Lei de Liberdade Econômica e novos tempos para a regulação de seguros privados no Brasil
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Atualizado às 09:40
Texto de autoria de Angélica Carlini
Aprovada a lei 13.874, de 2019, Lei de Liberdade Econômica, é o momento de avaliarmos seus impactos para setores específicos. Nesta reflexão, a avaliação do impacto da nova lei é construída para os contratos de seguros privados regulados pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP e, mais especificamente para a forma como esse órgão regulador atua na fiscalização de modalidades de seguro disponibilizadas no mercado.
Os seguros privados regulados pelo Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP são todos aqueles praticados no Brasil, exceto a saúde suplementar. Assim, os seguros de incêndio, automóvel, pessoas, responsabilidade civil em suas múltiplas coberturas, são regulados e fiscalizados pelo CNSP e SUSEP. Também são regulados pelo CNSP e pela SUSEP a previdência complementar aberta. Já os seguros saúde estão sob regulação e fiscalização do Conselho Nacional de Saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar.
O artigo 36, letra "c" do decreto 73/66, que regula as atividades de seguros privados no Brasil, determina que compete à SUSEP na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP como órgão fiscalizador da constituição, organização, funcionamento e operações das sociedades seguradoras, fixar condições de apólices, planos de operações e tarifas a serem utilizadas obrigatoriamente pelo mercado segurador nacional.
Em razão dessa determinação fixada na letra "c" do artigo 36, do decreto 73/66, os contratos de seguro se tornaram fortemente padronizados, ainda que produzidos por diferentes seguradoras e para diferentes coberturas de risco. A SUSEP trabalha com um instrumento denominado Lista de Verificação organizada para cada modalidade de seguro e, a partir dele determina minuciosamente o que o contrato de seguro pode conter.
Para propor um produto de seguro para ser praticado no mercado, o segurador se adequa à Lista de Verificação da SUSEP para aquela modalidade de seguro e, em seguida, encaminha o material para avaliação da SUSEP que poderá aprovar ou não.
O artigo 8º, parágrafos 1º e 3º do decreto 60.459, de 13 de março de 1967, modificado pelo Decreto 3.633 de 18 de outubro de 2000, determina que as seguradoras enviarão à SUSEP para análise e arquivamento, as condições dos contratos de seguros que comercializarem, com as respectivas novas técnicas atuariais. O parágrafo 1º prevê que a SUSEP poderá a qualquer momento, diante da análise que fizer, solicitar informações, determinar alterações, promover a suspensão do todo ou de parte das condições e das notas técnicas atuariais a ela apresentadas; e, no parágrafo 2º está determinado que as condições de seguro deverão incluir cláusulas obrigatórias determinadas pela SUSEP.
Em razão dessas determinações, os seguradores só operam com produtos de seguro que tenham sido aprovados pela SUSEP porque o risco de colocar um contrato no mercado e ter que revê-lo, ou modifica-lo é operacionalmente negativo em vista dos custos administrativos que seriam gerados. Desse modo, é preferível aguardar que o corpo técnico da SUSEP analise, faça as exigências de modificação ou aprove, para somente depois colocar o contrato de seguro no mercado para ser distribuído para os setores interessados na contratação.
Dessa prática resultam modelos de apólice quase sempre padronizados, divididos em condições gerais, condições especiais, particulares e específicas que nem sempre são facilmente compreendidas pelos canais de distribuição de seguros (corretores de seguro e agentes) e, ainda menos são compreendidas pelos tomadores de seguro, empresas privadas que em razão das especificidades técnicas e operacionais de sua atuação econômica, certamente, prefeririam contratar seguros organizados de forma mais específica, singular, para atender suas necessidades.
A dificuldade de compreensão que em grande medida é fruto da necessidade de adequação à Lista de Verificação da SUSEP não é exclusiva de distribuidores e tomadores. Não raro, no âmbito dos tribunais brasileiros são detectadas dificuldades na compreensão dos clausulados, na hierarquia das cláusulas (gerais, especiais, particulares ou específicas) entre magistrados e desembargadores e, não raro, a judicialização do setor decorre dessa dificuldade de compreensão que atinge muitas pessoas.
A liberdade para proposição de novas coberturas, de novos modelos de seguro é muito reduzida. Os seguros não-padronizados são pouco praticados no Brasil porque há dificuldade de serem aprovados pelos técnicos que atuam na SUSEP e, com isso são criadas dificuldades para a concorrência e a inovação.
No ramo de seguros de responsabilidade civil geral e suas coberturas especiais o problema é constante. A cada dia surgem novas atividades econômicas, novas tecnologias quase sempre indutoras de outras possibilidades de risco e, consequentemente, da necessidade de novos produtos de seguro ou ao menos, de novas coberturas a serem inseridas no clausulado. A velocidade das mudanças na produção econômica com características de intangibilidade como tem ocorrido em tempos de inovação, não é acompanhada pelas coberturas de seguro no Brasil em razão do modelo restritivo adotado pelo órgão regulador e fiscalizador.
Os modelos padronizados e os modelos não-padronizados fortemente regulados pela SUSEP impedem que os tomadores de seguro contratem as coberturas mais adequadas a seus negócios e, por vezes, contribuam com as especificidades de sua atividade econômica para o desenvolvimento de novos produtos de seguro, novas modalidades a serem desenvolvidas para contemplar áreas econômicas específicas como o setor de entretenimento, por exemplo, que se expande cada vez mais em todo o mundo.
Em outros países do mundo, é possível contratar um seguro com clausualdo all risks que ao contrário do que a tradução literal sugere não cobre todos os riscos, mas, todos aqueles que não estão expressamente excluídos no clausulado. Essa modalidade quase não é praticada no Brasil também em razão da dificuldade de aprovação pelo órgão regulador. Há também o risco de ser colocada no mercado e depois ter que ser retirada por determinação do órgão regulador, se este entender que há alguma inadequação no clausulado adotado pelo segurador.
Em 1988 a Constituição Federal no artigo 174 definiu que como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá na forma da lei as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
É possível interpretar o artigo 174 da Constituição Federal como instrumento legal suficiente para mitigar o poder da SUSEP no que tange a aprovação e redação dos clausulados de seguros. Seu poder de regular e fiscalizar, à luz do artigo 174 da Constituição Federal, ficaria restrito às reservas de sinistros e de provisões técnicas das seguradoras, ou seja, com foco na solvência e na liquidez das operações realizadas pelos seguradores e não nos clausulados de contratos colocados no mercado.
É preciso reconhecer que o arcabouço jurídico construído a partir da Constituição Federal de 1988 já possuía instrumentos satisfatórios para proteger o equilíbrio das relações contratuais, em especial para os consumidores, mas, não apenas para eles conforme determinações emanadas dos artigos 421 e seguintes do Código Civil de 2002.
Assim, desse 1988, já não era mais necessário que a SUSEP monitorasse a atividade dos seguradores na criação de modelos de contrato ou, de clausulados diferentes adequados às necessidades decorrentes das práticas dos agentes econômicos e do mercado. Em conformidade com as melhores práticas regulatórias contemporâneas, o papel do regulador não é coibir a liberdade empresarial mas, fiscalizar com parâmetros objetivos os resultados dessas práticas, em especial, no caso de seguros, a solvência e liquidez das empresas que operam no mercado.
A lei 13.874, de 2019, recentemente aprovada, determinou em seu artigo 1º, normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica e, disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador nos termos do inciso IV do caput do artigo 1º do parágrafo único do artigo 170 e, do caput do artigo 174 da Constituição Federal.
Em relação à lei 10.406, de 2002, Código Civil brasileiro, a Lei de Liberdade Econômica trouxe modificações expressivas que, certamente, poderão contribuir para um novo momento na regulação dos contratos de seguro no Brasil. Determina a redação do parágrafo único do artigo 421 que nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
O artigo 421-A inseriu vários aspectos relevantes para as relações entre tomador e segurador em contratos não regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, como se pode constatar na nova redação do artigo
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela lei 13.874, de 2019),
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela lei 13.874, de 2019),
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019),
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Presunção de paridade e simetria até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção; parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais; alocação de riscos definida pelas partes, respeitada e observada; e, revisão contratual em caráter excepcional e limitada. Todos esses são aspectos que podem ser aplicados aos contratos de seguro firmados entre tomadores não-consumidores e seguradores.
A regulação e a fiscalização da SUSEP assumirão, a partir da Lei de Liberdade Econômica deverão estar voltadas para aspectos de solvência e liquidez das empresas de seguro, e, consequentemente, menor intervenção no tocante aos clausulados e produtos de serviços criados pelos seguradores para serem disponibilizados no mercado.
As determinações contidas nos decretos 73/66, 60.459/67 modificado pelo decreto 3.633, de 2000, precisarão necessariamente ser revistas e reinterpretadas à luz da Constituição Federal e da Lei de Liberdade Econômica, com objetivo de permitir que o setor de seguros seja mais proativo na oferta de coberturas e clausulados e, ao mesmo tempo, seja fiscalizado pela SUSEP nos critérios de solvência e liquidez, para que as reservas técnicas sejam calculadas e administradas de forma segura, com objetivo de proteger os legítimos interesses dos segurados e, de toda a sociedade.
O setor de seguros privados no Brasil tem necessidade de novos produtos e coberturas em todas as áreas. Nos seguros de automóvel, nos grandes riscos, na infraestrutura, no agronegócio, na inovação tecnológica, nos seguros de responsabilidade civil, existem muitas possibilidades de criação de produtos para serem oferecidos ao mercado, de forma mais compatível com as necessidades de tomadores empresariais, que contenham clausulados mais objetivos, de compreensão facilitada e organizados em conformidade com as necessidades específicas do segurado. Impedir essa evolução com regulação incompatível com o dinamismo da sociedade contemporânea e com a Constituição Federal não é desejável e, nem está adequado à legislação agora aprovada, a Lei de Liberdade Econômica.
A regulação e fiscalização da SUSEP é essencial para que os seguradores não deixem de ser rigorosos na organização e administração das reservas técnicas. Nesse sentido, a trajetória do segmento de seguros é ilustrativa do papel técnico desempenhado pela SUSEP porque poucos foram, nos últimos anos, os episódios de liquidação de seguradoras e, em 2008, quando grupos financeiros norte-americanos viveram sérios problemas de liquidez e solvência, as seguradoras que operam no Brasil seguiram normalmente com suas atividades. A fiscalização das reservas técnicas de seguros no Brasil tem qualidade e experiência e, precisa seguir em conformidade com as melhores práticas.
A regulação na área de clausulados de contratos de seguro e de viabilidade de novas coberturas precisa, no entanto, ser revista para se adequar à legislação em vigor. A Constituição Federal e a Lei de Liberdade Econômica determinam que a iniciativa privada deve ter liberdade para atuar e isso significa, evidentemente, liberdade para construir contratos com produtos e serviços adequados para os contratantes, em especial quando as áreas de atividade econômica desses contratantes são específicas, tecnológicas, inovadoras e necessitam de customização, sem que isso signifique abrir mão do regramento técnico e da fiscalização que garantem a viabilidade atuarial das seguradoras.
Se na atualidade a SUSEP já colocou para debate público o modelo de sandbox para regulação de propostas de atividades em seguro caracterizadas por inovação, provindas quase sempre de startups ou, mais especificamente, insurtechs, é chegado o momento de colocar em debate maior liberdade para elaboração de produtos de seguro por pelos seguradores, de forma que a livre concorrência seja ampla, efetiva e segura para os tomadores.
Existem fundamentos legais para maior liberdade na concepção de coberturas de contratos de seguro e, existe necessidade de que esses produtos cheguem ao mercado brasileiro para tomadores cujos riscos são complexos, específicos e, precisam de coberturas securitárias mais adequadas. É o momento de rediscutir o papel da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP para preservar o que ela tem de melhor - a fiscalização de reservas técnicas - e, permitir a liberdade econômica na concepção de novos contratos de seguro, atentos às necessidades de tomadores, do novo modelo de produção econômica que estamos vivendo e, da própria sociedade brasileira do século XXI.
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Angélica Carlini é advogada. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Civil pela UNIP. Pós-doutorado em Direito pela PUC/RS. Docente na Escola de Negócios e Seguros e professora convidada no Programa de Mestrado em Administração da UNIP e na pós-graduação da Escola Paulista de Direito - EPD. Diretora Acadêmica da Associação Internacional de Direito do Seguro e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT.