Jurimetria e o MPT: a manipulação da jurisprudência trabalhista
sexta-feira, 15 de setembro de 2023
Atualizado às 08:52
Introdução
Recentemente o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou ação civil púbica (ACP), autos n. 0010531-94.2023.5.03.0111, alegando que:
"Após investigação mais apurada, cujo detalhamento será objeto desta ação civil pública, constatou-se que se trata de uma prática processual metodologicamente organizada: acordos são propostos sem o reconhecimento do vínculo de emprego inicialmente pretendido pelo trabalhador, com liquidez significativa para a persuasão do reclamante em firmá-lo, com vistas a pôr fim às ações sem julgamento do mérito, quando os recursos ordinários interpostos pelas partes são distribuídos para turmas de segunda instância cuja composição julgadora seja, pelo menos em teoria, a favor do vínculo de emprego de trabalhadores via plataformas digitais. (...). Com os acordos propostos e firmados, o que ocorre em grande volume até o momento, a UBER vem colhendo o resultado de metodologia processual orquestrada para evitar a apreciação do mérito em processos cujos resultados não seriam potencialmente do seu interesse, fomentando a consolidação de jurisprudência artificialmente construída e amplamente favorável à tese da empresa, o que, de outro lado, lhe serve também de fundamento de defesa em novos processos judiciais. (...). É exatamente aqui que se insere a questão da jurimetria e a sua utilização indevida para manipular a jurisprudência a favor dos interesses da UBER que, ao impedir o exercício pleno da jurisdição, viola princípios constitucionais processuais, tais como o juiz natural, o devido processo legal, o contraditório, a cooperação, a lealdade e boa-fé. Ainda, distorce o processo democrático de construção e concretização do direito por meio da jurisdição, constituindo-se também em abuso do direito de estar em juízo e defender-se pelos meios legais disponíveis."
Em resumo a tese do MPT é de que a Uber pratica litigância predatória por celebrar acordos somente nos processos em que há chances de reconhecimento de vínculo empregatício conforme composição das Turmas do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região - Minas Gerais e que a ferramenta utilizada para tanto é a jurimetria.
Antes de adentrar no mérito da questão necessários se fazem alguns prévios esclarecimentos. O termo jurimetrics foi utilizado pela primeira vez no ano de 1948 por Loevinger que conectou a Teoria Jurídica, Métodos Computacional e Estatística com o objetivo de analisar a jurisprudência tornando assim o Direito mais previsível. O mesmo autor conceitua a jurimetria da seguinte maneira:
Jurimetrics is concerned with such matters as the quantitative analysis of judicial behavior, the application of communication and information theory to legal expression, the use of mathematical logic in law, the retrieval of legal data by electronic and mechanical means, and the formulation of a calculus of legal predictability. (1963).
No Brasil, aliás, o tema vem ganhando cada vez mais relevância, destacando-se a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) fundada no ano de 2011, que tem como objetivo maior "Disciplinar a jurimetria como um ramo do conhecimento jurídico, definindo suas premissas, fundamentos, conceitos e relações essenciais"1. Assim, a jurimetria surge como uma importante ferramenta na prática da advocacia, já que, em última análise, tem como objetivo extrair, reunir e analisar dados.
A pesquisa jurimétrica (pergunta problema) pode envolver diversos assuntos, por exemplo: tempo de duração dos processos, análise de decisões judiciais, entre outros. Basicamente, tudo que for relacionado a dados pode ser pesquisado (respeitadas as diretrizes científicas da estatística e probabilidade).
Portanto, a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho não merece acolhimento.
Ademais, vejam outras razões pelo descabimento da ACP.
Hermenêutica Jurídica
Público e notório que o Direito não é uma ciência exata, sendo fruto da interpretação dos seus operadores (desde advogados até julgadores). Nesse sentido, surge a Hermenêutica Jurídica, antes considerada uma disciplina para auxiliar na interpretação da lei e, mais modernamente, entendida como uma filosofia (teoria universal do compreender e interpretar)2.
Fato é que se o direito permite interpretações (inclusive com técnicas científicas), porque não pode o operador estudar o posicionamento do Julgador com intuito de realisar uma análise preditiva das decisões judiciais?
Aliás, deste questionamento surge outra questão.
A Insegurança Jurídica
Muito embora a segurança jurídica esteja impregnada em todo o ordenamento jurídico e seja um preceito Constitucional, na prática nem sempre é observada. Isto porque é plenamente possível, e na realidade acontece com frequência, que um mesmo fato e/ou norma seja interpretado de maneira diversa a depender da Vara ou Turma que o processo é distribuído.
Ainda que a missão do julgador não seja simplesmente ser "a boca da lei" (expressão pós Revolução Francesa), também é notório que no Brasil, infelizmente, não há segurança jurídica. Prova desta premissa é o próprio ajuizamento da ACP pelo MPT.
Veja que para o mesmo fato, reconhecimento do vínculo de emprego, existe diversos entendimentos. O Parquet mostrou inclusive que a divergência permanece no Tribunal Superior do Trabalho.
Portanto, não há conduta ilícita, e sim divergência jurídica quanto a um determinado tema.
Ausência de legislação específica
Toda a problemática gira em torno de uma única questão: há vínculo empregatício nas relações entre motoristas e aplicativos? A resposta depende da interpretação sobre os artigos 2º e 3º da CLT. Há quem entenda que a subordinação necessária está presente mediante subordinação algorítmica e, em sentido oposto, há quem entenda que não há. Independente das discussões e debates travados, o caso seria mais simplesmente resolvido mediante criação de legislaçao específica (atuação do legislativo).
Oitiva dos interessados
Outro ponto que merece destaque é que para melhor resolver a questão seria de bastante utilidade ampliar o debate, não se limitando a questões jurídicas, mas sim ouvindo os principais interessados, quais sejam, os próprios motoristas dos aplicativos.
Nesse sentido, destacam-se as audiências públicas (forma de participação direta da sociedade no processo legislativo). Ouvidos os motoristas, os interesses podem ser mais bem balizados.
Criação de um problema social
Conforme dados do aplicativo, há atualmente no Brasil cerca de um milhão de motoristas. Assim, o reconhecimento do vínculo empregatício de maneira indiscriminada pode afastar a empresa do Brasil e/ou reduzir sua atuação no país acarretamento na criação de outro problema social: a redução e/ou extinção de renda de centenas de milhares de trabalhadores.
Desprestígio da autonomia da vontade e da resolução pacífica de conflitos
Na hipótese dos autos, se o trabalhador se encontra assistido por advogado e tem interesse em celebrar o acordo, a intervenção do Ministério Público do Trabalho e do Judiciário desprestigia e inválida por completo da autonomia da vontade e das formas de resolução pacífica de conflitos.
Civil Law x Common Law
No Brasil, por certo, não há precedentes como no sistema jurídico do Common Law. Assim, a criação de jurisprudência contra a Uber não geraria automaticamente obrigatoriedade de outros órgãos julgadores seguirem a mesma tendência. Portanto, a jurimetria como instrumento de análise de risco para oferta de acordos não fere nenhuma legislação nacional.
Data vênia, por todo o exposto resta evidente que em última análise a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho desprestigia a advocacia e a modernização do judiciário.
GADAMER, Hans-George. Verdade e Método II. op., cit., p. 119.
LOEVINGER, L. Jurimetrics: The Next Step Forward. Minnesotta. Law Review, v. 33, 1948.
LOEVINGER, L. Jurimetrics: The methodology of legal inquiry. Law & Contemp. Probs., v. 28, 1963.
Disponível aqui.
Dipsonível aqui.
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1 Disponível aqui.
2 GADAMER, Hans-George. Verdade e Método II. op., cit., p. 119.