Não quero ter razão sobre Neymar
quarta-feira, 12 de março de 2025
Atualizado às 07:48
Este texto foi mentalmente concebido semanas antes do jogo do último domingo, 9 de março, entre o Santos e o Corinthians, e escrito após o seu desfecho. A ausência de Neymar e o resultado não influíram (ou não deveriam influir) no conteúdo de que se trata abaixo.
A motivação dessa concepção decorreu da festa de apresentação do jogador à torcida santista, ocorrida em 31 de janeiro, que provocou toda sorte de reações e provocações. Pessoas ficaram indignadas com as imagens que circularam nas redes sociais nas quais ele celebrava o momento com representantes da direita ou da extrema-direita (que reforçariam suas posições ideológicas); já outras não se conformaram com a participação de ícones de pautas humanistas ou identitárias nas festividades.
Correndo o risco de cair no erro de Tite (mas por motivos diversos), que justificou a convocação de Daniel Alves à Copa de 2024 por uma suposta transcendência em relação ao futebol, os debates sobre Neymar há tempos envolvem muito mais do que futebol.
Não se trata de uma transcendência, pois o futebol é maior do que qualquer jogador, por mais expressivo que tenha sido, mas de um posicionamento que gera paixões e ódios, independentemente do que ele faça (ou não faça). Neymar passou a conotar e a denotar muitas coisas, até mesmo políticas e ideológicas.
A posição que ocupa não aconteceu por acaso e não provém apenas de suas qualidades técnicas; tem muito a ver com o personagem que passou a representar, que não deixa de ser um personagem de si próprio, e de atitudes que o confundem, para o bem e para o mal, com um popstar (o que, de fato, ele é).
Apesar de suas polêmicas (saída prematura do Barcelona, aparente pouca empatia com Paris, atuação fantasma na Arábia Saudita, ausência no jogo contra o Corinthians etc.), continua a ser e talvez sempre seja um dos maiores fenômenos midiáticos do século. O acúmulo de centenas de milhões de seguidores nas redes sociais confirma a proposição.
E aí surgem os principais debates sobre o que ele é e o que poderia ser, em diversos planos, tais como esportivo, político e social. Invariavelmente se transferem a ou se projetam em Neymar as condutas que, sob a perspectiva dos debatedores, eles as realizariam se fossem Neymar: focar e treinar mais, para ganhar o prêmio de melhor do mundo; dedicar-se à seleção e à conquista de uma copa; apoiar pautas progressistas; envolver-se em projetos sociais; dentre outras.
Aqui sim se revela um dilema de transcendência, pois o exercício que se faz, ao se colocar no lugar de outra pessoa, não leva em conta as distintas realidades e toda a carga social, emocional e educacional que separam o crítico e o criticado. Mesmo que, eventualmente, provenham das mesmas origens, ainda assim a apropriação da personalidade, para efeitos de especulação de condutas imaginárias, falha pela falta de contato com a realidade criticada.
A verdade é que, no início de sua trajetória, sabidamente humilde, ninguém ou quase ninguém estava lá para contribuir para sua formação e ascensão, exceto, com as limitações que tinham, seus próprios parentes; assim como quase ninguém está lá para apoiar milhares (ou milhões) de crianças de comunidades brasileiras, que provavelmente não atingirão seus sonhos de transformação em jogadores e, muito precocemente, se depararão com subempregos ou empregos que não desejaram.
Mais: quando um egresso da base rompe a bolha e se projeta sobre a sociedade, a sociedade reage e passa a cobrar-lhe atitudes que ela não lhe proporcionou; nem ou muito menos o Estado, que se revelou, desde a sua concepção brasileira, incapaz de solucionar o problema da desigualdade originária e da distribuição de educação e de saúde, apesar das montanhas de recursos arrecadados cotidianamente para financiamento de uma burocracia (executiva, legislativa e judiciária) ineficiente e, não raro, ultraprivilegiada.
Apesar disso tudo, na minha visão, Neymar poderia ser diferente, em muitas coisas. Não apenas na minha, mas de outras pessoas também. E o que isso importa, na prática? Nada. Inclusive porque, muito provavelmente, para milhares de (outras) pessoas, está tudo em ordem com as suas decisões e posições. Aliás, em um ambiente tão polarizado, ele passou a sintetizar, para um lado ou para outro, os desejos e as aversões dos polos, de modo que, para onde for, encontrará elogios, apoios, resistências e críticas.
Neymar, como produto, é um sucesso planetário e lucrativo. Não apenas como produto, mas como jogador também. Ainda não foi campeão do mundo, e daí? Zico e Sócrates também não foram. Azar da copa do mundo, como diria o jornalista Fernando Calazans. Isso não diminui as suas qualidades técnicas, quase divinas, e as perspectivas de negócios atuais e futuros de suas empresas, pois, em algum momento, ele, ou melhor, sua equipe, chefiada por Neymar Pai, adotou um caminho que, empresarialmente, é e deverá continuar a ser muito exitoso.
Neymar já poderia ter deixado o campo há muito tempo, mas se mantém ativo. Talvez porque ainda sonhe com a copa do mundo ou porque ainda reste alguma vontade de jogar. Ou simplesmente porque faz parte do projeto de desenvolvimento dos produtos Neymar. Ou, quem sabe, um pouco de cada.
Isso tudo (sem fidelidade a um dos elementos) é Neymar. Para alegria e idolatria de muitos e aversão e repúdio de outros; combinação que, ao final, o tira do pedestal e, nas palavras de Mario Vargas Llosa, escritas em relação a Victor Hugo, o humaniza: "hacen mal los biógrafos explorando estas intimidades sórdidas y bajando de su pedestal al dios olímpico? Hacen bien. Así lo humanizan y rebajan a la altura del común de los mortales, esa masa con la que está también amasada da carne del genio. Victor Hugo lo fue (...) una de las más ambiciosas empresas literarias del siglo XIX (...). Pero también fue un vanidoso y un cursi (...)."
Os biógrafos não precisarão mostrar as patologias do ser humano Neymar, pois ele não faz questão de escondê-las, no presente, como se vivesse - e de alguma forma vive - em um permanente (e inconsequente) reality show; e, mesmo assim, consegue atrair multidões, incluindo, no limite, ideólogos, que se despem de suas ideologias para ver um dos maiores gênios do século jogar.