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A caminho do estádio do Maracanã: uma saga catártica

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Atualizado às 07:52

Olivia e João foram acordados por volta de 03h30min. O encontro com a torcida, que seguiria no mesmo voo com destino ao Rio de Janeiro, fora fixado para 04h30min, em Cumbica. Antes de partirem, o pai sentiu falta da cédula de identidade da filha. Após alguma apreensão, ela se lembrou: estava com a mãe de uma amiga, com quem viajara dias antes. Era madrugada, ela estaria dormindo. O que fazer? O passaporte!

O avião decolou no horário marcado. Por volta de 07h30min, pousou na pista do Galeão. Do aeroporto, deslocaram-se para o restaurante Fogo de Chão, situado na antiga sede do Botafogo. Ali se reuniria parte das pessoas que planejava invadir o campo do adversário.

Serviu-se o café da manhã, às 10h: pão de queijo, polenta frita, coração de galinha, linguiça, cinco cortes de carne, outras frituras, farofa de ovo e uma respeitável mesa de salada que continha quase tudo, menos salada.

A comilança se estendeu até 12h45min, horário marcado para partida dos ônibus. João e Olivia entraram no primeiro, que abriria alas ao Maracanã. O pai, um pouco apreensivo, notou que a prometida escolta policial era apenas uma promessa.

Mas se ofereceu uma brilhante solução: o fechamento das cortinas, para que não se percebesse, de fora, que dentro reuniam-se torcedores provenientes da capital paulista, todos, sem exceção, vestidos discretamente com variações do uniforme tricolor.

Sim: entrariam em território desconhecido, em caravana, com cortinas fechadas para despistar a preferência clubística, apenas com a proteção de SP.

Poucos metros após a iniciação do trajeto, o motorista errou o caminho. Mas deu um jeitinho, com uma marcha à ré em via de difícil recuo, curva e em situação de pouca visibilidade. Todo mundo erra. Não havia, ainda, motivo para ilações. Vida, ou melhor, caminho que segue.

A aproximação do destino se revelava pela aglomeração de pessoas vestidas de rubro-negro, mais ou menos interessadas no esquisito comboio que se fechara às belezas naturais e arquitetônicas da cidade. Nas imediações do estádio, o disfarce caiu e a presença de invasores tornou-se motivo de atração.

O motorista, incumbido de despejar seus passageiros em determinado ponto protegido, ao lado do portão de acesso, empreendia caminho que, visualmente, exceto para ele, se distanciava do Maracanã. Pior: que seguia por vias cada vez mais estreitas e tomadas por flamenguistas.

Diante de uma rua mais larga (talvez uma avenida), de mão única, que, aparentemente, levaria para longe do estádio, o ônibus parou e, por ali, permaneceu inerte. Os representantes da empresa promotora da viagem - e o próprio motorista - não sabiam o que fazer.

A pior das ideias surgiu de alguma mente suicida: seguir, ou melhor, retornar a pé, entre os torcedores rivais. Afinal, as principais torcidas uniformizadas eram amigas e haviam anunciado, como se dispusessem de poder de polícia, que haveria paz. Sim: estava garantido o direito de ir e vir com camisa do time oponente no território do adversário, pelas leis das arquibancadas.

Sozinho, o pai não teria hesitado. Até teria apoiado, pois seria mais uma história para contar. Mas com Olivia e João? Pensava: seria motivo para divórcio? E sem compartilhamento de guarda?

Não havia alternativa. Marchariam, não como cidadãos franceses ao som da Marselhesa; mas como são-paulinos, pois ali estavam para apoiar, porque São Paulo é sentimento, que jamais acabará.

Eis que, assim como o Mar Vermelho se rendeu a Moisés, a torcida rubro-negra, milênios depois, também se abriu aos torcedores tricolores, que, em fila pouco organizada, caminharam entre linhas flamenguistas.

Os cariocas, uns maiores do que os outros, para estupefação geral, ofereciam as mãos para cumprimentos, faziam comentários respeitosos e posavam para fotos conjuntas. Naquele trajeto de aproximadamente 20 minutos, o pai se sentiu mais seguro do que em suas andanças pela Av. Faria Lima (não se trata de hipérbole pois, nesta via, sempre haverá alguém de olho no smartphone alheio).

Enfim, chegaram ao portão destacado à torcida visitante. Olivia percorreria pela primeira vez a sinuosa rampa de acesso; João, a segunda - meses antes, assistira o massacre do Fluminense sobre o ... Flamengo, por ocasião da final do campeonato carioca.

Dentro do estádio, uma experiência catártica se prenunciava. Três mil são-paulinos cantavam e vibraram, calando sessenta mil rivais (ao menos aos seus ouvidos), e não pararam até o final do jogo, momento em que, mantendo a vibrante cantoria, presenciaram o abandono coletivo da maior torcida do país. O pai não tinha palavras e jamais terá para verbalizar o sentimento que se revelava nos olhos de João e Olivia. 

Por volta das 19h, os são-paulinos foram autorizados a deixar o estádio e seguiram ao ponto de encontro, para encaminhamento ao ônibus. O local, uma espécie de entroncamento, talvez fosse o mais populoso das imediações. Uma beleza: pessoas iam para lá e outras voltavam para cá, correria, tensão no ar, cavalaria da polícia em movimento de dispersão e resquícios de gás pimenta, inalado pela primeira vez pela dupla juvenil.

Não muito distante dali, avistava-se o ônibus, com suas janelas obstruídas por cortinas desbotadas. Sim, o motorista encontrara o local que, pela tarde, parecia inalcançável.

De lá, partiu-se para o Galeão. Minutos depois, uma parada inesperada. Desta vez, o condutor não estava perdido. Apenas aguardava o deslocamento do ônibus do time do São Paulo, que também deixava o Maracanã e se dirigia ao aeroporto.

Por volta das 21h15min., Olivia e João contestaram a autoridade paterna e se postaram diante do McDonalds. Diziam que era noite de festa e era proibido proibir. Ganharam o debate. Aliás, conheceram, naquele lugar, talvez a única loja da rede que serve fast food em ritmo de slow food.

Naquele momento, tudo seria bom. E foi realmente muito bom comer e comemorar uma vitória histórica ao lado de outros queridos amigos, que participaram da saga.

Com quase uma hora de atraso, enfim, se iniciou o voo de regresso. Já passava das 2h00, e de banho tomado, quando João e Olivia fecharam os olhos e dormiram. Com o que terão sonhado? Possivelmente, com as tão desejadas glórias do futuro. Não, do presente.