Contrato de cessão de meação: cabimento, forma e registro
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
Atualizado às 08:28
Introdução
Objetivamos discutir se a meação pode ou não ser objeto de contrato de cessão, qual a forma desse negócio e se esse contrato pode ingressar na matrícula dos imóveis do casal.
Meação é metade dos bens comuns, assim entendidos aqueles que se comunicam em razão de um regime de bens de casamento. Cada cônjuge tem direito à meação quando da extinção do casamento, como pelo divórcio ou pela viuvez, direito esse que redundará na necessidade de ser realizada a partilha dos bens comuns.
É comum que, por ocasião do inventário, o viúvo queira transferir sua meação a um dos herdeiros. O artigo discutirá essa questão e avançará para tratar também de uma outra hipótese não tão comum: a de um cônjuge querer ceder sua meação no caso de um divórcio sem partilha.
Saudamos, desde logo, o jurista João Francisco Massoneto Junior por ter levantado debates sobre o assunto em recente artigo sobre a matéria (Cessão dos direitos de meação ou doação da meação?. Disponível aqui. Publicado em 11 de novembro de 2020).
Cabimento da cessão de meação
Entendemos pelo cabimento, desde que o casamento já tenha sido extinto (seja pela morte, seja pelo divórcio). Não podemos fazer interpretações para dificultar o quotidiano das pessoas, ainda mais para criar restrições que a lei não estabeleceu. Por isso, não há motivos para proibir a cessão do direito à meação após o fim do casamento (seja pela morte, seja pelo divórcio). A cessão do direito à meação durante a constância da sociedade conjugal, todavia, nos parece inviável por dois motivos.
O primeiro é a natureza personalíssima dos direitos matrimoniais (inclusive o patrimonial). Essa natureza personalíssima só desaparece com o fim da sociedade conjugal, pois aí a meação deixa de ser um direito patrimonial personalíssimo para se tornar um direito patrimonial impessoal.
O segundo é que o direito à meação só nasce com o fim do casamento. Antes disso, cada cônjuge tem a propriedade integral do bem concomitantemente com o outro consorte, tudo dentro da noção de condomínio de mão juntas (ou por mancomunhão) que foi adotada pelo Código Civil para o regime de bens.
Assim, é viável que, com a morte do cônjuge, o outro ceda a terceiros não só o seu direito hereditário (art. 1.793, CC) como também o seu direito à meação.
Igualmente, se ocorrer o divórcio sem a partilha dos bens, nada impede que qualquer dos cônjuges ceda a terceiros o seu direito à meação, caso em que caberá ao cessionário pleitear a partilha dos bens comuns.
Forma e natureza jurídica da meação
O segundo ponto é saber se a cessão da meação deverá ser feita por termos nos autos, por escritura pública ou por instrumento particular.
A meação é a metade dos bens comuns pertencente ao cônjuge supérstite em razão do regime de bens do casamento. Não é herança e, portanto, ao tratarmos de uma cessão de meação, não se estamos a falar aqui da cessão de direito hereditário prevista no art. 1.793 do CC (que exige escritura pública) nem de uma renúncia de herança, que, à luz do art. 1.806 do CC, pode ser feita por termo nos autos ou por escritura pública.
Daí se segue que, à luz da jurisprudência do STJ, a cessão de meação não poderia ocorrer por termo nos autos (STJ, REsp 1196992/MS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/8/2013).
Além disso, o STJ entende que a cessão da meação pelo(a) viúvo(a), em regra, pode ser feita tanto por instrumento particular quanto por escritura pública, salvo quando envolver imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, pois, nessa hipótese, a escritura pública seria obrigatória em razão da incidência do art. 108 do CC (que exige escritura pública para negócios jurídicos envolvendo direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 salários mínimos) (STJ, REsp 1196992/MS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/8/2013).
Ousamos, porém, pensar diferente.
Temos por irrelevante se há ou não bem imóvel envolvido na meação, pois esta é um bem coletivo na modalidade de universalidade de direito (art. 91 do CC) e, assim, ela deve ser considerada um bem (coletivo) móvel por se enquadrar em um direito pessoal de caráter patrimonial nos termos do art. 83, III, do CC. É diferente do que se dá com a herança, que, apesar de também ser uma universalidade de direito, é considerada um bem imóvel por previsão legal expressa nesse sentido (art. 80, II, do CC).
Assim, entendemos que é inaplicável o art. 108 do CC para a cessão do direito à meação, até porque estamos a tratar da transmissão de uma universalidade de direito, e não de um dos bens singulares que compõe essa universalidade.
Nesse sentido, de um lado, a cessão de meação tem forma livre, se for onerosa (nos termos do art. 107 do CC). Deveras, ela poderia ocorrer sem forma escrita, mas haveria um problema operacional: o cessionário teria de comprová-la perante o juízo incumbido da partilha a sua condição, o que será uma prova difícil de ser produzida se a cessão tiver adotado forma não escrita.
De outro lado, a cessão terá de observar qualquer forma escrita (instrumento público, particular ou termo nos autos), se for gratuita (nos termos do art. 541 do Código Civil, que exige forma escrita para a doação e que deve ser aplicado analogicamente para cessões gratuitas de direito em sintonia com o princípio da proteção simplificada do agraciado1). Consequentemente, a cessão de meação pode ocorrer por termo nos autos também, não por conta do art. 1806 do CC (que se restringe a renúncia de herança), e sim por força do fato de o "termo nos autos" poder ser equiparado a uma forma escrita em compatibilidade com os arts. 107 e 541 do CC.
Portanto, a natureza jurídica da meação é de bem móvel e coletivo (na modalidade universalidade de direito) e, como há apenas um julgado do STJ pela necessidade de escritura pública para a sua cessão na hipótese de haver imóveis e pelo descabimento da cessão por termo nos autos, convém que outro caminho seja adotado diante da falta de consolidação da jurisprudência.
Averbação da cessão de meação nas matrículas dos imóveis do casal
Na matrícula dos imóveis do casal, é obrigatório que seja noticiado o casamento do proprietário, o que é feito por meio da indicação desse estado civil no registro do título aquisitivo do imóvel (se o adquirente era casado à época) ou da averbação da certidão de casamento (se o adquirente casou posteriormente), tudo nos termos dos arts. 167, II, "1", e 176, II, "4", "a", e III, "2", "a", da LRP2.
Essa notícia não é para mera identificação. Ela tem uma finalidade jurídico-real. Ela se destina a deixar publicizado que o imóvel pode ter-se comunicado ou não em razão do regime de bens entre os cônjuges.
Nesse sentido, se um dos cônjuges cede o seu direito à meação, há uma potencial mutação jurídico-real na titularidade desse imóvel, pois, agora, a eventual meação sobre esse imóvel passa a se reverter em favor do cessionário.
Se proibíssemos que essa mutação ingressasse na matrícula por meio de averbação (e não por registro, porque se está alterando o anterior ato que noticia o estado civil de casado do titular), deixaríamos o cessionário sem proteção "erga omnes". O cedente poderia dar-lhe um "golpe", cedendo à meação a outrem ou apressando-se a adquirir o imóvel por uma partilha e a aliená-lo a terceiro, o que evidentemente contraria a lógica do sistema registral.
Assim, entendemos que é cabível a averbação da cessão do direito à meação com fundamento no art. 246 da LRP, que autoriza a averbação para qualquer fato que, por qualquer modo, pode vir a alterar ato anterior. Trata-se, na verdade, uma averbação-notícia, destinada a dar ciência a terceiros de que o imóvel, em futura partilha, poderá vir a ser titularizado pelo cessionário, e não mais pelo cônjuge cedente. Essa averbação, porém, não é obrigatória diante do fato de que não necessariamente essa cessão de meação implicará a partilha do imóvel em questão, até porque este, no procedimento de partilha, poderá vir a ser considerado um bem particular (e não um bem comum).
Sob essa ótica, o cessionário pode, mesmo sem essa averbação, já pleitear, desde logo, a partilha dos bens, caso em que o formal de partilha poderá ser diretamente registrado na matrícula do imóvel para sua transferência em nome do cessionário. É fundamental, porém, que, nesse registro do formal de partilha, seja consignado expressamente que o adquirente se trata de um cessionário de meação, tudo em homenagem ao princípio da continuidade registral.
A única desvantagem de não averbar a cessão é a falta de proteção que o cessionário terá perante terceiros de boa-fé que venham a adquirir o imóvel ou que venham a, em primeiro lugar, averbar uma outra cessão de meação.
Conclusão
Em suma, entendemos que:
(1) a cessão de meação é cabível no caso de extinção do casamento;
(2) ela pode ocorrer por termo nos autos, por instrumento particular, por escritura pública ou, se for onerosa, por qualquer outra forma não escrita (embora, à falta de uma forma escrita, o cessionário terá de dificuldades operacionais de comprovar a sua condição), mas ressalvamos que há um julgado do STJ a exigir escritura pública quando houver imóvel.
(3) A cessão de meação pode ser averbada na matrícula dos imóveis do casal apenas para efeito de proteção de terceiros, mas essa averbação não é indispensável ao futuro registro do formal de partilha.
*Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral na UnB e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado/parecerista. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB. Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.
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1 A propósito desse princípio, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível aqui. Acesso em 4 dezembro 2018-A.
2 Lei de Registros Públicos.