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Um direito democrático do trabalho

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Atualizado às 08:38

Com o fim do Governo Bolsonaro e o início de mais um Governo Lula, novas expectativas foram criadas em várias áreas da sociedade, dentre elas a trabalhista. O que esperar em termos de transformação da realidade jurídica do trabalhador brasileiro? E, mais que isso, o que esperar de quem a transformará?

A comunidade jurídica já reconheceu há muito tempo que a tendência do Direito do Trabalho tem sido a de flexibilizar e de desregulamentar várias regras. A Reforma Trabalhista (lei 13.467/2017) e as Medidas Provisórias como alternativas emergenciais contra a COVID-19, todas, sem exceção, se basearam numa "autonomia" do trabalhador utilizada como valor para as inovações legislativas mais recentes. Além disso, se observa um fraco debate público em torno das transformações legais que são promovidas, tudo a resultar na clara pergunta em saber qual o efetivo interesse dessa tal "autonomia"?

Avaliando as ações e omissões do Governo Bolsonaro, o Relatório Final do Gabinete de Transição Governamental 2022 informou que houve subordinação à agenda ultraliberal, flexibilização, desmonte do combate contra as organizações, além de restrições às negociações tripartite ao diálogo social. A inspeção do trabalho também não foi poupada, pois, segundo o relatório, houve perda de autonomia normativa, técnica, financeira e de gestão nos últimos quatro anos.

Nesse quadro, há um nítido objetivo no novo Governo Lula de garantir um maior cumprimento com as regulações do trabalho no Brasil. Com isso, têm surgidas manifestações de certos setores da sociedade com o intuito gerar um debate em torno daquilo pode ser feito. Diferentemente das reformas protagonizadas por Temer e Bolsonaro, o debate público com a sociedade, nesta oportunidade, parece ser uma etapa que merece ser desenvolvida.

É de se esperar que hajam manifestações dos mais variados espaços sociais na tentativa de discutir ideias e de descortinar situações trabalhistas que se encontram carentes de alguma regulação e reorientação jurídica.

Um primeiro movimento que se percebe é o protagonizado pela Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativo (ANEA), recém-criada em dezembro de 2022, mas com uma pauta já mobilizada desde 2019. Ao tempo em que requerem maior inclusão no espaço de diálogo, realizam algumas propostas na tentativa de sugerir um modelo de regulação, conforme sua "Carta da Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativo (ANEA) sobre Regulação das Plataformas Digitais". Contra o sofisma de que tais entregadores seriam verdadeiros autônomos e empreendedores de si mesmos, partem de um pressuposto básico sobre a própria realidade de trabalho:

À semelhança de muitas formas de trabalho que foram transformadas e precarizadas nas últimas décadas, somos formalmente considerados autônomos ou empreendedores pelas plataformas, mas, na prática, sofremos controle, avaliação e competição por tarefas. Nossa liberdade é limitada ao poder escolher quando nos conectar ao aplicativo, e essa liberdade termina ali, quando somos guiados pelo algoritmo e temos que assumir todos os riscos do trabalho. Um verdadeiro trabalhador autônomo tem liberdade para definir o preço de seus serviços, escolher a organização de seu trabalho e como prestá-lo, sempre tendo a opção de recusar serviços sem sofrer penalidades. Pela nossa experiência cotidiana no trabalho, constatamos que a autonomia é aparente e não existe, pois há mera flexibilidade de horários.

Por isso, proposta de inovação legislativa possui os seguintes 12 pontos:

  • Formalização da relação de trabalho;
  • Acesso à Previdência Social;
  • Garantias de remuneração;
  • Definição da jornada de trabalho e descanso semanal;
  • Responsabilidade por custos e equipamentos;
  • Seguro de acidentes de trabalho;
  • Auxílio-doença e auxílio-acidente;
  • Garantias contra desligamento abusivo;
  • Condições de trabalho e serviço de apoio;
  • Liberdade de associação e sindical;
  • Direito à informação e transparência do algoritmo; e
  • Registro profissional e Carteira de Habilitação.

Além da ANEA, o Grupo de Pesquisa e Extensão da Faculdade de Direito da USP "Núcleo Trabalho Além do Direito do Trabalho" (NTADT) também se manifestou como mais um ator social com interesse em contribuir para o aprimoramento legislativo do Direito do Trabalho. Nesse sentido, elaboraram algumas propostas pontuais, as quais seguem os seguintes propósitos:

  • Priorizar alternativas legislativas propositivas, para contextos socioeconômicos que seguem carecendo de regulação jurídico-legal no campo trabalhista (ou cuja regulação atual é insuficiente ou inefetiva), sem prejuízo das propostas supressivas, relacionadas às inconstitucionalidades, às inconvencionalidades e aos excessos introduzidos pela Lei 13.429/2017, pela Lei 13.467/2017 e por outras leis promulgadas nas presidências de Michel Temer e de Jair Bolsonaro (diante da perspectiva de que as propostas supressivas, presumivelmente mais óbvias, chegarão por outras variegadas fontes);
  • Combater os elevados índices das taxas brasileiras de desemprego e de informalidade laboral;
  • Repactuar as funções do recriado Ministério do Trabalho (e revisar as suas recentes ingerências normativas, especialmente no campo das normas regulamentadoras de segurança, saúde e higiene do trabalho);
  • Revitalizar e ampliar os mecanismos de proteção social e as funcionalidades da Justiça do Trabalho;
  • Recuperar a tessitura normativa do Direito do Trabalho como posta antes do cenário emergencial da pandemia da COVID-19;
  • Impedir que o Brasil volte a figurar na chamada short list da OIT (como ocorreu entre 2018 e 2021);
  • Reverter a atual classificação do Brasil na quarta posição do ranking mundial de acidentes e adoecimentos do trabalho, deslegitimando as atuais políticas de monetização dos riscos trabalhistas, ao largo das repercussões humanas, sociais, econômicas e previdenciárias decorrentes;
  • Desvincular as inovações tecnológicas do século XXI, no campo laboral, da ideologia neoliberal que minimaliza os papeis do Estado e engendra relações de trabalho excludentes e proto-escravistas;
  • Propor alternativas legislativas completas, com minutas de anteprojetos de lei, para todos os temas abaixo configurados (a se apresentar à M.D. Equipe de Transição conforme haja demanda).

Mais recentemente, houve um Manifesto sobre a Regulação do Trabalho Controlado por "Plataformas Digitais". Aqui, associações, grupos de pesquisa e juristas se posicionam com sugestões para participarem do debate que pensa o futuro do trabalho no Brasil. Nesse caso, estabelecem os seguintes pontos de discussão:

  • Proteção para toda a classe trabalhadora;
  • Reconhecimento do vínculo de emprego como ponto de partida;
  • Regulação pública como forma de atenuar a desigualdade de poder;
  • Garantia de direitos trabalhistas como salário, jornada máxima de 8h, intervalos, férias e 13º salário;
  • Proteção de dados pessoais e transparência de sistemas automatizados;
  • Proteção social e tributação condizentes com as operações das empresas no Brasil; e
  • Incentivo ao desenvolvimento de plataformas públicas e de cooperativas.

Pelo que se pode perceber, manifestações começam a nascer com um ponto em comum muito forte: a melhor saída é a realização do próprio debate. O olhar desse movimento social após a vitória de Lula nas eleições de 2022 não deve ser apenas sobre as propostas, mas de onde elas saem. Não se trata de qualquer debate público, mas de um que seja verdadeiramente participativo com a inclusão daquelas pessoas que serão efetivamente afetadas pelas futuras regulações. É a partir dela que o novo direito do trabalho será construído, um direito democrático do trabalho.