Pessoa idosa com transtorno psíquico: Autonomia e apoio
terça-feira, 9 de julho de 2024
Atualizado em 8 de julho de 2024 12:05
No Brasil, o índice de envelhecimento chegou a 80,0 e isso indica que há 80 pessoas com mais de 60 anos para cada 100 crianças entre 0 e 14 anos. Comparado a 2010, o índice quase dobrou. De acordo com o Censo de 20221, a população brasileira com mais de 60 anos corresponde a 15% e computa o número de 32.113.490. Desse contingente, estima-se que cerca de 1,76 milhão sofre algum tipo de demência.2
Os números demonstram a necessidade de investimento na atenção integral para garantir a todos um envelhecimento pautado na vida digna e ativa, prestigiando-se a independência, saúde e autonomia. Para além das políticas públicas capitaneadas pelos estados, tal qual recomenda a OMS, desde 2015, a sociedade e a família também são chamadas ao dever de respeitar a pessoa idosa e a promover o feixe de direitos que circundam o envelhecimento saudável.
Segundo o Estatuto da Pessoa Idosa, o direito ao respeito "consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, ideias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais" (art.10, §6º). É dever de todos, "zelar pela dignidade da pessoa idosa, colocando-a a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor." (art.10, § 3º). E, nos termos do art.4º. (aditado pela lei 14.423/22), "nenhuma pessoa idosa será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei. Todos têm o dever de prevenir a ameaça ou violação aos direitos da pessoa idosa." (art.4º. § 1º ).
Os direitos acima estão alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis previstos na Agenda 2030, da ONU, em especial, os ODS 3 e 10, relativos à garantia de uma vida saudável e à promoção do bem-estar para todas as pessoas, em todas as idades; bem como à redução das desigualdades e eliminação da discriminação. Esses objetivos visam o empoderamento e a promoção da inclusão social de todos, independentemente de fatores como a idade e gênero. A pessoa idosa tem os mesmos direitos que as demais, não podendo sofrer restrição à sua autonomia ou capacidade por motivo de idade.
Uma vez acometidas de doenças demenciantes serão consideradas pessoas com deficiência e, portanto, destinatárias da CDPD - Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e da lei brasileira de LBI - Inclusão da Pessoa com Deficiência, documentos que reafirmam fortemente o respeito à autonomia, independentemente da capacidade mental (art. 12, item 2 da CDPD e arts.6º. e 84, da LBI).
Por meio da CDPD, a capacidade legal ou capacidade jurídica é assegurada a todas as pessoas (art.12, item 2). Conforme a explicação do Comitê da ONU, instituído pela própria Convenção interpretar os seus dispositivos e fiscalizar a sua aplicação pelos países signatários, em sua Observação Geral 1/143
13. La capacidad jurídica y la capacidad mental son conceptos distintos. La capacidad jurídica es la capacidad de ser titular de derechos y obligaciones (capacidad legal) y de ejercer esos derechos y obligaciones (legitimación para actuar). Es la clave para acceder a una participación verdadera en la sociedad. La capacidad mental se refiere a la aptitud de una persona para adoptar decisiones, que naturalmente varía de una persona a otra y puede ser diferente para una persona determinada en función de muchos factores, entre ellos factores ambientales y sociales. En instrumentos jurídicos tales como la Declaración Universal de Derechos Humanos (art. 6), el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (art. 16) y la Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer (art. 15) no se especifica la distinción entre capacidad mental y capacidad jurídica. El arti'culo 12 de la Convención sobre los derechos de las personas con discapacidad, en cambio, deja en claro que el "desequilibrio mental" y otras denominaciones discriminatorias no son razones legítimas para denegar la capacidad jurídica (ni la capacidad legal ni la legitimación para actuar). En virtud del artículo 12 de la Convención, los déficits en la capacidad mental, ya sean supuestos o reales, no deben utilizarse como justificación para negar la capacidad jurídica.
Segundo essa Observação Geral, a capacidade jurídica prevista pela Convenção engloba a capacidade de gozo (de direito) e a capacidade de exercício (de fato), constituindo-se como um direito inerente à pessoa. Toda pessoa maior com deficiência terá a capacidade jurídica como um direito inerente, do mesmo modo que as demais. Derrogar ou desconsiderar essa capacidade jurídica da pessoa com deficiência, idosa ou não, é um ato classificado como discriminação pela Observação Geral 6 desse mesmo Comitê.4
47. El derecho a la capacidad jurídica es un derecho mínimo, es decir, es necesario para el disfrute de casi todos los demás derechos contemplados en la Convención, incluido el derecho a la igualdad y la no discriminación. Los artículos 5 y 12 están intrínsecamente relacionados, ya que la igualdad ante la ley debe incluir el disfrute de la capacidad jurídica de todas las personas con discapacidad en igualdad de condiciones con las demás. La discriminación mediante la denegación de la capacidad jurídica puede adoptar distintas formas, como en los sistemas basados en la condición, los sistemas funcionales y los sistemas basados en los resultados. La denegación de la adopción de decisiones sobre la base de la discapacidad mediante cualquiera de esos sistemas es discriminatoria14.
Mas o que fazer na ausência de capacidade mental? Nos termos do próprio art. 12, item 3 da CDPD, caberá aos estados signatários a estruturação de medidas de apoio para que a pessoa com capacidade mental reduzida possa exercer a sua capacidade jurídica, sem a derrogação da sua autonomia.
Na explicação do Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, o apoio ao exercício da capacidade jurídica deve sempre respeitar a vontade e as preferências do sujeito apoiado e nunca se consubstanciar em mera substituição de vontade que atribui ao apoiador o poder de dizer, segundo um juízo pessoal, o que será melhor para a pessoa apoiada.
Em sentido amplo, o apoio engloba suportes oficiais e oficiosos, de diferentes tipos e intensidades. O conjunto de amigos e amigas, os parentes, o cônjuge/companheiro(a) configura uma rede de apoio. As medidas de acessibilidade universal adotadas pelas entidades públicas e privadas para facilitar o exercício dos direitos pela pessoa com deficiência podem constituir apoio (art. 9, item 1, alínea f; art. 19, alínea b; art. 24, alíneas d, e). Mas nas situações em que se demanda um apoio ao exercício da capacidade jurídica para a prática de atos da vida civil impactantes no mundo jurídico, haverá que se recorrer aos instrumentos de apoio formal instituídos pelo Estado, como determina o art. 12, item 3 da CDPD.
São os apoios à tomada de decisão, à celebração de atos da vida civil que produzem efeitos jurídicos. Conforme a alínea J, do Preâmbulo da Convenção o apoio pode ser intenso, a depender da necessidade de quem o receberá. Em todo caso, até mesmo nas hipóteses de apoio intenso, a autonomia e a capacidade da pessoa apoiada deve ser respeitada, inclusive, nas situações de crise:
16. El tipo y la intensidad del apoyo que se ha de prestar variará notablemente de una persona a otra debido a la diversidad de las personas con discapacidad. Esto es acorde con lo dispuesto en el artículo 3 d), en el que se describen como un principio general de la Convención "el respeto por la diferencia y la aceptación de las personas con discapacidad como parte de la diversidad y la condición humanas". En todo momento, incluso durante situaciones de crisis, deben respetarse la autonomía individual y la capacidad de las personas con discapacidad de adoptar decisiones.5
Nesse panorama, a pessoa idosa tem assegurados a autonomia e o direito de realizar suas próprias escolhas. Sob um quadro demencial, o apoio intenso deve considerar suas preferências e a sua vontade. O apoiador não pode decidir em nome do idoso apoiado, segundo o que ele próprio julga como sendo o "bem", para submeter a pessoa apoiada aos efeitos jurídicos de sua decisão.
A despeito disso, o que se vê é o apagamento completo da pessoa idosa, em especial, quando afetada por doença demenciante. À revelia de sua vontade, elas são lançadas à curatela total (hoje, revogada), sem um plano específico que coteje suas vontades e preferências a respeito de questões existenciais e patrimoniais circundantes, como possibilita o art. 755, inciso II, do CPC.
O Brasil não estruturou um sistema de apoio adequado à CDPD. Embora a LBI haja instituído a tomada de decisão apoiada, acrescentando o art. 1.783-A ao Código Civil por seu art. 116, manteve a curatela (art. 84, §1º., LBI; art. 1.767, CC), figura substitutiva de vontade que é estabelecida por meio da interdição (art. 747, CPC). Alguns insistem que a curatela seja forma de apoio intenso, mas isso não é correto.
E assim, na falta de apoio mais intenso, as pessoas com deficiência grave são submetidas à curatela, figura que repercute todos os significantes acumulados ao longo de sua história. Conquanto a LBI tenha restringido a curatela aos assuntos negociais e patrimoniais, a jurisprudência do STJ se encarregou de estendê-la às matérias existenciais, como a saúde (REsp 1.998.492 - MG) e o casamento (REsp 1.645.612 - SP). E chancelou a condição de relativamente incapaz àquela pessoa que estiver sob curatela (REsp 1.927.423 - SP), sem considerar o art. 12 da CDPD e os arts. 6º. e 84, da LBI.
Antes disso, porém, o relatório do Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência sobre as medidas adotadas pelo Estado Brasileiro, havia identificado a curatela como um ponto negativo da nossa legislação, recomendando a devida alteração.6 Essa recomendação ainda não foi atendida e, como se vê, na falta de um instrumento de apoio mais intenso, a curatela continua sendo aplicada conforme decisões dos tribunais, em especial, o STJ.
Nesse momento presente, considerando o anteprojeto encomendado pelo Senado Federal, caberia a correção das inconsistências e lacunas da legislação para sua adequação aos comandos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Mas o texto final do anteprojeto de mudança do Código Civil manteve a figura da curatela e não apresentou um apoio judicial mais intenso como aquele que já foi instituído em países da América Latina, como a Colômbia (lei 1.996/19) e a Costa Rica. Igualmente não apresentou adequadas salvaguardas.
A bem da verdade, o anteprojeto do Código Civil em questão menciona a locução "apoios e salvaguardas" no art.4º., parágrafo único7, sem resgatar o que sejam eles no livro de Direito de família, em especial no título IV, que traz a curatela, a tomada de decisão apoiada e a chamada "diretiva antecipada de curatela".
O mais grave é que a pessoa idosa com demência será havida como alguém que não pode manifestar a sua vontade e lançada à condição de absoluta incapacidade, quando vier a ser interditada (art.3º., II).8 Sendo esta solução incompatível com o teor da CDPD, notadamente, os arts. 5 e 12. Reitere-se que, de acordo com as observações gerais 1 e 6 do Comitê instituído pela Convenção, qualquer derrogação da capacidade jurídica de pessoa com deficiência constitui ato discriminatório.
Uma inovação singela do anteprojeto é a diretiva antecipada de curatela, nos arts. 1.778-A e 1.778-B. Mostra alguma importância para ressaltar a vontade e as preferencias da pessoa que antevê uma situação futura de limitação da sua capacidade mental, como um diagnóstico de Alzheimer na fase inicial. Por meio desse instrumento público ou particular, o declarante poderá indicar a pessoa que deseja como seu curador (quando e se for o caso), definir o modo de gerenciamento de suas questões patrimoniais e pessoais, bem como estabelecer cláusulas de remuneração, de disposição gratuita de bens ou de outra natureza.
Mas diretiva orbita somente em torno da curatela, figura agigantada no âmbito dos direitos da pessoa com deficiência e que já foi apontada como inadequada ao propósito da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.
Enquanto isso, a Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara dos Deputados aprovou o PL 9.234/17 que altera alguns dispositivos do Código Civil e do CPC quanto à curatela, em especial para autorizar a pessoa a solicitar a autocuratela e a indicar aquele que deseja como curador. Também propõe a eliminação do termo interdição do CPC, sugerindo que a ação seja simplesmente nominada como curatela. Em que pese a simpatia dessas soluções, ainda não propõem a estruturação de uma medida de apoio intenso, concentrando na curatela, medida substitutiva da vontade, as expectativas de administração da vida e do patrimônio da pessoa com capacidade mental prejudicada.
Continuamos presos à ideia de uma autonomia insular e distantes da autonomia na interdependência ou relacional, albergada pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. A autonomia da pessoa é corolário da dignidade e caberá ao Estado, à família e à sociedade respeitar e fazer respeitar a pessoa sem discriminação de qualquer natureza. Ao aplicador do direito impõe-se a criatividade para engendrar soluções na unidade do ordenamento jurídico, visando otimizar tutela de situações jurídicas existenciais e patrimoniais, de sorte a evitar eventuais conflitos e lesão ou ameaça de lesão aos direitos.
__________
1 Censo 2022: número de pessoas com 65 anos ou mais de idade cresceu 57,4% em 10 anos. Disponível aqui. Acesso em 10/05/2024.
2 Pesquisa realizada na UNIFESP, com recursos da FAPESP, sob coordenação da psiquiatra Claudia Ferri e a neuropsicóloga Laiss Bertola, "Ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência, um conjunto de enfermidades sem cura que, por mecanismos diferentes, causam a perda progressiva das células cerebrais e levam à incapacitação e à morte. A maior parte dessas pessoas - uma fração ainda não bem conhecida que, segundo especialistas, pode superar 70% do total - nem sequer tem diagnóstico, o que as impede de receber tratamento adequado para ajudar a controlar as alterações de memória, raciocínio, humor e comportamento que surgem com a progressão da doença". Disponível aqui. Acesso em: 14/05/2024.
3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general No 1 (2014). Disponível aqui. Acesso em 01/04/2024.
4 NACIONES UNIDAS. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general núm. 6 (2018) sobre la igualdad y la no discriminación. Disponível aqui. Acesso em: 24/04/2024.
5 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general No 1 (2014). Disponível aqui. Acesso em 01/04/2024.
6 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Observações finais sobre o relatório inicial do Brasil. Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Disponível aqui. Acesso em 24/04/2024.
7 "Parágrafo único. As pessoas com deficiência mental ou intelectual, maiores de 18 anos, têm assegurado o direito ao exercício de sua capacidade civil em igualdade de condições com as demais pessoas, observando-se, quanto aos apoios e às salvaguardas de que eventualmente necessitarem para o pleno exercício dessa capacidade, o disposto nos arts. 1.767 a 1.783 deste Código."
8 "Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: II - aqueles que por nenhum meio possam expressar sua vontade, em caráter temporário ou permanente."