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Metaverso e multiverso: o Direito não deve se perder na memória

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Atualizado às 08:04

Um dos mais debatidos temas da atualidade é o chamado metaverso. Conceitualmente, metaverso é um ambiente digital composto por espaços 3D imersivos no qual os usuários interagem por meio de avatares. Esse ambiente envolve a utilização de tecnologias altamente refinadas, como as blockchains e suas diversas aplicações, quais sejam, criptomoedas, smart contracts, inteligência artificial e outras que ainda estão em desenvolvimento. Aliás, é justamente a utilização dessas tecnologias, aliadas à completa imersão do usuário para criar a sensação de que ele está em uma outra realidade, que criam uma série de possibilidades e questionamentos que desafiam o Direito a se reinventar, ou melhor, "ser definitivamente colocado no lugar da memória"1.

Não há somente um ou alguns metaversos, mas multiversos digitais que podem ou não se conectar, e as regras de funcionamento e complexidade de interações variam bastante a depender da plataforma utilizada.

Com efeito, a verdadeira comoção entorno do metaverso começou quando a Facebook, em outubro de 2021, alterou o seu mundialmente conhecido nome para passar a se chamar "Meta", também adotando uma nova logomarca com o formato do símbolo do infinito2. Assim, os aplicativos e outras marcas da Facebook passaram para o controle da "Meta". Essa movimentação em direção ao próximo passo da digitalização da vida ocorreu justamente em um período em que a empresa estava envolvida em muitas controvérsias relacionadas a possíveis violações da privacidade e demais direitos digitais e pessoais dos seus usuários, que foram trazidas à luz a partir do escândalo da Cambridge Analytica3. O investimento na criação de uma nova realidade pode ser interpretado como uma saída encontrada pela empresa para as críticas que estava sofrendo, críticas focadas - vejam que curioso - na permissão e até mesmo incentivo na criação e disseminação de conteúdos falsos.

Certa dose de ceticismo ainda permeiam as discussões que envolvem essas novas tecnologias, especialmente porque diferentes formas de criação de ambientes digitais interativos emuladores da realidade não são exatamente uma novidade, pois já havia videogames como o second life, the sims, minecraft e muitos outros. Ademais, há grande preocupação com o desempenho da própria "Meta", tendo em vista certas dificuldades que a empresa vem enfrentando para viabilizar o desenvolvimento tecnológico necessário, uma perspectiva marcada pela fuga de 4 (quatro) desenvolvedores importantes para a empresa e o colapso do laboratório de IA localizado em Londres4.

Todavia, certa cautela deve ser tomada para não subestimar o poder atrativo de um mundo 3D decentralizado que promete experiências sensoriais em tempo real muito próximas das interações atuais, mas desatreladas das limitações e regras do mundo físico. Ademais, em mercados disruptivos como os que envolvem o metaverso, é muito comum que as empresas tradicionais que já trabalhavam com as tecnologias em desenvolvimento não continuem sendo as empresas dominantes no mercado, mas sim as que são construídas durante o processo de inovação. Aqui, é importante destacar o enorme sucesso da Roblox, que é a plataforma interativa mais próxima do que é idealizado em termos de metaverso. O grande diferencial dessa plataforma de jogos é que o desenvolvimento é feito pelos próprios jogadores.

Apesar de existir desde 2004, a Roblox somente atingiu de fato um grande público em 2020, no auge da pandemia do SARS COVID-2. Em março de 2021, após um crescimento exponencial no número de usuários, a Roblox, avaliada em cerca de US$ 45.000.000,00 (quarenta e cinco bilhões de dólares), fez a sua primeira oferta pública5. Todavia, as expectativas para a empresa diminuíram no final de 2021, quando houve uma significativa queda nas ações negociadas na bolsa, o que ainda não foi o suficiente para desanimar alguns investidores6.

Se o metaverso se consagrará como um projeto bem-sucedido ou não, essa hoje não é a preocupação mais relevante, afinal, as operações comerciais e interações interpessoais já estão ocorrendo nesse ambiente virtual. Grandes empresas estão comprando imóveis e terrenos completamente digitais em sandboxes no metaverso ou na Decentraland por valores significativos7. Podemos fugir um pouco das aplicações do Direito Civil e do Direito do Trabalho para dar concretude ao problema exemplificando uma série de crimes que, muito embora não tenham implicações físicas nos usuários, podem causar danos emocionais ou morais, como cyberstalking, cyberbullying, extorsão, sequestro, simulação de atos terroristas etc8.

O objetivo do presente trabalho, portanto, é expor uma série de desafios gerais do Direito, sem delimitação de um ramo específico, que se encontram na fronteira - cada vez mais difícil de ser delimitada - entre o virtual e o real, sem pretensões de esgotar o tema.

Aqui, aliás, é preciso dizer que a autonomia, algum nível de anonimato e a descentralização do espaço digital, são grandes fatores propulsores da inovação, especialmente por expandir as redes de comunicação e reunião.

Nesse prumo, é comum sustentar que o Direito normalmente vem a reboque das transformações sociais, econômicas e tecnológicas. Todavia, os direitos individuais e coletivos que são impulsionados pelo ambiente digital não podem conduzir à sua autodestruição, que seria decorrente da completa ausência de regulação. No ponto, aderimos ao posicionamento de reforço do império da lei e do direito no espaço digital feita por Nicolas Suzor no seu livro "Lawless: The Secret Rules That Govern Our Digital Lives", o qual faz a defesa de que a ausência de regulação governamental e jurídica não se confunde com a liberdade, pois essa última somente existe - e é esse o paradoxo - enquanto for limitada.

A princípio, as violações a direitos que podem ocorrer no metaverso não possuem natureza distinta das violações que ocorrem no mundo físico. Nesse sentido, os diplomas legais brasileiro, pelo menos abstratamente, já conseguem categorizar os fatos relevantes e suas consequências jurídicas. A dificuldade não parece residir na deficiência da previsão legislativa, mas na própria aplicabilidade das normas, em razão do ambiente decentralizado e anônimo que permeia o metaverso. Atualmente, emergem questionamentos muito relevantes sobre competência jurisdicional e o alcance das legislações nacionais, e se cartas de direitos ou tribunais internacionais teriam mais facilidade de lidar com os potenciais conflitos.

Assim, um primeiro ponto de destaque é em relação aos próprios avatares, porque as interações dos usuários podem se dar com avatares "falsos", que não estão sendo controlados por pessoas naturais, mas sim por robôs, algoritmos ou inteligências artificiais. Alguma forma de identificação da pessoa física que está sendo manifestada pelo avatar parece ser necessária, da mesma forma que é exigido que os contatos telefônicos feitos por IAs ou robôs identifiquem a utilização dessas tecnologias. Consequentemente, se haverá formas de identificação dos usuários dos avatares, então medidas de proteção dos dados pessoais deverão ser adotadas ou até mesmo reforçadas para além das garantias oferecidas atualmente pelas empresas. Essas preocupações são ainda maiores quando se estão falando de dados sensíveis, como peso, gênero, raça, idade etc.

Ainda sobre os avatares, é bom destacar que se houver a identificação do usuário, o avatar será uma representação do usuário no ambiente virtual. A imagem e características "físicas" do avatar serão, a princípio, de livre criação do usuário, mas podendo corresponder total ou parcialmente à imagem da pessoa representada. Sendo assim, haveria a proteção aos direitos de imagem representada no avatar, de forma a ser necessária a aprovação para uso da imagem?

Ademais, como foi introduzido, a utilização de IAs no metaverso ainda traz outros questionamentos referentes aos direitos de autor e de propriedade intelectual. Relembremos a discussão sobre os direitos de propriedade no caso do macaco batizado de Naruto que em 2011 apertou o botão de uma câmera fotográfica e registrou uma selfie que se tornou famosa no mundo todo. Em 2015, um grupo de ativistas dos direitos dos animais ingressou com uma ação judicial nos Estados Unidos da América a fim de que o Poder Judiciário reconhecesse que a foto e os lucros provenientes da sua exploração comercial seriam de propriedade do macaco. Apesar de terminar em acordo entre as partes, o caso levantou questões sobre se os não-humanos seriam possuidores de direitos autorais. Se transpormos essa discussão para o atual contexto tecnológico, também poderíamos questionar se as IAs seriam detentoras dos conteúdos digitais e físicos que criarem.

Atualmente, a interpretação autêntica do art. 11 da Lei nº 9.610/1998 não levaria a essa conclusão, pois garante o direito de autor somente à pessoa física ou jurídica criadora de obra literária, artística ou científica, e, até o momento, não há que se entender as IAs existentes como pessoas. Todavia, essa configuração jurídica ainda é compatível com o atual nível de desenvolvimento tecnológico, mas esse é um cenário que está em exponencial transformação.

Em um apanhado do que foi aqui introduzido, pode-se afirmar que além da pretensão de regulação do espaço digital, é preciso que os órgãos e instituições oficiais, juntamente com os grupos organizados da sociedade civil, adentrem, o quanto antes, nos múltiplos metaversos existentes. É possível aproveitar do fato de que as múltiplas situações imagináveis podem ser projetadas no metaverso, de forma desprendida das amarras do mundo físico, para criar experimentações nesses ambientes, juntamente com a criação de sandboxes regulatórios, a fim de testar e realocar as possibilidades de intervenção jurídica no ambiente virtual.

Inúmeras possibilidades e benefícios, a depender do ponto de vista, podem se apresentar aos indivíduos e à humanidade a partir da utilização desses ambientes com possibilidades ilimitadas de conexão e experiências. O papel do Direito não é frear as inovações, mas sim garantir a preservação dos direitos de forma preventiva e reativa, a fim de que as potencialidades não se transformem em ameaças.

__________

1 Há uma frase de Canotilho na qual o autor português questiona alguns dos desafios que, em 2006, se apresentavam para o constitucionalismo, e expressa a ideia de que embora o Direito deva guardar certa rigidez, também deve ser flexível a ponto de não se tornar ultrapassado para lidar com as questões atuais da sociedade e da política. A frase pode muito bem servir de alerta também para os desafios tecnológicos que se apresentam "Trata-se de saber se o constitucionalismo, sem abandonar as memórias, pode continuar a ter e ser história neutralizando o perigo de ser definitivamente colocado no lugar de memória" (CANOTILHO, J.J. Gomes. Brancosos e interconstitucionalidade, 2006. p. 345).

2 Facebook Renames Itself Meta. The New York Times, nov. 2021. Disponível aqui.

3 The Scandal and the Fallout So Far. The New York Times, abr. 2018. Disponível aqui.

4 Meta's A.I. exodus: Top talent quits as the lab tries to keep pace with rivals. CNBC, abr. 2022. Disponível aqui.

5 Como a Roblox, nova febre da internet, atingiu US$ 45 bi e até onde quer chegar. CNN Brasil, abr. 2021. Disponível aqui.

6 Roblox Marches Ahead Despite Significant Headwinds. Nasdaq, mai. 2022. Disponível aqui.

7 Como exemplo, em novembro de 2021 o Wall Street Journal noticiou uma compra particularmente volumosa pela empresa Republic Realm, que comprou uma terra virtual da Atari SA por US$ 4.300.000,00 (4 milhões e trezentos mil dólares). (Metaverse Real Estate Piles Up Record Sales in Sandbox and Other Virtual Realms. WALL STREET JOURNAL, nov. 2021. Disponível aqui).

8 FORBES. Six unadressed legal concerns for the metaverse. Disponível aqui.