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Fernanda Torres, João Fonseca, os futebolistas e o Brasil

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Atualizado às 10:46

O ufanismo que tomou conta de parcela das elites econômica e cultural do país, por motivos distintos1, revela (apenas) a necessidade - e a urgência - de promoção de debates a respeito da criação de políticas públicas voltadas não apenas à afirmação de um povo que, apesar de sua contribuição para o desenvolvimento da humanidade (e disso deve mesmo orgulhar-se), ainda tem muito a divulgar e, mais importante, produzir - e, assim, assumir uma posição mais vigorosa (ou, como talvez escrevesse Nelson Rodrigues, menos viralatista). Especialmente porque os eventos que despertaram as reações mais ou menos contundentes decorreram de excepcionalidades, e não de ações estruturantes.

João Fonseca, o jovem tenista que fez o país relembrar as glórias de Gustavo Kuerten - e provocar desnecessárias comparações -, e projetar uma nova era de conquistas próprias, que podem (ou devem) levar o hino e a bandeira do Brasil ao topo, será, quando os seus feitos se confirmarem, uma eventualidade histórica (ou estatística): não se trata, evidentemente, de uma crítica a ele ou à competente equipe que o circunda, mas da constatação de que, até o presente ano de 2025, apenas uma brasileira, Maria Esther Bueno, e um brasileiro, o já mencionado Gustavo Kuerten, venceram Grand Slams em simples profissionais.

Muito pouco, ou melhor, nada, para um país que, conforme censos atuais, ocupa a sétima posição no ranking de maiores populações (em torno de 220 milhões de habitantes2) e a décima entre as maiores economias (atrás, apenas, de EUA, China, Alemanha, Japão, Índia, Reino Unido, França, Itália e Canadá)3.

A partir do momento em que a vibrante promessa ampliar a lista de ganhadores, algo que, sem dúvida, o país aplaudirá, a contabilidade ainda assim persistirá em níveis diminutos, em números absolutos ou em relação à potencialidade latente. Estar-se-á, novamente, diante de fato isolado, viabilizado pelas condições financeiras e perspicácias planificadoras de seus familiares, que souberam, com recursos próprios ou de terceiros, oriundos de seus contatos pessoais e profissionais (algo não reproduzível, em especial para jovens de classes desfavorecidas), traçar os rumos de uma carreira.

Os títulos de João Fonseca, que já se acumulam e se acumularão, não têm (e talvez jamais terão), portanto, nada a ver com um projeto de desenvolvimento do país, que o enchesse de orgulho (novamente, nenhuma crítica ao tenista e seus planificadores), e serão, mesmo que vestidos de verde e amarelo, vitórias particulares.

Na mesma linha, o emocionante sucesso do necessário "Ainda Estou Aqui" (não apenas pela recompensação a uma família violentada pelo Estado, mas, também, pelo momento do reconhecimento), protagonizado por Fernanda Torres, provocou manifestações (compreensivelmente) fanáticas, sobretudo em reação aos ataques ideológicos de que o filme e a atriz foram vítimas, que expôs ao Brasil e ao mundo os horrores do regime militar.

Os números brasileiros, no âmbito da premiação - se é que importam -, também são ínfimos: antes de "Ainda Estou Aqui", pouco mais de uma dezena em diversas categorias e em todos os tempos4, e nenhuma vitória. As novas indicações descortinam, na verdade, uma incômoda realidade: a excepcionalidade do fato.

Nesse ponto (ou nessa esquina) João Fonseca e Fernanda Torres se encontram para: (i) simbolizar o orgulho de alguma coisa, apropriado por cada orgulhoso em função de sua própria perspectiva; (ii) lembrar que, dramaticamente, tardará para que surjam outros Joãos e Fernandas, enquanto não se promoverem políticas públicas efetivas e apoios privados desinteressados e em larga escala, ao desenvolvimento educacional, social e econômico; e (iii) acalentar a esperança de que, apesar da fissura social e política, ainda se vive no (eterno) país do futuro.

Também naquela esquina outras pessoas poderiam se encontrar com João Fonseca e Fernanda Torres: os futebolistas que, em sua grande maioria, provieram de classes desfavorecidas, tiveram pouco tempo ou oportunidade para estudar e são, mesmo quando bem-sucedidos, excluídos social e culturalmente (as poucas exceções costumam ser brancas e nascidas em ambientes mais privilegiados).

Poderiam, mas não se encontrarão naquela esquina porque, inversamente ao que se produziu com João Fonseca e Fernanda Torres, seus feitos, eventualmente semanais, são desconsiderados (ou mesmo ignorados), exceto pela imprensa especializada ou quando acompanhados de algum drama ideológico, físico, racial ou identitário.

Talvez se afirme que a apropriação do futebol pelo Regime Militar, na Copa de 19705, tenha deixado rasgos ainda não cicatrizados, que impedem a construção de uma relação simbiótica (ou que não se restrinja à preferência clubística); algo que, apesar de tentador, não faria (e não faz) o menor sentido e não deixaria de escancarar que, na verdade, desde que bolas foram involuntariamente chutadas para fora das fábricas de trabalhadores brancos e europeus, e caíram nos pés da população preta e afim, promoveu-se uma inversão hierárquica jamais revertida e aceita - e cujo inconformismo se expressa, cotidianamente, em atos racistas em campos de quase todos os países.

Não!, a dificuldade que o país e suas elites têm com os futebolistas, ou melhor, com a perspectiva de inserção e ocupação de espaços, não se associa a 1970 ou à ditadura pois, assim fosse, não se teria operado, talvez como (realmente) nunca, a união nacional pela seleção de 1982, protagonizada por Sócrates, Zico, Falcão e Eder, aliás, possivelmente, a mais "branca" e intelectualizada (ou educada) desde 1950.

Enfim, João Fonseca e Fernanda Torres devem ser celebrados; mas, ao mesmo tempo, devem servir para que o Estado e a iniciativa privada se conscientizem de que o país carece de políticas e iniciativas consistentes com a sua grandeza (ao menos física).

Mais: que o país insiste em desprezar uma de suas maiores riquezas, o futebol, atividade umbilical e visceralmente atrelada ao seu povo (que há décadas vem se espalhando, apesar de tudo, entre times localizados em dezenas de países), e que deveria se projetar como instrumento de inserção e desenvolvimento, e como o principal softpower brasileiro.


1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.