Combate à violência de gênero nas relações de trabalho: o que as empresas podem apreender com a Lei Maria da Penha
sexta-feira, 23 de abril de 2021
Atualizado às 08:49
Você conhece a Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006, que vou chamar aqui de LMP)? Se não conhece, deveria.
A LMP é considerada um dos instrumentos jurídicos mais avançados do mundo para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ela se aplica aos casos em que a violência é praticada contra a mulher, por questão de gênero, em um contexto familiar doméstico ou em uma relação íntima de afeto, que resulte, dentre outros, em morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
A violência de gênero, que a LMP combate, é a expressão máxima da discriminação contra a mulher.
1. Do que se trata quando falamos em violência de gênero?
Gênero é a construção social que organiza e interpreta as diferenças biológicas entre homens e mulheres. As relações de gênero são os famosos "papéis" que homens e mulheres se sentem socialmente destinados a desempenhar. Por exemplo: mulher é dócil e homem é competitivo, mulher cuida da casa e homem gerencia a empresa, mulher cuida da família e homem dos negócios. Esses papéis são socialmente/culturalmente distribuídos de forma desigual, cabendo à mulher uma posição subalterna nessa relação. Violência de gênero, portanto, é a que decorre dessa relação artificial de dominação do masculino sobre o feminino, a qual é estruturante da nossa sociedade.
A assimetria de poder entre homens e mulheres é reforçada pela ideologia patriarcal, que compreende, grosso modo, mulheres como seres inferiores aos homens. Mulheres são perseguidas e maltratadas pelo fato de serem mulheres. Mulheres são mortas pelo fato de serem mulheres. O feminicídio é prova incontestável da afirmação.
Um dos grandes méritos da LMP foi o de nomear e qualificar os tipos de violência de gênero: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Até o surgimento da Lei, muitas mulheres vivenciavam a violência doméstica em silêncio, pois não havia o reconhecimento expresso por um instrumento legal de que estavam sendo vítimas de uma conduta abusiva.
A LMP não cria crimes. Ela descreve condutas que são consideradas como violentas, sendo que algumas destas condutas podem corresponder a tipos penais e outras não. Não é, portanto, um instrumento legal a serviço do direito penal. Uma mulher pode sofrer violência psicológica sem que o ato corresponda a um crime, mas nem por isso ele deixará de merecer a devida proteção.
2. Dimensão pedagógica da Lei Maria da Penha nas relações de trabalho
A LMP tem âmbito de aplicação restrito: suas medidas se aplicam às violências ocorridas no contexto familiar, doméstico ou em uma relação íntima de afeto. Sendo assim, como podemos aplicá-la às relações de trabalho? A resposta que proponho é: valendo-nos da sua dimensão pedagógica. Em outras palavras, ainda que tecnicamente a LMP não se circunscreva às violências de gênero praticadas fora do ambiente doméstico, nada impede que ela seja norteadora das medidas a serem adotadas pelas empresas para prevenir e coibir a violência contra as mulheres no local de trabalho.
Para começo de conversa, precisamos compreender que o ambiente de trabalho é uma extensão da sociedade. Se vivemos em uma sociedade notoriamente violenta contra as mulheres, o ambiente de trabalho naturalmente reproduz essas relações de dominação e submissão.
Nas relações de trabalho, a discriminação de gênero se verifica a partir da divisão sexual de trabalho, ideia artificial de que existem "trabalhos de homens" e "trabalhos de mulheres", sendo que os "trabalhos de homens" são aqueles melhor remunerados e reconhecidos como de maior valor, enquanto os "trabalhos de mulheres" têm ligação com o espaço doméstico, de cuidado com os outros e subvalorizados economicamente.
Sendo a violência uma expressão da discriminação, os efeitos do fenômeno no mundo do trabalho não fogem à regra. Pesquisas apontam que as mulheres são as maiores vítimas de assédio moral e assédio sexual no trabalho.
Quando compreendemos a dinâmica da violência de gênero, torna-se possível reconhecer que, assim como ocorre no espaço doméstico e familiar, no ambiente de trabalho as violências estão amparadas em papéis artificiais de domínio que incumbem aos homens, e de submissão reservados às mulheres.
Mulheres também são violentadas no trabalho porque estruturalmente compreendidas como seres inferiores em direitos e oportunidades. Relacionamentos de trabalho podem ser abusivos ou tóxicos, assim como relacionamentos familiares e afetivos, porque todas as interações sociais entre homens e mulheres são permeadas por clivagens de gênero.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece que a violência e o assédio no trabalho implicam violação aos direitos humanos e são, em última instância, uma ameaça à igualdade de oportunidades e ao trabalho decente. As recentes Convenção 190 e Recomendação 206, ambas da OIT, que tratam de violência e assédio no trabalho, reconhecem a "violência e assédio de gênero" dirigidos contra as pessoas com base em seu sexo ou gênero, ou que afetam desproporcionalmente pessoas de um sexo ou gênero específico.
Compreender os assédios moral e sexual nas relações de trabalho quando praticados contra a mulher como atos de violência de gênero, nos termos da LMP, permite enfrentar o problema atribuindo-lhe a gravidade e importância que exige.
De fato, o que é o assédio moral, senão uma clara situação de violência psicológica, tal qual descrita na LMP? Veja o que diz a lei quando conceitua violência psicológica: "qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação."
No mesmo sentido, o assédio sexual no trabalho, além de poder, em certas circunstâncias, configurar crime, é exemplo típico de violência sexual nos termos da LMP, entendida como "conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos".
3. Aplicação prática da dimensão pedagógica da Lei Maria da Penha às relações de trabalho
Compreendidos o assédio moral e sexual como espécies de violência de gênero, nos termos da LMP, como podemos nos valer, na prática, da sua dimensão pedagógica nas relações de trabalho?
Entendo que a leitura integrada da LMP, da Convenção 190 da OIT, da Recomendação 206 da OIT, e do decreto 9.571/2018, o qual regula as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos humanos, tudo oferece importante direcionamento para os programas de compliance nas empresas.
Tomando-se, como exemplo, as diretrizes que a LMP dita para balizar o atendimento da vítima de violência doméstica pela autoridade policial. As empresas podem estabelecer direcionamento específico para apurar denúncia de assédio, moral ou sexual, contra mulheres, como por exemplo: (i) salvaguardar a integridade física, psíquica e emocional da trabalhadora vítima de assédio; (ii) garantir que, em nenhuma hipótese, ela permanecerá em contato com o agressor; (iii) não permitir sua revitimização, mediante sucessivas inquirições sobre os mesmos fatos, ou questionamentos sobre sua vida privada.
Os cuidados para a inquirição da trabalhadora denunciante também devem ser os mesmos dispensados às vítimas de violência doméstica pela Lei Maria da Penha, como: (i) proceder à sua inquirição em ambiente reservado; (ii) se possível, que a escuta seja intermediada por profissional preparada para compreender as sutilezas das relações de gênero; e (iii) registrar o depoimento em meio eletrônico ou magnético, para que seja possível o acesso à degravação pela denunciante ou autoridades.
Outras medidas podem ser previstas pelo regulamento interno da empresa, inspiradas na LMP, como o direito da mulher denunciante, se assim desejar, ser imediatamente removida do setor ou transferida de função sem quaisquer represálias ou consequências negativas.
A Lei Maria da Penha é instrumento legal que tem por finalidade garantir que toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goze dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, tendo asseguradas oportunidades e facilidades para viver sem violência. É também objetivo da LMP ver asseguradas, às mulheres, as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Os valores assegurados pela Lei Maria da Penha servem a todas as mulheres, em todos os ambientes da vida interpessoal e representa, em última análise, a garantia dos direitos humanos. Deve, portanto, nortear o combate e erradicação da violência contra a mulher em todas as suas manifestações e tomada como farol no ambiente corporativo.
*Denise Pasello Valente é advogada, doutora e mestre em Direito do Trabalho pela USP. Idealizadora do perfil no Instagram @_calabocajamorreu para a defesa dos direitos das mulheres.