Doença endêmicas configuram doença ocupacional?
sexta-feira, 10 de julho de 2020
Atualizado às 08:56
Texto de autoria de Paula Bolico Lampert
A covid-19 traz a debate a sua natureza endêmica, o que poderia levar à conclusão de que não poderia ser enquadrada no conceito de doença ocupacional e, mais, afastar de plano a possibilidade de incidência das normas de proteção em caso de contágio, em face da previsão do artigo 20, § 1º, "d", da lei 8.213/1991.
A doença endêmica representa tipo de enfermidade própria de determinadas regiões do país, em especial no Brasil (Norte e Nordeste). É a enfermidade que "persiste em determinado território ou em certas de suas zonas; é a dependente de causas locais e grassa habitualmente num povo ou numa região; é a expressiva de uma causa habitual"1.
Permanece atrelada ao fato de ser própria de região específica, em determinado tempo e espaço2. É "peculiar, usual, comum a um povo e região" podendo ser citadas como exemplo a malária (típica de regiões quentes e pantanosas) e o mal de Chagas (transmitido pelo mosquito barbeiro ou pelo Trypanosoma Cruzi)3.
Tem "[...] caráter de endemia; peculiar a um povo ou região; aquela que sem grandes variações de incidências ocorre constantemente em determinada região"4. Para Mozart Victor Russomano, caracteriza-se pela generalização, alcançando elevados índices estatísticos em região ou localidade específica de um país; é a doença que, por força das condições locais, se manifesta habitualmente na população de determinada extensão territorial5.
Nessas hipóteses, não há correlação entre a atividade do empregado e a enfermidade, justificada, ainda mais, com as características de pandemia da Covid-19. Contudo, o mesmo dispositivo que repele o caráter ocupacional da doença, contém exceção na sua parte final, representada pela expressão "salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".
Trata-se de expressa ressalva do conceito de doença ocupacional o fato de a sua aquisição haver sido ocasionada pela exposição ou contato direto com a doença em função do trabalho.
Para tanto, devem ser considerados os fatores paralelos relacionados aos antecedentes ou à história do trabalho com a doença, duração ou tempo exposto, sensibilidade de cada pessoa.
Ivan Kertzman e Luciano Dorea Martinez Carreiro após citarem, como exemplo, a situação em que um empregado, habitante da região amazônica, é picado pelo mosquito transmissor da malária, registram que o fato pode caracterizar doença do trabalho se a exposição ao contato direto com o citado inseto se der por força do seu labor, como em relação aos "caça-mosquitos"6.
Distingue-se a endemia, porém, da epidemia. Esta corresponde a um "surto de uma doença acidental e transitória que ataca grande número de indivíduos, ao mesmo tempo, em certo país ou região, com o caráter de extraordinário"7.
Observa Bento de Faria que a doença de natureza endêmica pode se manifestar sob a forma epidêmica, em regiões não endêmicas, o que não permitirá afastar a circunstância excludente, em virtude do caráter de extraordinariedade como no episódio fartamente noticiado pela imprensa de ocorrência de inúmeros casos de doença de Chagas em Santa Catarina, no ano de 2005, ou, nessa fase atual da história, a Covid-19, já no estágio de pandemia8.
Assim, a doença, mesmo endêmica ou pandêmica, no caso da Covid-19, pode ser considerada de natureza ocupacional quando resulte das condições de trabalho. Exemplo disso é o caso de o empregado transferido de região onde não ainda não existia venha a contrair a doença por trabalhar em local em que esteja disseminada ou quando, mesmo habitando-a, não seja portador da doença e a adquira pelo fato de haver sido exposto ao contágio, como no caso específico dos profissionais de saúde ou dos trabalhadores que executam as atividades de limpeza e higienização dos estabelecimentos de saúde; motoristas de ambulância e carros funerários; trabalhadores em cemitérios, entre outros.
Significa afirmar que, anteriormente à etapa de possível contágio generalizado, se um empregado viajasse a serviço para países onde já houvesse essa forma de transmissão, não se pode afastar o caráter ocupacional, pois foi exatamente o trabalho que potencializou a condição de exposição aos fatores de contágio e de risco de contaminação.
Por isso, mostra-se relevante identificar-se a data em que, no Brasil, foi declarada a situação de transmissão comunitária, o que ocorreu, oficialmente, no dia 20 de março de 2020, como informa o Ministério da Saúde, pelo fato de existirem, nessa data, 904 casos confirmados em 24 Estados da Federação, além do Distrito Federal. Antes desse fato, havia condições, pelo menos no plano teórico, de ser identificada a origem do contágio, em geral pessoas provenientes de regiões afetadas pela doença.
Por isso, tem pertinência o alerta feito por Feijó Coimbra, relacionado à doença degenerativa, mas aplicável às doenças endêmicas, no sentido de que existirão casos em que a índole degenerativa da doença (ou endêmica, acresça-se) não impedirá que seja ela acolhida como fator de risco profissional, sendo necessário, para tanto, averiguar como o trabalho pode ter influído no aparecimento ou no agravamento do mal9.
Em outras palavras, se o fator trabalho nada acrescentar às possibilidades de contágio, estar-se-á diante do que se pode denominar de "doença exclusivamente endêmica", e, por conseguinte, terá plena incidência o artigo 29 da MP 927/20; caso contrário, permanecem as regras gerais contidas na lei 8.213/1991, até porque não foram afetadas pela nova disciplina normativa.
Em recente decisão liminar, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, suspendeu a eficácia do artigo 29 da MP 927, que determinava que os casos de contaminação pelo coronavírus não eram considerados doenças ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal.
Segundo o relator das ADI's 6346, 6348, 6349, 6352, 6354, 6342, 6344, ministro Alexandre de Moraes, "o artigo 29, ao prever que casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal, ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco". Também votaram neste sentido os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Carmen Lucia, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux e Luiz Roberto Barroso.
Portanto, pelo menos até que ocorra o julgamento definitivo do mérito das citadas ADI's, o dispositivo foi extirpado do sistema jurídico, o que faz prevalecer, no tema, as regras previstas na lei 8.213/1991 outrora destacadas.
Ao encontro com este entendimento do E. STF, a Juíza da 1ª Vara do Trabalho de Vitória, Estado do Espírito Santo, reconheceu a reintegração de trabalho a uma técnica em enfermagem que foi demitida após retornar de afastamento por ser diagnosticada com COVID-19. A juíza considerou o entendimento da Excelsa Corte no sentido de que a infecção por coronavírus pode ser equiparada à doença ocupacional. Ainda, entendeu a magistrada que é fato notório que os profissionais da área de saúde têm atuado linha de frente para prevenir, combater a propagação e tratar os infectados pelo novo coronavírus no Brasil10.
Por todo o exposto, apesar da natureza pandêmica - acima, portanto, da condição de mera endemia -, a covid-19 pode ser qualificada como enfermidade de natureza ocupacional, mais precisamente doença do trabalho, para os casos dos trabalhadores que exercem as suas atividades em ambientes nos quais estejam presentes as possibilidades de contágio, como estabelecimentos de saúde, ambulâncias, necrotérios, hospitais, entre outros. Na mesma linha, pode ser equiparada à natureza ocupacional nas situações de pessoas que, de modo acidental, venham a se contagiar, desde que se faça necessária a comprovação do nexo de causalidade entre a doença e o labor.
*Paula Bolico Lampert é advogada trabalhista e pós-graduanda em Direito e Processo de Trabalho e Seguridade Social na Fundação Escola de Magistratura Trabalhista do Rio Grande do Sul - FEMARGS - PORTO ALEGRE/RS.
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1 FARIA, Bento de; FARIA, Edmundo Bento de. Dos acidentes do trabalho e doenças profissionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, [19-], p. 172.
2 CARVALHO, H. Veiga de. Acidentes do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 52.
3 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Curso de direito infortunístico. 3. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1992. p. 63.
4 PEDROTTI, Irineu Antonio. Comentários às leis de acidentes do trabalho: área urbana e rural. São Paulo: Universitária de Direito, 1986. p. 45.
5 RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à lei de acidentes do trabalho. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. v. I, p. 31.
6 KERTZMAN, Ivan; CARREIRO, Luciano Dorea Martinez. Guia prático da previdência social: tudo sobre sua aposentadoria e demais benefícios. Salvador: JusPodivm, 2003. p. 66.
7 FARIA, Bento de; FARIA, Edmundo Bento de. Dos acidentes do trabalho e doenças profissionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, [19-], p. 172.
8 FARIA, Bento de; FARIA, Edmundo Bento de. Dos acidentes do trabalho e doenças profissionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, [19-], p. 172.
9 COIMBRA, Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 2001. p. 205.
10 Disponível aqui. Acesso em: 6 de jul. 2020.