Formas consensuais de prevenção e solução de conflitos
sexta-feira, 21 de maio de 2021
Atualizado às 08:53
Falar em métodos alternativos à jurisdição para solucionar conflitos é medida urgente e necessária. Pensar, refletir, estudar, trocar experiências e conhecimentos sobre o tema deve ser uma constante na vida daqueles que trabalham com o Direito, nas mais diversas áreas e funções.
A coluna que inauguramos hoje com muita alegria, Migalhas Consensuais, tem esse propósito: fomentar o debate, o estudo e, aos poucos, modificar uma cultura de litígio tão enraizada em nossas vidas pessoais e profissionais.
Não fomos ensinados a dialogar, a sermos protagonistas na solução dos conflitos que, evidentemente, fazem parte da convivência. Conviver, viver com outros e em sociedade, gera conflitos de interesses. Mas nossas escolas, desde a educação infantil, estão mais voltadas para os métodos heterocompositivos, nos quais um terceiro dá a solução para o conflito.
Uma disputa, por exemplo, entre duas crianças na hora do recreio pela posse de uma bola é usualmente resolvida pelo professor, inspetor ou qualquer adulto com autoridade na escola, que define o que será feito com a bola, quem ficará com ela e por quanto tempo. Em geral, esse adulto (terceiro) não estimula as partes envolvidas no conflito (as crianças) a tentarem, por si próprias, solucionar o impasse.
As faculdades de Direito também não ensinam a solucionar conflitos pela busca do consenso. Aprendemos que conflito se resolve no Poder Judiciário, através de uma sentença judicial. Somos treinados no curso de Direito a litigar, a sermos guerreiros, batalhar até o fim, esmagando o adversário, se possível. O próprio termo utilizado já mostra esse clima beligerante: as partes são adversárias no processo judicial. E quem quer conversar, ouvir ou fazer acordo com seu adversário? Mais que isso: quem acreditaria na boa-fé ou boa vontade de alguém que se coloca como um verdadeiro inimigo no campo de batalhas?
Criar o hábito de ouvir verdadeiramente o outro (escuta ativa) e tentar conhecer o real interesse por trás do pedido para, então, dialogar, sem ter a necessidade de sair vitorioso em seu argumento, é uma tarefa difícil, mas possível. Evidentemente possível!
O caso da laranja é um exemplo muito utilizado no meio acadêmico para revelar o quão importante é este processo de ouvir as pessoas para descobrir seus reais interesses. A situação é a seguinte: uma mãe, ouvindo suas duas filhas brigando na cozinha por uma laranja (só havia uma laranja em casa e as duas crianças a queriam), decide dividir a laranja ao meio e dar um pedaço para cada filha, acreditando que, assim, a briga acabaria e ela teria paz. No entanto, ambas foram para seus quartos chateadas com a decisão da mãe. Isso porque uma filha queria a casca da laranja para enfeitar o bolo que estava preparando e a outra queria o sumo da laranja para fazer um suco.
Se a mãe tivesse questionado os interesses de cada filha por trás daquele pedido, certamente ambas teriam saído satisfeitas: uma teria o sumo todo da laranja (e não apenas metade dele) e a outra teria toda a casca (e não somente parte dela).
Aos poucos, os advogados e advogadas têm sido apresentados aos caminhos que existem além do caminho da disputa no Tribunal. O conceito de Justiça ou Tribunal Multiportas vem sendo estudado cada vez mais. Muitos cursos de Direito já oferecem a disciplina eletiva de métodos alternativos para resolução de conflitos, na qual o estudante conhece outras portas que podem ser batidas, outras janelas que podem ser abertas. A negociação, conciliação, mediação, arbitragem, dispute boards e arbitragem são alguns exemplos de métodos de solução de conflitos alternativos ao Poder Judiciário.
Felizmente o Ministro da Educação acaba de homologar parecer da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação que altera as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Direito para incluir Formas Consensuais de Solução de Conflitos como conteúdo essencial na graduação. Isso nos traz a esperança de que as próximas gerações de operadores do Direito já iniciarão suas vidas profissionais com um maior conhecimento acerca de todas as formas para se solucionar uma disputa. Mas o problema que enfrentamos é real e não podemos esperar para começar a implementar algumas soluções.
O Judiciário já se conscientizou do problema gerado por essa cultura do litígio, pois os magistrados sentem na pele os efeitos por ela ocasionados: no fim de 2019 havia 77 milhões de processos aguardando julgamento no Poder Judiciário1. Não há juiz, serventia e assessoria que deem conta desse volume de trabalho. Não há estrutura possível para permitir uma prestação jurisdicional qualificada e eficiente com esses números. Por isso, inúmeras são as decisões judiciais, inclusive dos Tribunais superiores, incentivando a busca do consenso pelas partes.
Desde 2010, o Conselho Nacional de Justiça tem se dedicado ao desenvolvimento dos métodos alternativos. A Resolução CNJ nº 125 instituiu no Brasil uma política pública de solução adequada dos conflitos, determinando aos Tribunais de Justiça a criação de Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMEC) e de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) e normatizando os cursos de formação do conciliador e do mediador.
Anos depois, em 2015, a lei 13.105/15, nosso atual Código de Processo Civil, e a lei 13.140/15, a Lei de Mediação Judicial e Extrajudicial, estimularam a disseminação e utilização dos métodos consensuais.
Recentemente, duas importantes leis que disciplinam contratos e processos de suma relevância para o Brasil fizeram menção expressa aos meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias.
A Lei de Recuperação Empresarial e Falência (lei 11.101/05), com a recente reforma trazida pela lei 14.112/20, determinou ao administrador judicial que estimule a mediação, conciliação e outros métodos alternativos para solucionar conflitos relacionados à recuperação da empresa (art. 22, j). Além disso, criou uma nova Seção na lei (artigo 20-A, B, C, e D), para cuidar das mediações antecedentes ou incidentais ao processo de recuperação judicial, contribuindo para a necessária desjudicialização e pacificação social.2
Na mesma linha, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133/21) prevê o uso da mediação, conciliação, arbitragem e dispute boards nas contratações que regula. O legislador estimula os métodos alternativos em novas contratações, como também nas relações e contratos já existentes, mediante a celebração de aditivos contratuais.
Além disso, está em discussão no Congresso Nacional a Medida Provisória 1.040/2021 que traz regras de modernização do ambiente de negócios no país. Dentre as propostas de emendas ao texto da MP apresentadas pelos parlamentares, cabe destacar a proposta da senadora Soraya Thronicke, que prevê que o interesse processual, quando o litígio versar sobre direito patrimonial disponível, só estará presente com a anterior constituição de controvérsia jurídica entre as partes, constituindo-se a controvérsia com a prévia notificação do requerido pelo requerente, oferecendo prazo para a autocomposição do litígio ou acordo extrajudicial.
Como justificado pela senadora,
"A judicialização no Brasil é uma epidemia, e muito poderia ser evitada caso as partes fossem estimuladas a uma tentativa de autocomposição forçada, antes do ajuizamento de uma ação, para tratar sobre a situação jurídica e factual envolvida. A presente emenda traz justamente essa proposta, sem afastar o amplo acesso à justiça, e é inspirada nas melhores práticas mundiais que visam trazer coesão social e racionalização do papel do judiciário. A positivação dessa prática ajudaria a desafogar o judiciário cível, e então melhorar a pontuação do Brasil no eixo Execução de Contratos do índice Doing Business."3
As propostas dos deputados Coronel Tadeu e Heitor Freire também indicam ser necessária a resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor para haver interesse processual em casos de direitos patrimoniais disponíveis. Propõem, ainda, que o juiz leve em consideração a resistência do réu se o autor buscou a conciliação antes de iniciar o processo judicial.
Ou seja, está em debate no Poder Legislativo se a parte que procura o Poder Judiciário deve provar que tentou previamente conciliar com a outra para efetivamente ter interesse processual para ajuizar a demanda. Em outras palavras: buscar previamente o consenso, o acordo, uma solução conjunta passará a ser condição para demandar em juízo? Não custa lembrar que a Constituição Política do Império de 1824 exigia para o ajuizamento de uma demanda a prova de que o autor tinha tentado conciliar com o réu.
Especialmente em tempos de pandemia de Covid-19, o momento é muito propício para a discussão do tema e, quanto mais se debater, melhor será a solução encontrada.
Ressalte-se, nesse sentido, que será realizada em breve a II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de litígios organizada pelo Conselho da Justiça Federal na qual serão discutidos e aprovados novos enunciados sobre a matéria.
É fato que os métodos alternativos à jurisdição para solucionar conflitos estão em franca valorização. Os Poderes Judiciário e Legislativo e o Conselho Nacional de Justiça têm constantemente apoiado, incentivado e fomentado o desenvolvimento desses caminhos que simplificam e humanizam as relações, aproximando as partes, desafogando o Poder Judiciário e melhorando o ambiente de negócios e a vida em sociedade.
Que esta nova coluna do Migalhas possa contribuir para propagar as ferramentas existentes e as novas que vão surgir, alcançando um número cada vez maior de usuários. Vida longa e pacífica ao Migalhas Consensuais!
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1 Os dados de 2020 ainda não haviam sido divulgados na data de publicação deste artigo.
2 NETTO, Antonio Evangelista de Souza; LONGO, Samantha Mendes. A Recuperação Empresarial e os Métodos Adequados de Solução de Conflitos. Porto Alegre. Paixão Editores, 2020.
3 Disponível aqui.