A importância da desconexão nas relações de trabalho
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020
Atualizado às 09:26
O tempo sempre foi um fator relevante na relação de trabalho, pois aquele que não detém os meios de produção somente pode oferecer a sua força de trabalho e o faz por determinado período.
Karl Marx, em O Capital (1909), constatou que "a força de trabalho é comprada e vendida pelo seu valor, o qual, como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção".
No período pós Revolução Francesa, quando do estabelecimento de um Estado Liberal, foi alterada a forma de produção advinda principalmente com a Revolução Industrial. Flávio Roberto Batista (2016) descreve que esta revolução "marcou a passagem do protocapitalismo comercial para o capitalismo industrial", considerando que se deixou o modelo das Corporações de Ofício para uma produção mecanizada.
Os trabalhadores deixaram de possuir o controle da sua força de trabalho, já que se iniciou a utilização das máquinas à vapor e a produção passou a ser mecanizada, alterando radicalmente a relação entre capital e trabalho. Dessa forma, a propriedade dos meios de produção era somente do burguês rico (BATISTA, 2016, p. 153-154).
Evaristo de Moraes, em 1905, fazendo referência ao pensamento clássico dos economistas à época, afirmou que havia crença nas virtudes da liberdade do trabalho não se admitindo quaisquer normas para regulamentação do contrato entre empregado e empregador (MORAES, 1998).
O pensamento até então vigente era do homem livre com o direito de vender o seu trabalho, pelo preço e nas condições que quisesse, resultando então opressão, miséria, exploração e rebaixamento progressivo (MORAES, 1998).
A autonomia da vontade, vigente até o momento, fazia com que os trabalhadores "vendessem sua força de trabalho por até vinte horas diárias, bem como que o trabalho fosse feito por mulheres, inclusive as grávidas - eram comuns os partos dentro da fábrica, durante o horário de trabalho -, e crianças mesmo muito pequenas, a quantidade de acidentes fatais e mutilantes era muito alta, agravando ainda mais o cenário" (BATISTA, 2016).
O fenômeno da Revolução Industrial fez que com o número médio de horas de trabalho por ano subisse das 2,5 mil horas nos períodos pré-industriais para 3-3,5 mil horas durante as revoluções industriais, não havendo registro de períodos históricos que este patamar tenha sido alcançado (ROSSO, 1996).
Foi Robert Owen, em 1810, que dentre outras melhorias da condição dos trabalhadores em sua empresa em New Lanark (Inglaterra)[1], limitou a jornada de trabalho para 10 horas diárias, sendo este limite aplicado a todo país em 1847.
Em nível constitucional, o texto do México de 1917, foi a pioneiro em estabelecer a "desmercantilização do trabalho", pois "firmou o princípio da igualdade substancial de posição jurídica entre os trabalhadores e empresários na relação contratual (...)" (COMPARATO, 2012).
Neste sentido, o referido texto constitucional, no seu art. 123, trouxe o limite da jornada de trabalho em oito horas (inciso I) e sete horas para trabalho noturno (inciso II), descanso de um dia para cada seis dias trabalhados (inciso IV), salário igual sem distinção de sexo ou nacionalidade (VII) e responsabilidade do empregador quando o empregado for vítima de acidente do trabalho ou de doença ocupacional (inciso XIV).
No entanto, foi pequena a repercussão do texto constitucional mexicano. A Europa desconheceu à época a legislação até mesmo pela escassez de estudos doutrinários, ao contrário do que ocorreu com a Constituição de Weimar, de 1919 (OLIVEIRA, 1991 apud PINHEIRO, 2006).
A estrutura da Constituição de Weimar, imantando os direitos sociais com a força de norma constitucional, iniciou uma conscientização no Ocidente sobre o dever do estado em garantir a dignidade humana (AUAD, 2008).
O texto possui basicamente duas partes: uma que regula a estrutura administrativa do Estado e seus poderes, e outra que regula os direitos sociais como educação, saúde, dignidade da relação trabalhista, proteção à infância e à maternidade (AUAD, 2008, p. 338-339).
A Constituição Weimar influenciou as constituições modernas, e claramente isso também ocorreu no Brasil na Constituição de 1934, que no art. 121 trouxe regras de proteção social do trabalhador, dentre elas o limite de trabalho diário de oito horas.
A duração do trabalho possui diversas implicações. Sadi Dal Rosso (2006) cita três: (i) o impacto na qualidade de vida, considerando a possibilidade de usufruir ou não de mais tempo livre; (ii) demarca a quantidade de tempo durante o qual as pessoas se dedicam a atividades econômicas; e (iii) ainda tem relação direta entre as condições de saúde.
Gil Sevalho (1993), citando a medicina de Broussais, aponta que este "via a saúde e a doença limitadas entre si pelo excesso ou diminuição do trabalho fisiológico normal sob a ação de estímulos ambientais externos". Dessa forma, o período de energia para outra pessoa, como um operário em uma fábrica, tem relação direta com a saúde do trabalhador.
Como forma de resguardar a saúde do trabalhador e proporcionar sua recuperação física e mental foram estabelecidos descansos obrigatórios, um período de não trabalho, o qual deve ocorrer tanto no meio da jornada de trabalho e ainda entre o final de uma jornada e o início de outra.
Rodrigo Coimbra (2016), citando Giuseppe D'eufemia (1969), destaca que a limitação da jornada respeita diversos motivos: humanos, sociais e econômicos em face dos limites fisiológicos do ser humano, e ainda questões sociais, políticas e religiosas.
No entanto, geralmente a doutrina considera aspectos de natureza física ou biológica, psíquica, social, cultural e econômica. Sob a ótica física ou biológica, leva em conta a elevada duração da jornada, podendo causar a fadiga do trabalhador; psíquica e psicológica pelo esgotamento desta natureza do empregado, afetando a saúde mental e a capacidade de concentração do empregado; social e cultura, pois o empregado como componente social necessita ter relação com a comunidade e sua família; econômica, pois um trabalhador cansado não desempenha seu trabalho com mesma qualidade e rendimento, além de aumentar o risco de acidentes de trabalho e de doenças resultantes do trabalho (COIMBRA, 2016).
O professor Maurício Godinho Delgado (2019) define como períodos de descanso os lapsos temporais regulares ou não situados intra ou intermódulos diários, semanais ou anuais do período de labor, em que o empregado pode sustar a prestação de serviços e sua disponibilidade perante o empregador, com o objetivo de recuperação e implementação de suas energias ou de sua inserção familiar, comunitária ou política.
No Brasil, desde 1988, a jornada máxima de trabalho deve ser de 44 horas semanais (inciso XIII do art. 7º da Constituição), dispondo a legislação que os intervalos, salvo casos específicos, devem ser de 15 minutos para uma jornada de trabalho acima de 4 horas até 6 horas, e de 1 a 2 horas para um trabalho acima de 6 horas (art. 71, caput e §1º da CLT). A Lei nº 605/49 regulamenta um descanso semanal que deve ser devidamente remunerado.
No entanto, Sadi Dal Rosso (2011) expõe que essa separação de período de trabalho e de não trabalho está cada vez mais tênue, ressalvando que nem todas as atividades de não trabalho carregam o significado positivo, caso do desemprego, por exemplo.
Contribui com a diminuição do tempo de não trabalho a gestão empresarial, quando focada na cultura do desempenho, como exposto por Vincent de Gaulejac (2007), onde alguns trabalhadores são colocados em evidência para que outros se sintam obrigados a ter mesma rentabilidade. Esse sistema transmite uma ideia de pressão em toda a sociedade, pois é fomentada uma competição onde para ser o melhor precisa ser o primeiro.
A vigilância de boa parte dos trabalhos deixou de ser física e passou a ser comunicacional. A tecnologia fez com que o controle seja sobre os resultados do trabalho, não havendo mais a necessidade de quadricular o tempo, mas sim conseguir uma disponibilidade total do trabalhador para atingir as metas da empresa (GAULEJAC, 2007).
O tempo morto não mais existe, pois os períodos de deslocamentos, espera e contratempos podem ser utilizados para resolver pequenos problemas (GAULEJAC, 2007).
Diante da grande exigência do trabalhador pós moderno, aprofundada pela crise econômica e a pandemia, com implementação em larga escala do teletrabalho, a desconexão passa a ser um direito extremamente relevante, pois o dano à saúde pode ser relevante.
Ao contrário do que se entendia quanto ao teletrabalho, que seria um ganho na qualidade de vida do trabalhador por não ter que enfrentar o deslocamento e estar fora do ambiente empresarial, isso não ocorre. Como já expôs Márcio Túlio Viana (1999), esse sistema de trabalho não impede que o trabalho continue a sofrer as cobranças constantes: "na verdade, a volta ao lar que hoje se ensaia não significa menos tempo na empresa, mas - ao contrário - a empresa chegando ao lar".
A permanência da conexão ocorre por exigência clara do empregador ou quando o empregado, por receio de perder o emprego, se permite permanecer conectado, o que muitas vezes é objeto de elogios perante os demais trabalhadores.
Para Jorge Luiz Souto Maior, o direito à desconexão não é individual do trabalhador, mas da sociedade e da própria família, esclarecendo que o não-trabalho não se traduz no não trabalhar, mas no sentido de trabalhar menos, até o nível necessário à preservação da vida privada e da saúde (2003).
A legislação francesa já avançou neste aspecto e regulamentou o direito à desconexão como um direito fundamental do trabalhador (Lei nº 2016-1088), estabelecendo que as empresas deverão adotar modalidades de modo a propiciar ao trabalhador do pleno exercício de seu direito a desconexão e ainda regular as ferramentas digitais para assegurar o cumprimento dos períodos de repouso e férias (HARFF, 2017).
Em nossa legislação o direito à desconexão não é regulamentado de forma de clara, mas pode ser construído esse entendimento, pois os períodos de descanso são componentes importantes da saúde do trabalhador e a saúde é um direito fundamental, conforme art. 6º do texto constitucional.
Notamos no recente noticiário um movimento espontâneo de empresas em respeitar o direito à desconexão. Estão adotando mecanismos de controle, não da jornada, mas do período de descanso do trabalhador, impedindo qualquer conexão deste ao seu empregador, seja em quantidade de horas no dia ou por dias inteiros.
A tecnologia nos trouxe um mundo sem barreiras, a comunicação se dá em tempo real, houve uma profunda alteração da prestação de serviços, mas a fisiologia do trabalhador é aquela mesma da revolução industrial. Não podemos neste século ter as mesmas demandas, devemos evoluir.
*Alan Martinez Kozyreff é advogado e professor. Doutorando em Ciências Farmacêuticas, Mestre em Direito da Saúde, Especialista em Direito do Trabalho e em Direito Previdenciário.
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1- Robert Owen também atua na educação permanente dos trabalhadores, no bem-estar, limita a contratação de crianças para a partir de 10 anos de idade, proporciona educação infantil e lazer (SOUZA; OLIVEIRA, 2006).
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