COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Meio de campo >
  4. O aprisionamento do futebol argentino e a pobreza do debate ideológico (ou oportunista) - Parte 1

O aprisionamento do futebol argentino e a pobreza do debate ideológico (ou oportunista) - Parte 1

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Atualizado às 07:48

O direcionamento do debate a respeito do modelo de propriedade do futebol na Argentina é propositalmente tendencioso, e erraram até agora, voluntária ou involuntariamente, os agentes que tomaram partido sobre o tema. Pena que, mesmo enviesado, este debate tenha ressurgido no âmbito de campanhas tão polarizadas, à esquerda ou à direita.

Daí a ausência de vozes que colocassem luz sobre a premissa, ou melhor, sobre o equívoco da premissa com base em que, também de modo equivocado, foram construídas posições a respeito da suposta privatização dos clubes argentinos.

Pois também a suposta premissa, alardeada em títulos de matérias jornalísticas, além de falsa, contribuiu para formação de oposições ideologizadas e, não raro, irracionais.

Javier Milei, durante a campanha para presidência do país, afirmou, em debate público, que os clubes argentinos deveriam seguir modelos bem-sucedidos de outros países para solucionar suas profundas crises esportivas e financeiras.

Curioso: alguns dos países bem-sucedidos em suas políticas para o mercado do futebol são governados por partidos de esquerda (outros não, é verdade), que professam correntes abominadas pelo então candidato e, agora, presidente eleito. 

A partir de sua fala começou a circular na imprensa chamadas de alerta para (e contra) a tal proposta privatizante. Veja-se o título da matéria da CNN: Boca Juniors, River Plate e clubes argentinos se unem contra privatização1E da página 12: Privatización del fútbol: los clubes dejaron fuera de juego a Javier Milei - Amplio rechazo a la propuesta del libertario.2

Com efeito, em decorrência de movimento aparentemente orquestrado pelos próprios clubes, mais de uma vintena emitiu nota de repúdio, dentre eles Boca Juniors, River Plate, Racing e Independiente, que assim se posicionaram, respectivamente:

"Fiel a sus orígenes, respetuoso de los claros principios defendidos durante casi 120 años, Boca Juniors ratifica su carácter de Asociación Civil sin fines de lucro y la premisa de que nuestro club es de su gente, socios y socias que lo vuelven cada día más grande." (Boca)

"Siguiendo el espíritu de nuestros fundadores, rechazamos a las sociedades anónimas en el fútbol argentino, como ratificó nuestra Asamblea en 2016 al constituirse la Superliga. El Club Atlético River Plate es una Asociación Civil sin fines de lucro, y siempre será de sus socios y socias, que son el sustento de estos 122 años de Grandeza." (River)

"Nadie nos tiene que explicar qué significan las SAD en un club de fútbol. Nuestros socios, socias e hinchas, quienes recuperaron la democracia para Racing, lo saben bien. Por pasado, presente y futuro, Racing Club ratifica su condición de asociación civil sin fines de lucro. Tal como está expresado en su Estatuto Social. ¡El club es de los socios y las socias!" (Racing)

"La Comisión Directiva del Club Atlético Independiente está convencida de que nuestro Club tiene que seguir siendo una Asociación Civil Sin Fines de Lucro. Tal como indica nuestro estatuto, nunca resignaremos esta figura. El club es de los socios y las socias." (Independiente)

A uniformidade das reações tem origem em um de dois dos seguintes fatores: ou foi construída para inserir os times e os seus respectivos torcedores na campanha presidencial em favor do candidato derrotado, Sergio Massa - algo pouco provável -, ou ela decorreu da afirmação histórica do corporativismo cartolarial argentino, que, de modo oportunista e conflitado, pretendia (e sempre pretenderá) preservar o poder esportivo e político que emana da dominação de clubes de futebol, a qualquer custo e à conta de todos.

A concertação clubística, que poderia ser enquadrada eventualmente como uma espécie de cartel (sujeita, talvez, a procedimento investigatório de autoridades antitruste), aproveita-se do estado de terror provocado por ambos os candidatos, um em relação ao outro, para incutir no torcedor, já aterrorizado com a política, o terror também no plano do futebol.

Essa proposição se confirma pela falaciosa premissa privatizante, apresentada ao público em geral: ora, para que algo se torne privado, pressupõe-se que justamente não seja, antes, privado. Pois, se assim o for, não se terá como, jurídica ou economicamente, privatizar.

Colocando-se de outra maneira, os clubes de futebol não são autarquias ou empresas públicas, assim como não prestam serviços públicos que poderiam integrar um projeto governamental de desestatização. Eles já são, e isso os dirigentes que dominam o futebol sabem muito bem, entes privados. Mais (e pior): controlados (gerencialmente) por políticos clubistas que ostentam interesses extrafutebolísticos.   

Assim como ocorre no Brasil, lá, na Argentina, também se constituem, no plano do direito, sob a forma de pessoas jurídicas de direito privado, sem qualquer atributo público, portanto. Algo que foi, aliás, afirmado de modo expresso pelos clubes em suas manifestações.

Portanto, a (fantástica) união dos dirigentes argentinos, supostamente comprometidos com a defesa de um bem maior - a história e a tradição do futebol -, pretende, na verdade, dissimular, sem compactuar com a verossimilhança, a perpetuação de um projeto cartolarial erigido há décadas para dominação dos clubes (e, talvez, manipulação das massas), a exemplo do que se viu e ainda se vê em outros países sul-americanos.

A tal aversão à privatização, estimulada midiaticamente, não passa, pois, de, a um só tempo, inverídica (pois privados os clubes já são) e fantasiosa narrativa (que poderia integrar as obras dos grandes autores do realismo-fantástico), arquitetada para preservação de interesses e poderes.

_________

1 https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/boca-juniors-river-plate-e-clubes-argentinos-se-unem-contra-privatizacao/

https://www.pagina12.com.ar/615672-los-clubes-de-futbol-frenaron-la-pelota-y-dejaron-en-fuera-d