O futebol, a CVM e o parecer de Orientação CVM n. 41: conteúdo - Parte 3
quarta-feira, 13 de setembro de 2023
Atualizado às 07:40
A importância prática e histórica da iniciativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais, consubstanciada na divulgação do Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023 ("Parecer 41"), foi apresentada nos dois textos anteriores desta série. Passa-se, agora, a abordar seu conteúdo.
Constituição e formação do capital social da SAF
A CVM reafirma no Parecer 41 a constatação feita nesta coluna desde o advento da Lei da SAF e igualmente formalizada no livro Futebol, Mercado e Estado - Projeto de Recuperação, Estabilização e Desenvolvimento do Futebol Brasileiro: Estrutura, Governo e Financiamento1, no sentido de que são previstas quatro vias constitutivas da SAF: três delas listadas no art. 2º (que trata justamente de constituição) e a quarta, esparsada, no art. 3º.
No primeiro bloco reúnem-se (i) a transformação de clube em SAF, (ii) a cisão de patrimônio relacionado à atividade futebolística de clube para destinação à formação do capital social de SAF e (iii) a constituição originária de SAF, promovida por qualquer pessoa ou fundo de investimento.
A quarta via envolve a utilização e transferência de elementos ativos (e eventualmente passivos) do clube para integralização de capital subscrito (ou seja, um aporte) em outra sociedade (uma SAF); ato que não implica redução patrimonial do próprio clube (apenas a mutação de contas contábeis, à medida em que o clube passa a titularizar, indiretamente, via SAF, patrimônio que, antes, detinha diretamente).
Aliás, os principais casos de SAF ocorridos até o momento, dentre os quais de Cruzeiro, Botafogo e Vasco, adotaram esse caminho, costumeiramente chamado de "drop down".
O Parecer 41 reforça, ademais, a necessidade de verificação da realidade patrimonial envolvida na versão ou transferência para SAF, mediante a obrigatoriedade de avaliação do patrimônio por três peritos ou empresa especializada, conforme regra geral prevista no art. 8º da li 6.404/76. Neste sentido, ademais, os assessores que participarem de projeto de constituição de SAF são orientados a observar as normas contábeis aplicáveis e a contratar auditores registrados na CVM, para avaliar o patrimônio integrado à operação.
Ações de emissão da SAF
De maneira bem simplista, uma companhia pode emitir ações ordinárias ou preferenciais, que se distinguem "conforme a natureza dos direitos ou vantagens que confiram a seus titulares".
A Lei 6.404/76 proíbe a emissão pela companhia aberta de mais de uma classe de ação ordinária. A proibição não atinge a companhia fechada.
Já a Lei da SAF admite, ou melhor, determina a emissão de ação ordinária A, para subscrição exclusiva pelo clube que a constituir, sem distinção entre a SAF aberta e a fechada. Caso a SAF emita ação ordinária para outro grupo de acionistas, deverá, necessariamente, criar uma classe distinta. Ou seja: cria-se uma estrutura especial para SAF.
Essas proposições não são antinômicas e a CVM reconhece a possibilidade de compatibilização, enquadrada como "exceção autorizativa à regra geral, de natureza proibitiva".
A autarquia estabelece, assim, e com razão, que a SAF que se registrar como companhia aberta (i) deverá (como já indicado acima) contar com uma classe específica de ação, denominada A, e (ii) poderá emitir outras classes de ação ordinária para subscrição por outros tipos de subscritores, com ou sem voto plural.
Ainda sobre as ações de emissão da SAF, o art. 2º da Lei da SAF estabelece direitos especiais aos titulares de ações classe A (que serão, necessariamente, os clubes, sendo vedada a negociação dessas ações com terceiros), as quais, "portanto, não estarão admitidas à negociação em bolsa ou mercado de balcão".
Com isso, o clube poderá vetar, a depender do tamanho de sua participação no capital social da SAF, dentre outras matérias, (i) a alteração de denominação, (ii) a modificação de signos distintivos do time e (iii) a mudança de sede.
A Lei da SAF também autoriza a inclusão, no estatuto da SAF, de outros direitos, não previstos no texto normativo, inclusive de veto sobre situação não disposta na própria Lei. O Parecer 41 reafirma essa possibilidade (e não poderia ser diferente, pois inexiste ilegalidade), mas alerta: a CVM poderá, previamente à concessão de registro de emissor ou à oferta pública de valores mobiliários, analisar o conteúdo e, caso se verifique a violação de lei ou de normas regulatórias, exigir a reforma estatutária.
Por último, mas não menos importante, o Parecer 41 também é inequívoco no sentido de que não há restrição à emissão pela SAF de uma ou mais classes de ações preferenciais e à titularização pelo clube, ao mesmo tempo, de ação ordinária classe A e de qualquer outra classe "comum" de ação ordinária.
Controle e governança
A SAF se sujeita à Lei da SAF e, em tudo o que não for expressamente tratado naquela lei ou não for incompatível com o seu conteúdo, à Lei 6.404/76. Assim, o legislador, no âmbito dessa composição, seguiu o caminho da segurança jurídica: ao invés de criar um novo tipo societário autônomo, preferiu aproveitar a matriz bem estruturada e testada (doutrinária e jurisprudencialmente) das sociedades por ações e, a ela, incorporar os conceitos e normas aplicáveis exclusivamente à SAF, conferindo-lhe, portanto, a categoria de subtipo.
Parte da aplicação exclusiva envolve a proibição (i) do acionista controlador de SAF de participar do capital de outra SAF ou (ii) de acionista não controlador de SAF, que detiver 10% ou mais do capital votante ou total de uma SAF, de se manifestar com voz ou voto em assembleia de outra SAF.
Em tal sentido, a CVM orienta a SAF cujos valores mobiliários sejam admitidos à negociação em mercado a instituir mecanismos que contribuam para verificação do cumprimento de tais normas, como a implantação de sistema interno de acompanhamento e o envio periódico de declaração de conformidade pelos acionistas da SAF.
Ainda no tocante à governança, o Parecer 41 reforça que, mesmo não se fazendo menção expressa na Lei da SAF, certas normas, contidas na lei 6.404/76, devem ser observadas (em decorrência, como visto acima, da estrutura legislativa), tais como: (i) vedação à acumulação de cargos de presidente do conselho de administração e diretor-presidente, observada a exceção às companhias de menor porte; (ii) participação necessária de membro independente no conselho de administração; (iii) envio regular de formulário de referência; e (iv) elaboração de comunicados ao mercado ou fatos relevantes, na forma da própria lei 6.404/74 e da resolução CVM n. 44, de 23 de agosto de 2021.
Os demais temas tratados no Parecer 41 serão abordados na quarta e última parte desta série de artigos.
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1 Castro, Rodrigo R. Monteiro de; Manssur, José Francisco C. - São Paulo: Quartier Latin, 2016.