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A primazia da realidade sobre a forma

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Atualizado em 20 de junho de 2024 13:04

Na lição do preclaro professor e juiz do trabalho Vitor Salino, "os princípios são fatores estruturantes de determinada área de conhecimento". 1 Assim, é possível afirmar que toda ciência, inclusive a ciência jurídica, constrói-se a partir dos princípios que a informam, porquanto são a base que edifica o ramo do saber que se pretende estudar, irradiando seus efeitos em toda estrutura do conhecimento relacionada àquela área.

E no caso do Direito também é assim. Há os princípios gerais do Direito e os princípios específicos de cada segmento jurídico - Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito Administrativo, Direito Constitucional e assim por diante. No Direito do Trabalho, o princípio cardeal é o da proteção, dele derivando outros que, cada um à sua maneira, visam cumprir o papel tuitivo do ramo juslaboral.

Mas talvez um dos princípios mais caros ao Direito do Trabalho seja o princípio da primazia da realidade sobre a forma, que, traduzido de modo simples e objetivo, determina que a realidade dos fatos prevalece sobre o aspecto formal. O que o documento retrata tem validade se corresponder, ou coincidir, com a respectiva realidade fática; caso contrário, poderá ser desconstituído na via judicial, dada a supremacia do fato ocorrido. Aliás, este princípio, que tem respaldo legal essencialmente no art. 9º da CLT, é invocado diariamente nas reclamatórias submetidas ao crivo do Poder Judiciário, irrigando a atuação do juiz, dos advogados e das partes litigantes em juízo, exatamente com o propósito de coibir fraudes ou manobras, acobertadas pela forma, cujo único intuito é afastar ou dificultar a aplicação da lei trabalhista.

Quando o juiz do trabalho invalida os horários anotados no cartão de ponto em confronto com a prova testemunhal, o faz com apoio no princípio da primazia da realidade sobre a forma. Do mesmo modo, quando reconhece a existência de pagamento de salário superior ao registrado nos recibos salariais, ou quando afasta o cargo anotado na CTPS do empregado e declara o exercício de uma outra função na empresa, com a determinação de retificação da carteira profissional para dela fazer constar o cargo efetivamente ocupado. Enfim, inúmeras são as hipóteses em que, no exercício da jurisdição, o magistrado utiliza-se deste fundamental princípio do Direito do Trabalho para descobrir a verdade vivenciada e dar efetividade às normas previstas na CLT.

E o princípio da primazia da realidade sobre a forma sempre foi fonte de fundamentação e de interpretação para esclarecer as disputas travadas em demandas judiciais trabalhistas envolvendo fraude no formato de contratação.

Se, por exemplo, o profissional foi contratado para trabalhar na condição de parceiro do negócio, ou como trabalhador autônomo, ou sob qualquer outro rótulo jurídico, a realidade vivida pelas partes no dia a dia deve espelhar exatamente o que consta na documentação formal, sob pena de se impor sobre aquilo que está pactuado no papel de modo solene.

Se a real intenção do tomador de serviços, ou contratante, é admitir um empregado, que lhe prestará serviços de forma pessoal, não eventual, onerosa e mediante subordinação, o único modelo de contrato disponível na ordem jurídica é o contrato de emprego, disciplinado na CLT. Adotar formas alternativas de contratação para apenas encobrir ou mascarar uma genuína relação empregatícia não encontra eco na ordem jurídica vigente, por força exatamente do princípio em estudo. 

Entretanto, muito recentemente, nasceu, cresceu e ganhou corpo uma corrente jurisprudencial, capitaneada sobretudo por orientações da Corte Suprema, originárias dos julgamentos de reclamações constitucionais, que parece deixar de lado a realidade dos fatos para supervalorizar a forma, num claro movimento de inversão radical do princípio trabalhista em exame, criando, de certa forma, uma presunção - quase absoluta de legalidade do modelo de contratação adotado, quando respeitada a formalidade respectiva.

Esta ideia não convive bem com o Direito do Trabalho, porquanto, não raro, ignora fraudes, desvirtua a constituição e a contratação de pessoas jurídicas e permite, em última análise, que trabalhadores subordinados sejam alijados da estrutura normativa protetiva assimilada na CR/88 e na CLT.

Se é correto afirmar que tanto a legislação (lei 13.429/17 e lei 13.467/17), quanto a jurisprudência atual (precedentes do STF com efeito erga omnes e caráter vinculante), permitem a adoção da terceirização irrestrita como prática lícita de qualquer atividade da empresa, em homenagem aos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência - e a respeito disso, não há nenhuma discussão, até mesmo pela eficiência e ganho de produtividade que este relevante fenômeno traz ao setor produtivo e à própria economia -, também é correto afirmar que o instituto da terceirização não tem qualquer relação e muito menos legitima condutas indevidas cujo objetivo consiste em baratear, intencionalmente, o custo da mão-de-obra e desviar-se da incidência do núcleo protetivo fixado no arcabouço trabalhista, como, ocorre, por exemplo, nos casos de pejotização (contratação  de genuíno  empregado com a roupa de PJ). E, repita-se: Não se está aqui, em hipótese alguma, criticando ou defendendo a não aplicação das diretrizes determinadas no Tema 725 e na ADPF 324 pelo STF no tocante à terceirização de serviços, em qualquer atividade da empresa (meio ou fim), mas apenas esclarecendo que os paradigmas jurisprudenciais definidos pelo Supremo Tribunal Federal não podem ser alargados para incidir sobre hipóteses concretas neles não previstas, como é o caso da pejotização. Tratam-se - terceirização e pejotização - de fenômenos distintos, que devem receber tratamentos legais diversos e soluções jurídicas distintas.

Portanto, já é hora de ler e reler adequadamente o princípio em tela: no mundo das relações de trabalho, o que prevalece é a realidade e não a forma.

E fica a advertência:Assim como na vida, também no mercado profissional, as aparências enganam...!

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1 EÇA, Vitor Salino de Moura. Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2019, p. 25.