A cultura do litígio na recuperação judicial e a sua superação
quinta-feira, 22 de setembro de 2022
Atualizado em 23 de setembro de 2022 07:48
À época de sua promulgação, a lei 11.101/05 ("LFRE") surgiu em substituição ao decreto-lei 7661/45 como uma relevante modernização dos procedimentos para endereçar e insolvência empresarial no Brasil, em linha com as diretrizes do Banco Mundial1 vigentes à época2.
Muito embora não se discuta que a LFRE efetivamente modernizou o sistema de insolvência brasileiro, é certo que tanto os operadores da lei quanto o Poder Judiciário não pareciam estar preparados para a nova proposta, que consistia na busca de uma solução consensada entre devedor e credores sobre as formas de reestruturar a empresa e condições de pagamento dos créditos sujeitos ao processo.
Não foi necessário muito tempo de vigência da LFRE para que se observasse uma elevada litigiosidade nos processos de reestruturação, que em muitos casos conduziu à absoluta ausência de negociação entre os envolvidos. Este cenário belicoso, que tende a aumentar o dispêndio de tempo e recursos das partes no procedimento, ao mesmo tempo em que arruína o valor dos ativos do devedor e prejudica a recuperação dos créditos, levou à crescente preocupação de especialistas e profissionais que atuavam na área com a desjudicialização dos processos de insolvência.
Isto porque restou claro que a instauração de um clima de negociação e busca por uma solução consensada entre devedores e credores, que deveria ter surgido com o advento da LFRE, não aconteceria. Criou-se, ao contrário, um verdadeiro fla-flu: devedor e credores em lados opostos, atuando de maneira combativa para impor seus interesses ao longo do processo com base em decisões judiciais, independentemente dos efeitos que isto pudesse ter para as outras partes envolvidas no processo.
Neste jogo, contudo, não há vencedores. De um lado, a empresa enfrenta a desvalorização dos seus ativos, perda de caixa, crescente perda da confiança de parceiros comerciais e o risco de falência. De outro, os credores têm gastos excessivos para custear as batalhas judiciais e, com o decorrer do tempo, chances cada vez menores de recuperar seus créditos de forma satisfatória.
Nesse contexto, no último ano, entrou em vigor a lei 14.112/20, que reformou a LFRE, alterando profundamente seu conteúdo, notadamente no que diz respeito ao incentivo às formas alternativas de resolução de conflitos e ao equilíbrio de poderes entre devedor e credores. Com as alterações implementadas na LFRE pela reforma, houve uma modernização, correção de rumos e transferência do poder de decisão para os credores, que passaram a ter todos os instrumentos para definir como se dará o processo de insolvência do devedor, cabendo ao Judiciário arbitrar abusos de direito e ilegalidades.
Não obstante os esforços do legislador para garantir que a LFRE fosse alterada de maneira a esclarecer que a natureza dos processos de insolvência deve ser de negociação e consensos, ao que tudo indica, este espírito ainda não foi absorvido. A mudança desta cultura é necessária e urgente. Com a transferência do poder de decisão dos aspectos mais relevantes da recuperação judicial aos credores, a judicialização de todas as questões, como ocorria antes da reforma, perde ainda mais o sentido. Com as ferramentas conferidas aos credores pela LFRE e a clara destruição de valor que decorre do tempo envolvido na condução de litígios, a solução mais eficiente para a crise estará, inevitavelmente, no atingimento de consenso entre devedor e credores.
Cabe, então, encontrar soluções construtivas que permitam aos credores, hoje "donos da bola", recuperar da forma mais eficiente o seu crédito. Para que essas soluções sejam encontradas é preciso, acima de tudo, que as partes estejam verdadeiramente dispostas a negociar de forma colaborativa com o objetivo de chegar a um ponto comum sobre a forma de reverter a crise.
Muito embora a LFRE tenha passado a prever mecanismos que permitem aos credores inclusive a imposição da conversão de seus créditos em capital, a verdade é que não interessa aos credores administrar uma série de empresas insolventes, de forma que esta não é uma solução viável na vasta maioria dos casos. Para endereçar a insolvência empresarial, é preciso, entre outros, verificar (i) as reais condições de operação da empresa; (ii) eventuais deficiências na estrutura de capital; (iii) competência e engajamento da administração; e (iv) geração de margem positiva nas suas operações.
A recuperação nada mais é do que responder a essas perguntas e encontrar formas de solucionar as questões que levaram à crise. É neste momento que a mediação pode servir como poderosa ferramenta para facilitar as composições, tanto em juízo como fora dele.
Incentivo aos meios alternativos de resolução de conflito na recuperação judicial
Após a reforma, a LFRE passou a reconhecer a possibilidade de utilização da conciliação e mediação nos procedimentos de insolvência (art. 20-A e seguintes) e surgem as primeiras normas para regulamentá-la. Uma das novidades é o estímulo para que os juízes incentivem a conciliação e a mediação para superar conflitos no âmbito dos processos de insolvência3, o que vem sendo adotado com sucesso em no curso de processos de recuperação judicial envolvendo passivos bilionários e questões de alta complexidade, como se verificou nas recuperações judiciais da Concessionária Rodovias do Tietê4, Grupo Renova5, Grupo Abril6 e, agora, mais recentemente, de forma ainda tentativa, Samarco7.
Nestes casos, os instrumentos alternativos de composição foram adotados durante o procedimento de recuperação judicial, para resolver questões complexas entre devedor, acionistas e credores, que levariam meses ou anos para atingir solução final caso se recorresse ao litígio. Com isso, as partes tiveram a oportunidade de colocar suas necessidades de maneira clara e encontrar, juntas, a melhor forma de endereçá-las.
No caso da Concessionária Rodovias do Tietê, especificamente, adotou-se uma solução de mercado que culminou na assinatura de contrato de compra e venda de ações entre suas acionistas e credores, sendo que estes últimos passariam a ser cotistas de um fundo que deteria a totalidade das ações. O consenso entre acionistas e credores, neste caso, levou a uma possível solução satisfatória para os envolvidos, ainda pendente da aprovação da Agência de Transporte do Estado de São Paulo - ARTESP, o que seria praticamente impossível de se atingir por via judicial.
Muito embora ainda sejam poucos os exemplos de casos em que a conciliação e a mediação foram adotadas no âmbito de processos de recuperação judicial, o fato de haver um histórico positivo em casos de alta complexidade envolvendo valores vultosos mostra empiricamente sua aplicabilidade em casos de insolvência os benefícios de seu uso.
Mediação antecedente: questões práticas
Além do incentivo à conciliação e mediação no âmbito da recuperação judicial - que embora não encontrassem previsão legal específica já podiam ser utilizadas antes da reforma -, a LFRE passou a prever em seu art. 20-B, §1º, a possibilidade de ajuizamento de ação cautelar de antecipação de tutela para suspender ações e execuções enquanto o devedor realiza mediação prévia à recuperação judicial com seus credores.8 Esta novidade teria o condão de evitar uma recuperação judicial ou, em casos mais complexos, ao menos permitir ao devedor que chegasse ao momento do ajuizamento com entendimento já encaminhado com seus principais credores ou acionistas.
A aplicação da suspensão de ações e execuções para que se realize a mediação antecedente, contudo, ainda gera dúvidas. Há quem questione qual seria a documentação necessária para obter tal suspensão e há debate sobre o prazo pelo qual as ações e execuções estariam suspensas - se por 60 (sessenta) dias, como dispõe a LFRE, ou 30 (trinta) dias, como determina o Código de Processo Civil ("CPC") para ações cautelares.
Com relação à documentação, a LFRE determina que "será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar"9. Considerando que os requisitos legais para requerer recuperação judicial estão expostos no art. 48 da LFRE, entende-se que a suspensão de ações e execuções para mediação antecedente deveria se dar mediante comprovação dos requisitos ali expostos, quais sejam: (i) não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; (ii) não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial ou recuperação judicial com base no plano especial; (iii) não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos na LFRE; (iv) exercer regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos; e (vi) demais previsões contidas nos arts. 48 e 48-A da LFRE, conforme aplicável.
Não seria o caso, neste momento, de apresentar a documentação completa para o ajuizamento do pedido de recuperação judicial, visto que a mediação antecedente visa, precisamente, permitir que se encontre solução alternativa ao ajuizamento do pedido de recuperação. Este espírito da lei é claro, mas fica ainda mais nítido quando se observa que o §3º do mesmo artigo 20-A determina que "Se houver pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, observados os critérios desta Lei, o período de suspensão previsto no § 1º deste artigo será deduzido do período de suspensão previsto no art. 6º desta lei".
Com relação ao prazo de suspensão das ações e execuções previsto no §1º do art. 20-B da LFRE, também não se vislumbra dúvida sobre a aplicabilidade do prazo de 60 (sessenta) dias previsto na LFRE. A discussão atual decorre do fato de o §1º da LFRE determinar que a tutela de urgência seria concedida nos termos do art. 305 e seguintes do CPC, o que pode conduzir ao entendimento equivocado de que aplicaria o prazo de 30 (trinta) dias para ajuizamento da ação principal previsto no art. 308 do CPC10.
Este entendimento não deve prosperar, seja pelo fato de o prazo de suspensão para fins da mediação antecedente à recuperação judicial disposto na LFRE ser específico para os fins da própria lei, em atenção ao princípio da especialidade, seja pelo disposto no §3º do art. 20-B, transcrito acima. Considerando que o tempo de suspensão previsto no §1º do art. 20-B é deduzido do stay period do devedor em caso de ajuizamento de pedido de recuperação judicial, resta claro que se trata de hipótese de antecipação dos efeitos do stay period, e não da suspensão prevista no art. 308 do CPC, não havendo razão para confusão sobre a aplicação dos prazos.
Apesar de ainda haver estas e outras arestas a serem aparadas até que a mediação antecedente seja adotada de maneira mais frequente pelas empresas em dificuldades financeiras como forma de atingir consenso com seus principais credores e evitar ou ao menos facilitar um futuro processo de recuperação judicial, parece claro que este se mostra um caminho necessário de ser pavimentado e seguido para que se possa atingir soluções mais eficientes para os casos de insolvência no Brasil.
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1 Principles and guidelines for effective insolvency and creditor rights systems: Introduction, executive summary and principles, de 1º de abril de 2001. Disponível aqui, acessado em 11/7/22, às 22h45.
2 "A aprovação da Lei de Falências e Recuperação de Empresas constitui um marco na agenda de aperfeiçoamento institucional que o governo vem implementando na economia brasileira. Em consonância com as melhores práticas adotadas internacionalmente (World Bank, 2001), a nova Lei estimula o investimento, o crédito e o emprego no Brasil". LISBOA, Marcos de Barros. Et. al. In PAIVA, Luiz Fernando Valente de. Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo : Quartier Latin, 2005. p. 41.
3 LFRE: "Art. 20-A. A conciliação e a mediação deverão ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, inclusive no âmbito de recursos em segundo grau de jurisdição e nos Tribunais Superiores, e não implicarão a suspensão dos prazos previstos nesta Lei, salvo se houver consenso entre as partes em sentido contrário ou determinação judicial".
4 Recuperação Judicial da Concessionária Rodovias do Tietê, envolvendo endividamento concursal da ordem de R$ 1,8 bilhão. Processo 1005820-93.2019.8.26.0526, em tramite perante a 1ª Vara do Foro da Comarca de Salto/SP.
5 Recuperação Judicial do Grupo Renova, envolvendo endividamento concursal da ordem de R$ 3,2 bilhões. Processo 1103257-54.2019.8.26.0100, em tramite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP.
6 Recuperação Judicial do Grupo Abril, Processo 1084733-43.2018.8.26.0100, em tramite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP.
7 Recuperação Judicial da Samarco S.A., envolvendo endividamento concursal da ordem de R$ 50 bilhões. Processo 5046520-86.2021.8.13.0024, em tramite perante a 2ª Vara Empresarial do Foro da Comarca de Belo Horizonte/MG.
8 "Art. 20-B. Serão admitidas conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, notadamente: [...]
IV - na hipótese de negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial.
§ 1º Na hipótese prevista no inciso IV do caput deste artigo, será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar, nos termos do art. 305 e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a fim de que sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do tribunal competente ou da câmara especializada, observados, no que couber, os arts. 16 e 17 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015".
9 LFRE: "Art. 20-A, § 1º Na hipótese prevista no inciso IV do caput deste artigo, será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar, nos termos do art. 305 e seguintes da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a fim de que sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do tribunal competente ou da câmara especializada, observados, no que couber, os arts. 16 e 17 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015".
10 CPC: "Art. 308. Efetivada a tutela cautelar, o pedido principal terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 (trinta) dias, caso em que será apresentado nos mesmos autos em que deduzido o pedido de tutela cautelar, não dependendo do adiantamento de novas custas processuais".