Acesso à medicamento: paciente-cliente e paciente-cidadão
terça-feira, 24 de agosto de 2021
Atualizado em 13 de maio de 2022 12:19
Qual o fundamento?
Foi com a Constituição Federal (CF) de 1988 que começou no Brasil o debate se a saúde é direito ou um serviço. Isso porque o Sistema de Saúde Brasileiro é híbrido, ou seja, é universalista, por parte do Sistema Único de Saúde (SUS), e é também um sistema de seguros privados, em que se pode adquirir esse serviço, seja com planos de saúde, seja com o serviço 100% particular.
O artigo 196, da CF, determina que a saúde é um direito de todos e é dever do Estado de provê-lo - por meio de políticas públicas -, mas, logo vem o artigo 197, da CF, que permite a exploração privada da saúde. Essa dubiedade entre serviço a ser prestado e Direito a ser recebido pelo cidadão gera diversas consequências sociais, econômicas, políticas e, as que abordarei aqui, jurídicas quando pensamos na perspectiva do paciente.
Podemos enxergar que existem dois tipos de pacientes no sistema de saúde brasileiro: o paciente- cidadão e o paciente-cliente. O paciente-cidadão são todos os cidadãos brasileiros, ou aquela pessoa que está em solo brasileiro e necessita de assistência em saúde e se utiliza do SUS, seja diretamente ou indiretamente. O paciente-cliente, por sua vez abarca somente aqueles que se utilizam do sistema privado de saúde, seja por meio de planos de saúde, seja custeando de forma privada estes serviços. Juridicamente falando essa distinção do paciente-cidadão e paciente-cliente gera repercussões de acesso à saúde.
Paciente-cidadão
Quando pensamos em SUS de forma simplificada podemos inferir que o cidadão recebe a saúde de acordo com que determina o Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais). Uma lista divulgada a cada dois anos pelo Ministério da Saúde que determina quais medicamentos e insumos são de acesso à população no SUS. Importante considerar que é por meio da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) que novos medicamentos e insumos podem adentrar esta lista e passar a ser referência de acesso aos cidadãos. E quando o medicamento não está contemplado na lista? O judiciário é quem vem suprir a ausência ou negligência ao acesso.
Assim, pode-se citar três julgamentos marcantes para a saúde enquanto Direito. A primeira tese fixada, em 25/4/2018, pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS (recurso repetitivo: leading case REsp 1657156), determina que devem estar presentes os seguintes requisitos cumulativamente:
1. Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
2. Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e
3. Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O segundo julgamento teve sua tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 22/05/2019, acerca de o Estado ser obrigado a fornecer medicamento não registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) (tema 500 - STF - leading case: RE 657718), determina que devem estar presentes os seguintes requisitos cumulativamente:
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
(i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e,
(iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.
O terceiro julgamento, ainda não finalizado, no STF determina sobre o fornecimento de medicamentos de alto custo não registrados na lista do SUS (tema 6 - STF - leading case: RE 566471), em nada inova quando comparado aos outros julgamentos, porto que também traz consigo requisitos mínimos para que o Estado venha a prover o medicamento, dentre os quais na corrente vencedora (oito votos no total): comprovadas a extrema necessidade do medicamento e a incapacidade financeira do paciente e de sua família para sua aquisição.
Assim, a ausência de medicamento ou a negligência na política pública estatal em prover o medicamento ou tratamento podem ser requeridos sempre com a premissa de que o paciente tem direito ao acesso à saúde, por meio e política públicas, e cabe ao Estado fornecer este acesso ao cidadão, claro que contemplado determinados requisitos.
A interpretação sobre o acesso à saúde para o paciente-cliente não é o mesmo, senão vejamos:
Paciente-cliente
O paciente-cliente, por sua vez, é aquele que tem poder aquisitivo para adquirir tratamentos ou medicamentos seja por meio 100% particular seja por meio de seguro de saúde. Temos assim, no Brasil, uma distinção de acesso à saúde pois há dois tipos de paciente-cliente. Aquele com capacidade de adquirir seja qual tratamento for desde que tenha capacidade financeira para tal e aquele que está dentro das determinações da cobertura oferecida por seu plano de saúde.
No caso do paciente que adquire o tratamento dentro do espectro 100% particular é interessante observar que ainda assim ele pode se utilizar da saúde enquanto Direito, ainda que pagando parte do tratamento. Bom exemplo deste caso é da criança que possui Atrofia Muscular Espinhal (AME) e que buscou o tratamento com Zolgensma®, do grupo farmacêutico Novartis, que custa cerca de R$12.000.000,00 (doze milhões de reais) - em julho de 2021. A família conseguiu arrecadar R$4.3000.000,00 (quatro milhões e trezentos mil reais) por meio de campanhas feitas nas redes sociais e ações de rua, mas o restante dos R$ 7.7000.000,00 (sete milhões e setecentos mil reais) foram custeados pelos Ministério da Saúde, após requisição judicial. Assim, ainda que o paciente possa buscar o tratamento que for na esfera privada, exatamente pela dubiedade do Sistema de Saúde no Brasil, a família ainda se utiliza da Saúde como Direito a ser provido pelo Estado.
Quando pensamos na saúde enquanto serviço a ser provido por seguradoras e planos de saúde há normas mais rígidas sobre o acesso à saúde. Isso porque é a Agência Nacional de Saúde Suplementar o órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde, de acordo com a lei 9.961/2000, e em conjunto com a lei 9.656/1998 traz a determinação do acesso à saúde suplementar. Nesse tocante para descobrir quais serviços mínimos o segurado tem acesso existe o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que é a listagem mínima obrigatória de exames, consultas, cirurgias e demais procedimentos que os planos de saúde devem oferecer aos consumidores.
Importante saber que o Superior Tribunal de Justiça não possui consenso sobre se este rol é taxativo ou exemplificativo há um dissenso entre a Terceira Turma do STJ que continua firme na jurisprudência tradicional da Corte, a de que o rol de procedimentos e eventos em saúde elaborado pela ANS é exemplificativo e a Quarta Turma que defende que o rol é taxativo.
Assim o acesso à saúde no âmbito suplementar também acaba por se resolver no Judiciário, infando ainda mais a Judicialização da saúde.
Observamos assim, que o Brasil possui de forma simplificada dois tipos de paciente: o paciente-cidadão e o paciente-cliente e que seu acesso à saúde está regulamentado, mas que dependendo de condições específicas podem estes buscar o acesso à justiça para ter tratamentos e procedimentos diferenciados. Tudo recai sempre na especificidade e necessidade de cada caso concreto, existindo teses que suportam as argumentações de acesso pleno à saúde.