, considerando por exemplo matérias que teriam sido deixadas de lado (como a pena civil) e outras que teriam sido ignoradas (como a inteligência artificial).5

A doutrina francesa, sempre esteve atenta à reforma, publicando importantes trabalhos acadêmicos a propósito do tema, analisando não só o texto proposto, como a efetiva transformação normativa e social provocada pela alteração na hipótese de seu acolhimento pelo legislador, tal como se pode ver, exemplificativamente, pelo artigo publicado por Patrice Jordain, na importante revista Archives de Philosophuie du Droit em volume dedicado especialmente à responsabilidade civil.6

Na sequência do debate sobre a reforma, foi apresentada na Assembleia Nacional Francesa a proposição legislativa 278, com a finalidade de adaptar o Direito da Responsabilidade Civil aos desafios atuais.7 A proposição apresentou um único artigo para modificação do Código Civil, cujo texto propunha alterar o art. 1.253, para incluir um regime de responsabilidade civil objetiva nos casos de perturbação anormal da vizinhança.8

A proposta legislativa transformou-se na lei. 346 de 15/4/249 que efetivamente alterou o art. 1.253 do Código Civil francês, incorporando o sistema de responsabilidade objetiva nos casos de perturbação anormal de vizinhança.10

Ao comentar o dispositivo legal, Philippe Delebecque refere que a modificação legislativa pouco contribuiu, pois considera que a matéria já estava bem regulada pelo direito real de propriedade. Para o autor, ao alterar o texto do Código Civil, o legislador teria criado um "justo título" para um regime especial de responsabilidade civil. No mais, defende que a alteração legislativa não teria trazido outras alterações já que a matéria era pacificada no Direito Francês em razão do princípio estabelecido pela Corte de Cassação segundo o qual: "ninguém deve causar a outros perturbações anormais de vizinhança" (V. Cass. 1ª civ., 19/11/86, 84-16.379: JurisData 1986-702120). Aduz ainda, que o princípio assentado jurisprudencialmente não estabelecia um rol de responsáveis, ao contrário do que agora é trazido no dispositivo legal, que passa a elencar os legitimados, o que faz questionar: Este seria um rol taxativo? Outra questão referida pelo autor é que o parágrafo segundo do dispositivo incluiria uma exceção à responsabilidade civil para os casos de perturbações existentes antes do ato de transferência de propriedade ou de transferência da posse do imóvel, disposição que já era contemplada no art. L112-16 do Código de Construção.11

Numa crítica mais dura, Nadège Reboul-Maupin refere que o dispositivo não representa somente a reprodução da jurisprudência, mas sacrifica os direitos da propriedade no "altar da responsabilidade civil". A autora explica que além de compensar os danos resultantes dos transtornos causados pela perturbação anormal o princípio jurisprudencial permitia por fim à própria perturbação. No seu entendimento, ato tratar da matéria na responsabilidade civil, a alteração legislativa limitaria a extensão da aplicabilidade do princípio.12

Ou seja: Além de não trazer inovação significativa, o art. 1.253 abriu a possibilidade para questionamentos até então inexistentes. Isso demonstra que mesmo uma reforma mínima pode trazer inconvenientes e dúvidas significativas, naturais do processo de interpretação e aplicação da "lei nova".

De fato, depois de um processo de mais de 20 anos de discussão para reformar o Código Civil francês na disciplina de Responsabilidade Civil, que contou com juristas cuja trajetória e importância é reconhecida não só no Direito francês, mas também são referência mundial na matéria, o legislador francês optou por uma reforma pontual, alterando somente um dispositivo que trata de um ponto muito específico, após a profunda análise sobre as reais necessidades de modificação legislativa em face do desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial sobre a matéria.  

Há que se destacar que quanto à reforma ao Direito das Obrigações a opção do legislador francês foi bem diferente, a matéria sofreu alteração legislativa mais profunda, inclusive no que respeita à responsabilidade civil contratual.13

De todo esse cenário, é impossível não revelar espanto ao comparar o tempo dedicado para o processo de reforma no Direito francês, com o brasileiro. O espanto permanece ao considerar a extensão das propostas de alteração legislativa nos dois países (e mais ainda se for analisado o texto efetivamente modificado).

O projeto para a reforma da disciplina de Responsabilidade Civil foi apresentado no Senado francês praticamente 20 anos depois do movimento mais expressivo nesse sentido. Esse tempo é praticamente o da vigência do nosso Código Civil, que se iniciou em janeiro de 2023, sem qualquer comparação com uma lei datada de 1804.   

No passado, o ordenamento francês foi espelho para se alcançar avanços no Direito brasileiro, sobretudo na Responsabilidade Civil.  Agora talvez seja novamente oportuno, olhar para aquele ordenamento para refletir sobre a conveniência, oportunidade e extensão de uma reforma, sob pena de que toda a construção jurídica até aqui desenvolvida seja perdida, ao ser adotada uma legislação completamente "inventiva" em comparação com os grandes sistemas jurídicos atuais, com riscos de grande insegurança jurídica que acompanham o processo de interpretação e aplicação da lei nova.  

E, tratando-se de Responsabilidade Civil, não é demais lembrar: prudência, perícia e diligência, não fazem mal a ninguém!

___________

1 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024.

2 Esses autores possuem produção doutrinária sólida, além de extensa carreira acadêmica nas Universidades Públicas francesas, nas quais o tema tem sido objeto de debate há décadas.

3 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024.

4 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024.

5 O resultado do encontro pode ser conferido em obra coletiva que reuniu textos de diversos especialistas e foi publicada como produto das discussões do encontro realizado na Universidade de Nîmes a se ver: Le Projet de Réforme du Droit de la Responsabilité Civile - Études à la lumière de de la proposition de Loi Sénatorial du 29 juillet 2020. Sous la Direction de Gustavo Cerqueira et Vanessa Monteillet. Paris: Dalloz, 2021. Importante registrar a generosidade do Prof. Gustavo Cerqueira da Universidade de Nîmes, por sua disposição em oportunizar discussões e troca de ideias sobre a reforma do Código Civil francês.

6 JOURDAIN, Patrice. Les enjeux dúne réforme de la responsabilité civile.Archives de philosophie du droit. Tome 63, La Responsabilite. Paris: Dalloz, 2022, p. 277 - 282.

7 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024.

8 "Le propriétaire, le locataire, l'occupant sans titre, le bénéficiaire d'un titre ayant pour objet principal de l'autoriser à occuper ou à exploiter un fonds, le maître d'ouvrage ou celui qui en exerce les pouvoirs qui est à l'origine d'un trouble excédant les inconvénients normaux de voisinage est responsable de plein droit du dommage qui en résulte. 
Sous réserve de l'article L. 311-1-1 du code rural et de la pêche maritime, cette responsabilité n'est pas engagée lorsque le trouble anormal provient d'activités, quelle qu'en soit la nature, existant antérieurement à l'acte transférant la propriété ou octroyant la jouissance du bien ou, à défaut d'acte, à la date d'entrée en possession du bien par la personne lésée. Ces activités doivent être conformes aux lois et aux règlements et s'être poursuivies dans les mêmes conditions ou dans des conditions nouvelles qui ne sont pas à l'origine d'une aggravation du trouble anormal." Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024.

9 Disponível aqui. Acesso em agosto de 2024.

10 Texto do Código Civil francês, disponível aqui. Acesso em agosto de 2024.

11 DELEBECQUE, Philippe, Trobles de voisingage: porqui legiférer? Revue Mensuelle du Jurisclasseur. n. 6, juin 2024.

12 Recueil Dalloz, 18 janvier 2024, p. 65 e ss.

13 A propósito ver DESHAYES, Olivier, GENICON, Thomas e LAITHIER, Yves-Marie. Réforme du droit des contrats, du régime général et de la preuve des obligations. 2ª ed. Paris: Lexis Nexis, 2018; GILARDEAU, Eric. Lémpire du matérialisme juridique sur le contrat. La reforme du contrat dans les codes civils allemand et français.  Paris: L'Harmattan, 2022.