O papel do advogado na mediação
quinta-feira, 23 de março de 2023
Atualizado às 07:44
Num país com mais de 1.000.000 de advogados e 77,3 milhões de processos judiciais (Justiça em Números de 2022), é difícil não questionar a relação direta desse profissional.
Por muito tempo, o advogado foi treinado para lidar com o conflito exclusivamente pela via do Poder Judiciário. Isso, claramente, contribuiu para o atual cenário que temos hoje. As faculdades de Direito praticamente não ensinavam outras formas de resolução de conflitos até dezembro de 2018. Hoje não só possuem matérias teóricas, como também Núcleos de Prática Jurídica para permitir que os alunos, futuros advogados, tenham essa vivência.
As pesquisas empíricas permitem olharmos o atual momento para entendermos a realidade e buscarmos maneiras de organizar o futuro para seguir pela trilha até então percorrida ou rever o curso para atingir o objetivo desejado. Com o intuito de obter dados reais sobre este profissional, um dos principais atores da resolução de conflitos, foi feita uma pesquisa que teve como foco os advogados brasileiros1.
O estudo deste cenário é muito importante considerando, principalmente, a contribuição brasileira na Agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas) e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis 8 (trabalho decente e crescimento econômico) e 16 (paz, justiça e instituições eficazes).
Sobre a pesquisa2
Foi feito um questionário eletrônico e disseminado via internet (email, redes sociais, grupos de Whatsapp...) para atingir o maior número possível de advogados brasileiros. 621 advogados de vários Estados responderam. Destes, 99% responderam que não tiveram aulas sobre negociação na faculdade. Dos advogados que, posteriormente, buscaram conhecimento sobre outras formas de resolução de conflitos, somente 17% fizeram cursos específicos sobre negociação, muito utilizada na mediação.
A participação do advogado na mediação é obrigatória ou opcional?
Este é um tema bastante acalorado que possui fortes argumentos para todas as teorias. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base na Resolução nº 125/2010, que instituiu o chamado sistema multiportas brasileiro, entendeu não ser obrigatório3. A Lei de Mediação (lei 13.140/2015) no art. 104 dispõe que na mediação extrajudicial é opcional, mas que os mediandos precisam estar na mesma situação (todos com ou sem advogados. Caso haja diferença, a mediação é suspensa). Já no art. 265, ao tratar da mediação judicial, determina a obrigatoriedade, salvo casos específicos. Questiona-se ainda qual norma prevalece sobre a mediação judicial: Código de Processo Civil (lei 13.105, de 16.03.2015) ou Lei de Mediação (lei 13.140, de 26.06.2015).
Independentemente de todos esses argumentos, o advogado é extremamente necessário! Por quê? Porque ele conhece o ordenamento jurídico. Ele conhece o que está permitido por lei e o que está vetado. Para um acordo ser válido (tenha sido feito na mediação ou não), precisa preencher alguns elementos previstos no art. 104 do Código Civil (lei 10.406/2002). São eles: (a) agente capaz, (b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável e (c) forma prescrita ou não defesa em lei.
Assim, não adiantaria nada (pelo contrário, somente escalaria ainda mais o conflito) se um acordo fosse feito e não pudesse ser cumprido. Por exemplo, nosso ordenamento jurídico garante o direito de visitação ao cônjuge que não esteja com a guarda da criança (Código Civil art. 1.589), logo, não é possível que seja feito um acordo nos seguintes termos: "o mês em que não houver o pagamento da pensão da criança, o cônjuge perde o direito de visitação até o total pagamento". Ou ainda um acordo entre duas empresas no sentido de uma vender para outra um produto por um preço mais econômico porque utilizará trabalho escravo para a sua produção. Nossa Constituição (art. 243) proíbe este tipo de relação.
Claro que estes são exemplos simples. Todavia, nosso ordenamento jurídico precisa ser muito bem conhecido para evitar que o negócio jurídico (acordo) contenha itens que sejam legalmente vedados. E qual o profissional que estuda o ordenamento jurídico? O advogado.
É possível realizar um acordo sem advogado? Claro que sim! Realizamos todos os dias dezenas de acordos sem consultar um advogado. Da mesma forma que podemos, por exemplo, comprar um xarope para tosse na farmácia sem consultar um médico. Mas, esse xarope pode não ser o mais apropriado para uma pessoa por trazer algum efeito colateral. Claro que sim! Quem sabe o melhor remédio para aquela pessoa naquela situação? O médico, que conhece as características daquela pessoa e o remédio.
Independentemente de todo o debate que cerca a obrigatoriedade da presença do advogado em uma mediação, temos que ter em mente a sua necessidade por possuir um conhecimento técnico sobre a questão.
Qual a contribuição do advogado na mediação?
O conhecimento técnico do ordenamento jurídico permite que o advogado possa contribuir com a construção de alternativas, criando diferentes cenários. O Princípio da Autonomia da Vontade garante que a decisão final (de aceitar ou não aquele acordo) é do mediando. Todavia, o advogado pode ajudar o seu cliente a tomar a melhor decisão, maximizar os seus interesses, montando junto com ele uma árvore de decisão (ferramenta muito utilizada na tomada de decisão) com todos os elementos importantes, como, por exemplo, custo, tempo, probabilidades, valor esperado, valor presente...
Um outro ponto a ser considerado é o reflexo do acordo quando o objeto envolve o pagamento de valor monetário, ou seja, a circulação na economia. Anualmente há movimentos do Poder Judiciário para estimular a realização de acordos. Esses resultados são divulgados e vemos esses reflexos. Seguem alguns exemplos:
Ano de 2021
- Judiciário mineiro homologa quase R$ 6,8 bi em acordos na Semana da Conciliação6
- Conciliação: Varas do Trabalho homologam mais de R$ 3,5 mi
R$ 3.521.750,55 milhões em acordos homologados no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região (TRT13)7
- Semana da Conciliação no AM tem mais de 8,6 mil audiências realizadas
2.583 acordos conciliatórios e, em valores financeiros, R$ 9,7 milhões foram homologados.8
Ano de 2022
- Semana de conciliação trabalhista atendeu mais de 219 mil pessoas no país
A 6ª edição da Semana Nacional da Conciliação Trabalhista homologou mais de 21 mil acordos e movimentou cerca de R$764 milhões, segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho.9
- TRT-15 movimenta R$ 115 milhões em acordos na Semana Nacional da Conciliação Trabalhista10
- Acordos promovidos pela Justiça Federal em São Paulo movimentam mais de R$ 233 milhões no primeiro dia da Semana Nacional da Conciliação11
A consequência da participação do advogado na economia do país quando participa de um acordo é direta. Até porque a eleição de mediação (ou outras formas de resolução de conflitos), pode evitar a perda financeira de uma empresa com os seus conflitos. Já temos algumas empresas que, com o auxílio do jurídico, mudaram a sua mentalidade para lidar com as controvérsias e estão deixando de perder valor12-13.
O advogado como rede de pertinência na mediação
Geralmente, uma pessoa quando possui um conflito a ser resolvido, busca o advogado para lhe auxiliar. É este profissional que sugere a mediação. Dificilmente uma pessoa entra em contato diretamente com um mediador/câmara para iniciar uma mediação (salvo quando já há previamente cláusula no contrato neste sentido).
Assim, o mediando chega à mediação, via o advogado. É ele o elo de confiança do mediando com o mediador. E mais, conforme as negociações avançam, o mediando pede a assessoria jurídica ao advogado para o tão esperado fechamento do acordo e resolução do conflito. Acolhendo também esse profissional na mediação, a fase da construção de alternativas fica muito mais rica pelo seu conhecimento técnico do ordenamento jurídico e conhecimento do seu cliente.
Outro ponto que merece destaque é a sua influência positiva no cumprimento do acordo. Ciente dos riscos e consequências do descumprimento de um acordo fruto de uma mediação, o advogado pode auxiliar o seu cliente na eventual renegociação, se for o caso.
Futuras gerações de advogados
Até Dezembro de 2018 (Resolução nº 5 do Ministério da Educação)14, o tema "Meios Consensuais de Ssolução de Conflitos" não fazia parte do currículo das faculdades de Direito (poucas tinham e muitas vezes era uma matéria opcional). Esta norma determinou este tema ao trazer a necessidade do desenvolvimento da cultura do diálogo15.
O recado passado pelo Poder Judiciário está bem claro:
Ministro dá receita para advogado do futuro: "resolve sem propor ação"
O ministro Luís Roberto Barroso chamou a atenção para a resolução de litígio por meio da negociação e da composição amigável.
Para o ministro Barroso, o advogado do futuro não é aquele que propõe ação judicial, mas aquele que resolve o problema sem propor a ação, por meio da negociação e composição amigável.16
Nos Moots (nacionais e internacionais) que as faculdades participam, fica clara a preparação das futuras gerações de advogados com o tema. Certificações de institutos internacionais renomados, como o ICFML (Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos), começam a ser oferecidos aqui no Brasil. Atualmente estamos vivendo o movimento dessa mudança de cultura. E, em breve, veremos esses resultados. Outras pesquisas (principalmente empíricas) são necessárias para que seja possível termos mais dados.
Conclusão
Poucos advogados hoje no Brasil conhecem as técnicas de negociação, essenciais em uma mediação. Todavia, quando há a participação de um profissional que as possua, percebe-se os benefícios para todos os envolvidos. Sua presença pode até não ser obrigatória, mas é extremamente necessária por ser o conhecedor do ordenamento jurídico facilitando que o mediando possa exercer plenamente a sua autonomia de vontade ao estar ciente de todos os seus deveres e direitos e honrar com o acordo feito.
__________
1 A pesquisa completa serviu para obtenção do doutoramento da autora.
2 Informações detalhadas sobre a pesquisa podem ser vistas no artigo Culture of Alternative Dispute Resolution (ADR) in Brazil: An Exploratory Study of Business Mediation from the Theory, Laws and Perception of Lawyers. Beijing Law Review. Vol. 13. No.2, June 2022. DOI:10.4236/blr.2022.132024, disponível aqui, capturado em 16.03.2023, as 10h.
3 Disponível aqui.
4 Art. 10. As partes poderão ser assistidas por advogados ou defensores públicos. Parágrafo único. Comparecendo uma das partes acompanhada de advogado ou defensor público, o mediador suspenderá o procedimento, até que todas estejam devidamente assistidas.
5 Art. 26. As partes deverão ser assistidas por advogados ou defensores públicos, ressalvadas as hipóteses previstas nas Leis n 9.099, de 26 de setembro de 1995 , e 10.259, de 12 de julho de 2001 . Parágrafo único. Aos que comprovarem insuficiência de recursos será assegurada assistência pela Defensoria Pública.
6 Disponível aqui.
7 Disponível aqui.
8 Disponível aqui.
9 Semana de conciliação trabalhista atendeu mais de 219 mil pessoas no país.
10 Disponível aqui.
11 Disponível aqui.
12 CARNEIRO, Cristiane., DUZERT, Yann., ALMEIDA, Rafael Alves de. Case Study on Economic Benefits in the Use of Business Mediation in Brazil. Beijing Law Review, 13 (4) (December 2022), DOI: 10.4236/blr.2022.134064, disponível aqui.
13 Recomendamos o webinar: Advocacia Empresarial de Negócios: Experiências nos EUA e Brasil - (agosto/2022).
14 Disponível aqui.
15 Art. 3º O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, capacidade de argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, além do domínio das formas consensuais de composição de conflitos, aliado a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem, autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício do Direito, à prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania. Parágrafo único. Os planos de ensino do curso devem demonstrar como contribuirão para a adequada formação do graduando em face do perfil almejado pelo curso.
Art. 4º O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação profissional que revele, pelo menos, as competências cognitivas, instrumentais e interpessoais, que capacitem o graduando a: ... VI - desenvolver a cultura do diálogo e o uso de meios consensuais de solução de conflitos;
16 Disponível aqui. (11.03.2021).