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O aprisionamento do futebol argentino e a pobreza do debate ideológico (ou oportunista) - Parte 2

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Atualizado às 07:32

Afirmou-se, no texto publicado na coluna anterior (em 22/11/23), que a falaciosa aversão à privatização do futebol argentino - falaciosa porque todos os times locais são privados - dissimulava o esforço de manutenção do poder da classe cartolarial sobre a atividade futebolística daquele país.

A dissimulação atingiu níveis teatrais com a publicação quase que simultânea de notas ou comunicados, em que dúzias de clubes exteriorizaram posições forradas de conceitos morais, em defesa do associativismo (o qual expressa o resultado de décadas de confusão entre interesses corporativistas e os propósitos futebolísticos).

Mais: a teatralização foi amparada por parte da imprensa, que a empacotou (intencionalmente ou não) como uma reação às propostas liberais do então candidato e atual presidente eleito, Javier Milei. Formou-se, assim, uma falsa perspectiva de contraposição a certas posições políticas e econômicas do candidato.

Nesse imbróglio, exsurge o ex-presidente do país, Mauricio Macri. Em entrevista a determinado programa esportivo, ele revelou sua indignação ao posicionamento coletivo e intransigente contrário a uma lei que irá (se, de fato, aprovada), simplesmente, oferecer uma possibilidade, a ser adotada ou não, por quem a quiser, mediante manifestação dos próprios associados.

E aqui o objetivo dissimulado dos dirigentes locais vem à tona, de modo inafastável (e indefensável): com a negação de uma possível futura lei, eles afastam o direito dos associados de decidirem o destino do clube e do time. Desdizem, portanto, o que, de modo apenas aparente, pretendem afirmar. 

Aí desvendam-se, pois, alguns dos temores do cartolariado: o risco de os torcedores, pela primeira vez na história, (i) depararem-se com instrumentos para avaliação do papel desempenhado, até aqui, pelos líderes clubísticos, e (ii) compreenderem que passará a existir uma alternativa ao próprio cartolariado, em caso de reprovação dos resultados apresentados por esta classe.

Enquanto, porém, o sistema jurídico não oferecer uma via alternativa, o debate se manterá dentro de níveis e de rivalidades pessoais, a respeito - como também se vê no Brasil - de pseudo aspectos morais, éticos ou técnicos de pessoas específicas, em relação aos quais cartolas sabem transitar e se esquivar.

Por tais motivos, nada, absolutamente nada justifica, na Argentina, no Paraguai ou em qualquer outro país, a cruzada clubística - que, na verdade, não é dos clubes e muito menos de torcedores, mas dos dirigentes que defendem seus próprios interesses - para que o respectivo Congresso se exima de legislar sobre a criação de meios voluntários para libertar o futebol sul-americano do aprisionamento estrutural.

Libertação, no caso, não tem uma conotação ideologicamente liberal, como se pretendeu na Argentina, pela associação do tema a dois enérgicos defensores do (ultra) liberalismo econômico, Mauricio Macri e Javier Milei. Ao contrário: trata-se de esforço cívico para permitir o escrutínio, inédito, do legado e do trabalho atual dos autorreferenciados guardiões da história e da tradição.

Aliás, séculos atrás, por motivação não necessariamente humanística, a escravidão passou a ser rejeitada por determinados países ou reinos, que se beneficiaram - e ainda se beneficiam - dela. Os senhores de escravos, financiadores (ou integrantes) de governos coloniais, resistiram até o limite de suas influências, fraquejadas pela influência de novos conceitos morais e pelos impactos econômicos da manutenção de interesses pessoais ou grupais.

A comparação pode parecer desarrazoada - por envolver a própria raça humana -, mas não é: no plano do futebol, os mesmos colonizadores europeus e praticantes originários do jogo de bola experimentaram um processo transicional, do amadorismo - enraizado no associativismo - para o profissionalismo, que eliminou do processo a carga política e, sobretudo, a politicalha do sistema de governo, de gestão e de controle. Ou seja, as mesmas características que persistem na América do Sul.

Por tais motivos, talvez se reconheça, no futuro, que o movimento iniciado no Brasil com o advento da Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que parece jogar luz sobre o modelo argentino (e, vale lembrar, sobre o paraguaio, também), simbolize um novo marco liberatório na região.

Entretanto, a decisão a respeito do futuro grandioso ou arrastado, de um ou outro clube, e mais ainda, do próprio futebol argentino, não parece que deveria ser privilégio de (e privilegiar) um punhado de agentes conflitados e interessados no oligopólio gerencial esportivo.

Esse é o debate que viabilizará o resgate da relevância dos times daquele país.