A caminho do Morumbi e do grito de campeão
quarta-feira, 27 de setembro de 2023
Atualizado às 07:38
Perseguia-me a pergunta de João, proferida quando tinha uns 7 anos de idade: papai, nosso time nunca será campeão? A resposta, carregada de desconforto, era inevitável: ao contrário, somos os únicos tricampeões brasileiros e o maior ganhador de títulos internacionais; único tricampeão do mundo, de origem brasileira.
Ele sabia. E não era sobre isso que perguntava. Queria saber quando gritaria "campeão".
Esse diálogo não saia da cabeça do pai quando, no último dia 24, descia as escadarias do metrô, ao lado de Olivia e João, rumo ao estádio do Morumbi, para o jogo decisivo contra o Flamengo.
Sim, o São Paulo já havia conquistado o paulista, mas o êxito se passara em período de isolamento social e, talvez por influência paterna, não era considerado, pelo filho, um título redentor. Sonhava com um evento substancial.
Pela primeira vez preteriram o táxi (em favor do metrô). E a escolha foi acertada: durante a viagem, a cada parada em uma estação, novo agrupamento se somava aos torcedores que lá estavam, em cânticos de apoio ao time do coração.
O clímax do trajeto se deu quando as portas se abriram na Estação São Paulo-Morumbi. Naquele momento, como se houvesse ensaiado, a horda, em uníssono, começou a entoar o hino, que ecoou pelos corredores da estação, encontrou a malta que seguia adiante e, além de preencher o espaço, invadiu a rua, onde, de lá, se repetia, também em uníssono, a mesma melodia.
Voltaram a ver a luz do dia por volta das 13h00. Dia sem nuvens, de temperatura desértica. Só faltavam camelos para fazer a ligação com o estádio. Na falta deles, camelôs vendiam de tudo, em especial produtos de origem duvidosa e comida, muita comida, cujos aromas se misturavam e produziam uma névoa agradável e afetiva - que remetia aos "comeu-morreu", servidos nos anos 1980, ali mesmo, ao redor do Morumbi.
A caminhada até o estádio tomou uns 30 minutos. Flamenguistas andavam ao lado de tricolores, em paz. Paz que fez emergir outro episódio, também marcante para o pai.
Quando Olivia tinha lá os seus 4 ou 5 anos, a programação futebolística considerava apenas João, 2 anos mais novo; quase um bebê, portanto. Naquela conduta se encontravam, involuntariamente, falta de sensibilidade e machismo, que não poderiam fertilizar. Aliás, a mãe avisou: não vá reclamar, depois, se ela passar a torcer para um rival. Pior, para o rival.
O equívoco fora imediatamente redimido (e a lição passou a nortear a revisão de outras condutas, passadas ou futuras). Muitos jogos depois, e com um retrospecto impressionante de vitórias, lá estava Olivia, rumando para sua primeira final.
Por volta de 14h, o trio estava sentado, no setor das cativas. O pai estranhou o silêncio da dupla, especialmente de João, menino falante e curioso. A resposta foi desconcertante: estou ansioso, preocupado e com medo.
É natural, o pai respondeu. E continuou: sempre terá que lidar com tais sentimentos. Não há problema algum. El Dios, Diego Lugano, também os sentia (como revelou em uma live com o próprio pai). Mas aprenda a lidar com eles. E os supere (preferencialmente). Hoje, em especial - completou - pois o São Paulo tomará o primeiro gol. Mas virará.
Minutos antes do apito inicial, João estava ajoelhado, no chão, em posição de reza. Um sinal da cruz, ao final do rito, confirmava a impressão. Uma prática pouco usual e, ao mesmo tempo, comovente. Olivia, ao lado, passou a exteriorizar empolgação. Talvez para encobrir semelhante apreensão.
Como também comoveu o choro de ambos após o gol de empate anotado por Rodrigo Nestor, jogador adorado pela família, apesar de criticado e, em certos episódios, massacrado pela tontice coletiva, que costuma se cegar para atletas que jogam para o time, e não para a torcida.
Naquele momento, ainda distante do final da partida, uma certeza (agora é fácil fazer tal afirmação) parecia unir o trio: nada ou ninguém tiraria a copa do São Paulo - e a alegria, ainda desconhecida, de ser campeão.
Mais, muito mais: a alegria, indescritível, de gritar "é campeão" ao chute insubordinado de Gabi Neves, recusando-se a entregar ao árbitro a bola que estava em seus pés; bola que - e tinha que ser mesmo um uruguaio para entender e sentir isto -, pertencia à torcida, a quem, simbolicamente, Gabi Neves enviou.
Campeão, campeão, campeão! Durante uns quarenta minutos essa foi a palavra que João e Olivia mais pronunciaram, como se o restante do vocabulário, ainda juvenil, lhes tivesse escapado.
E assim se mantiveram durante o trajeto de regresso, até a mesma estação que desembarcaram na ida: São Paulo-Morumbi. Ali sentiram, porém, a sensação invertida, da força que exalava lá de dentro, proveniente de dezenas de centenas de torcedores que se enlatavam nos corredores subterrâneos.
A cena não deixava de ser assustadora: não havia espaço para mais ninguém. Uma massa compacta se movia, lentamente, de modo inercial. Qualquer faísca, ou melhor, desentendimento, pequeno tumulto ou situação semelhante, ocasionaria uma tragédia. Não haveria para onde correr ou como se proteger (ou aos filhos, alguns muito menores do que Olivia e João).
Mas o risco não estava na pauta, ao menos aparentemente. Imperava a maior felicidade, pois era realmente muito lindo ver o São Paulo contagiar e sacudir a cidade.
Após meia-hora ou mais na sauna metropolitana, enfim a catraca se abriu e João e Olivia puderam, em segurança, seguir para plataforma de embarque. Enquanto aguardavam a composição, ao som da torcida, que insistia em lembrar que São Paulo era sentimento que jamais acabaria, João e Olivia se viraram para o pai e agradeceram.
Agradeceram por serem são-paulinos.
O pai, emocionado por dentro, sem saber o que fazer, lutando para conter as lágrimas, decretou: hoje é noite de festa, de hamburguer, batata-frita e o mais calórico dos milk-shakes. Bora!