Editorial - Migalhas das Civilistas
segunda-feira, 13 de maio de 2024
Atualizado às 09:00
Com enorme alegria e comprometidas com os valores da igualdade, pluralidade, alteridade e amizade, As Civilistas se uniram ao Migalhas para inaugurar essa coluna editorial quinzenal. Nós, as Civilistas, somos uma associação de mulheres dedicadas ao estudo do Direito Civil nas diversas áreas de atuação do direito: advogadas, magistradas, professoras, registradoras, notárias ligadas pelo desejo de aprimoramento técnico e leitura interdisciplinar desse campo do direito, tão fundamental para a sociedade.
Estudamos e aplicamos o Direito Civil, considerando a unidade do ordenamento jurídico, sob uma visão multidisciplinar e atenta às demandas da sociedade contemporânea. Compreendemos o sujeito de direito dos códigos como o sujeito de direitos humanos e fundamentais, razão pela qual apostamos na aplicação do direito civil segundo a legalidade constitucional.
Nosso objetivo primordial é contribuir para a construção e disseminação de um discurso jurídico, político e social que promova a dignidade da pessoa humana, e seus corolários: integridade psicofísica, liberdade, igualdade e solidariedade. Sob essa premissa, buscamos a efetivação da igualdade de gênero e a inclusão de grupos sociais vulneráveis. Se historicamente fomos talhadas para a tarefa do cuidado, esse viés nos inspira a análise cautelosa e globalizada dos institutos, visando à máxima promoção da pessoa humana que, na quadra histórica atual, constitui um valor constitucional.
Não se pode desconsiderar que somente após as duas Grandes Guerras do Século XX, as mulheres romperam a barreira do silêncio e, paulatinamente, passaram a ocupar os bancos das universidades e buscar as carreiras jurídicas. O interesse pela história das mulheres, em geral, é muito recente, remontando às décadas de 1960-70.1 Mais recente é a atuação das civilistas que, no cenário nacional, despontaram apenas a partir da década de 1980. Chega a ser inacreditável que, poucas gerações atrás, simplesmente não havia mulheres presentes nos espaços de discussão e construção do direito.
De fato, como se o direito não dissesse respeito à vida de mulheres, as leis eram feitas exclusivamente por homens. Dentre essas, a partir de um grande esforço, que engajou civilistas de todo o Brasil, pudemos identificar pouco mais de 30. Sem dúvidas que essas mulheres pioneiras tiveram que enfrentar muitas barreiras e preconceitos para se afirmar nestes espaços antes obstruídos para nós. E por isso mesmo, tratamos de expressar-lhes nossas homenagens e nossa gratidão, por terem aberto os caminhos para a nossa presença, neste ambiente que antes nos fora obstruído, dedicando-lhes a medalha das Civilistas Eméritas.
Não obstante, esses espaços são vistos, ainda, como naturalmente ocupados por homens, sendo sempre excepcional a presença das mulheres. A hegemonia masculina, herança dos tempos em que nossa participação era efetivamente obstruída e negada, se retroalimenta.
Ainda hoje, uma rápida análise sobre os currículos do curso de Direito mostra a preponderância da bibliografia masculina, confirmando que foram os homens que, nos últimos anos, explicaram e construíram a estrutura e função dos diversos institutos, notadamente, do Direito Civil. A despeito de sua competência técnica, porém, eles nem sempre demonstraram atenção aos impactos decorrentes da discriminação de gênero e/ou das vulnerabilidades, tampouco podem tratar do tema com a percepção própria ao existir e ser mulher. É o próprio olhar masculino que precisa se transformar e vislumbrar aquilo que antes não enxergava, a partir do momento em que a mulher, presente no espaço público, passa a pautar os temas e os problemas que a sociedade até pouco ignorava.
O Supremo Tribunal Federal, ostenta um total de 10 Ministros e uma única Ministra; enquanto o Superior Tribunal de Justiça, possui 27 Ministros homens e apenas seis Ministras mulheres. Do ponto de vista do recorte racial a exclusão é ainda mais evidente, não há mulheres negras, e dentre homens negros, conta-se hoje, apenas um no STJ. Embora sejamos maioria entre os inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, apenas quatro das 24 seccionais são lideradas por mulheres, valendo também lembrar que o Conselho Federal jamais teve uma presidente. Segundo dados de Relatório do Conselho Nacional de Justiça, a participação das mulheres na composição de tribunais superiores caiu de 23,6% para 19,6% nos últimos dez anos. Os dados caminham em direção contrária do ODS nº05, da Agenda 2030, da ONU, com a qual o Brasil se comprometeu.
Nesse cenário, nosso empenho é sobretudo de ocupar esses espaços de debate e construção e ressignificação dos institutos e categorias do Direito Civil, fazendo ressaltar os valores que proclamamos e a imperiosidade de sua releitura para favorecer a representatividade e visibilidade daqueles e daquelas que têm sido historicamente excluídos nesta dupla camada: como partícipes da construção do direito e da definição das normas jurídicas, e como sujeitos de direito, nunca devidamente considerados, com especial atenção ao tema das vulnerabilidades.
Por meio dessa coluna, buscamos incentivar o diálogo e o debate sobre temas relevantes, funcionando como um canal aberto a todas e todos os juristas que se dedicam ao estudo do direito civil e áreas afins, ocupados em construir pontes e/os meios para a otimização da tutela integral da pessoa na área dos direitos existenciais e patrimoniais.
Perceber as contradições do direito que não se apresenta, efetivamente, como uma unidade coerente e irretocável, é parte do processo reflexivo e dialógico para a propositura de mudanças. E isso requer tempo e pluralidade de personas à mesa, debruçados sobre o mesmo problema, a fim de construir soluções mais firmes e ajustadas aos fins almejados por uma sociedade democrática. Acreditando no diálogo franco e no debate técnico, essa coluna se propõe a trazer reflexões plurais amplas e imbuídas do espírito cooperativo pleno.
Sejam todos e todas muito bem-vindos às Migalhas das Civilistas!
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1 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSP, 2005, p.16-20.