Hiperjudicialização: A culpa é da Constituição Federal?
sexta-feira, 5 de agosto de 2022
Atualizado às 08:09
Com frequência ouvimos ou lemos matérias que defendem que a constitucionalização de vários direitos, a exemplo dos direitos sociais trabalhistas, foi o que levou ao aumento de processos judiciais desde a década de 1990. Sinceramente, tais afirmações causam para este autor certa angústia, até porque há que se recordar os motivos que fizeram nascer a Constituição Federal e da sua importância para a sociedade brasileira.
Podemos notar que, realmente, após o advento da a Constituição da República Federativa do Brasil Federal de 1988, houve significativo incremento de direitos básicos, alguns deles tão elementares que, a nosso ver, nem sequer deviam constar em uma Carta Magna. Porém, não podemos nos esquecer de que até o óbvio foi desrespeitado na ditadura militar e, pior, mesmo atualmente, tem reiteradamente sido ignorado em diversas questões.
Por isso, muito longe de trazer direitos excessivos, a Lei Maior de 1988 trouxe direitos basilares e extremamente relevantes, sobretudo aos trabalhadores. E não é porque são básicos que são poucos, porque o ser humano é um ser complexo que vive numa sociedade cada vez mais dinâmica. Portanto, não há como se pensar em uma listagem de direitos humanos sucinta, muito menos restritiva à figura do próprio trabalhador, afinal, segundo clássica frase do doutrinador espanhol, Mantero de San Vicente, "os direitos fundamentais não são como os chapéus que se deixam na entrada do local de trabalho, eis que tais direitos, assim como as cabeças, não podem ser separados da pessoa humana em nenhum lugar, sob nenhuma circunstância".
Por outro lado, não podemos nos esquecer que muito pior do que quem exige um direito fundamental é quem descumpre o direito de outrem. Ora, é por demais grave a conduta dos grandes litigantes que, a pretexto da defesa de interesses próprios, propiciam o excesso de demandas judiciais, a começar pelo poder público, nas três esferas, além dos bancos que, juntos, são réus em cerca de metade de todos os processos do Brasil, conforme já demonstrava ampla pesquisa do CNJ em 20111.
Na Justiça do Trabalho, por exemplo, a Fazenda Pública está entre os maiores litigantes, valendo mencionar que no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, no ano de 2020, seis pessoas jurídicas de direito público figuravam entre os dez maiores litigantes e, se comparados aos vinte maiores litigantes, constava ela em nove2.
Em idêntico sentido, mesmo em outras áreas do Direito se verificam inúmeras ações judiciais, a exemplo de empresas que ofendem direitos dos consumidores, e, por isso, abarrotam o Poder Judiciário com tais litígios, muitas vezes com temas reincidentes, sem qualquer punição maior por essa reiteração de condutas ofensivas.
Tal cenário denota a ideia de que "compensa" continuar violando direitos fundamentais e sociais, já que a punição, quando existente, é por demais morosa e aquém do necessário para coibir a efetiva perpetuação das condutas lesivas. A pretexto de respeito à malfadada segurança jurídica, o cálculo dos custos de indenizações deferidas pela Justiça acaba sendo incorporado ao "preço" que se pratica pela afronta de tais basilares garantias constitucionais.
É sabido que milhares - para não dizer milhões - de pessoas já passaram por dificuldades com grandes operadoras de telefonia, com atendimento por robôs, e com dificuldades para resolver um problema ou cancelar um plano. Impossível também esquecer do INSS, que notoriamente é conhecido por recusar quase todos os pedidos administrativos de benefícios previdenciários, alguns em situações tão evidentes que saltam aos olhos. E, claro, destacando-se a questão dos direitos sociais trabalhistas que, conquanto reafirmados pela Constituinte de 1988, continuam a serem desrespeitados em seus princípios comezinhos, como é o caso o reconhecimento do típico vínculo de emprego.
Tudo isso, claro, somado a um Poder Judiciário que, hoje, frente a esta nova demanda crescente resultante de uma judicialização exacerbada, se encontra desaparelhado tecnologicamente e, pior, sem número adequado de servidores e magistrados, que não acompanhou o crescimento significativo da sociedade.
Excepcionalmente, por certo, existem os casos de abuso do direito de ação, quando se pede o que sabidamente não se tem direito. Mas, por ser exceção, não pode ser confundido e/ou equiparado com a regra, de sorte que tais abusos, uma vez constatados, devem ser resolvidos de acordo no caso concreto, segundo as hipóteses previstas em lei de litigância de má-fé ou de ato atentatório à dignidade da justiça. Não se pode conceber que casos isolados sejam generalizados, como se verificou na tentativa da reforma trabalhista de punir todos os sucumbentes que, por força de lei, adquirem o direito à gratuidade judiciária, como se todo reclamante fosse um potencial mentiroso3.
Por todo o exposto, podemos concluir, a nosso sentir, que deve ser afastada toda e qualquer concepção de que os direitos sociais básicos previstos na Constituição Federal possam ser culpabilizados pelo excesso de processos judiciais, cabendo, ao revés, a verdadeira punição aos reais causadores dos conflitos.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Os artigos 790-B, caput e §4°, e 791-A, §4°, da CLT, foram julgados inconstitucionais pelo STF em 20/10/2021 (ADI 5766), de forma que o detentor da justiça gratuita não deve arcar com honorários advocatícios sucumbenciais e honorários periciais, pela mera sucumbência.