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A caminho do estádio do Morumbi

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Atualizado às 08:14

Não era um dia comum. Era dia de Majestoso, no Morumbi. Um enfrentamento que transcende a razão. Uma espécie de juízo final, que opõe o bem ao mal. Harry Potter a Voldemort (a referência se deve ao apreço que os personagens mirins que serão apresentados abaixo nutrem por aquela história). E não era um Majestoso ordinário: semifinal de Copa do Brasil; o jogo de volta, que se iniciaria com placar desfavorável ao São Paulo. 

Expectativa e ansiedade dominavam a casa. Logo cedo, antes de partirem para escola, Olivia e João certificaram-se com o pai de que a logística estava organizada para o confronto da noite. Uma jornada cotidiana de estudos os separava, portanto, de evento tão extraordinário.

Por volta do horário marcado, ambos chegaram ao escritório do pai, na Av. Faria Lima. Ponteiros indicavam 17h15min. Cedo, mas nem tanto: a bola começaria a rolar às 19h30min.

Nos grupos de mídia social circulavam notícias de trânsito e paralisia nas principais vias de acesso, obras em corredores de via rápida e certa apreensão com o tumulto ao redor do estádio. Havia folga, porém, para vencer o percurso.

Partiram. No ponto de táxi, não havia carro disponível. Os aplicativos não ajudavam: giravam, giravam e não localizam disponibilidade. Uma unidade, em trânsito, parou diante do farol vermelho. João a abordou e, para alívio do trio, aceitou a corrida.

Morumbi, anunciou o pai. Pelo corredor da Francisco Morato, ele complementou. O motorista discordou e informou que obras obstaculizavam o trânsito. Com a autoridade de quem rodava há três décadas na praça, pediu confiança e afirmou que faria caminho mais célere. Não era um bom sinal.

Poucas quadras adiante da partida, na própria Av. Faria Lima, diante do Clube Pinheiros, o carro quebrou. Pai, filho e filha desceram com a esperança de localizar novo veículo. Mas não havia, por ali, ponto à vista. Pior: centenas de carros se acumulavam, praticamente imobilizados, em ambos os sentidos. Renovou-se, então, a esperança no aplicativo, que insistia em rodar sua inteligência artificial, sem encontrar a solução.

Eram 17h45min. Ainda havia tempo. Um táxi livre surgiu, quase como miragem no oásis. Ou não. O motorista informou que buscaria um cliente nas cercanias do Parque Alfredo Volpi, localizado na primeira terça parte do destino. Já era alguma coisa. Alguns quilômetros seriam vencidos. Todos entraram, com falso alívio.

Faltavam 5 minutos para 18h e o avanço não passava de 50 metros. Olivia propôs que trocassem os pneus pelas pernas. O pai hesitou. Para subir uma montanha ou fazer uma trilha, seria o primeiro a apoiar; mas, ali, na cidade, após um dia de trabalho e com vestimentas inapropriadas, não. João ecoou a proposta. O pai cedeu.

A caminhada se iniciou com algum entusiasmo: torcedores que seguiam o mesmo destino, pela Av. Cidade Jardim, buzinavam ou gritavam "tricolor" para a família, em especial à filha e ao filho, vestidos com a camisa do Tricolor. Bem que poderiam oferecer uma carona, dizia o pai.

Eis que um obstáculo inesperado se apresentou: a travessia do Rio Pinheiros. De carro, como sempre se fazia, era moleza. A pé, um desafio desumano - e que não se supunha. A vida parecia integrar um jogo eletrônico, que poderia ser dizimada por movimentos frenéticos de veículos, em distintas velocidades, insensíveis aos pedidos de compreensão de 3 invisíveis pedestres que pretendiam, apenas, passar de uma calçada esburacada a outra, em dois pontos separados pelo rio.

Por volta de 18h20min, enfim, chegaram à margem oposta, após uma brevíssima pausa no meio da ponte Cidade Jardim, para apreciação da nervosa imagem que se projetava pela Marginal, que começava a se iluminar com estáticos focos vermelhos em toda sua extensão.

Retomou-se a caminhada rumo ao Templo Sagrado do futebol pela Av. dos Tajurás. Algumas centenas de metros adiante, Olivia e João acusaram vontade de ir ao banheiro. Por sorte, estavam diante de uma farmácia. E de um ponto de ônibus. Ali estava a solução!

Após o aliviamento das necessidades, subiriam todos num coletivo. O primeiro a passar dirigia-se ao Palácio do Governo. Perfeito. Mas os dois continuavam no interior da loja. O segundo, para Av. Giovanni Gronchi. Melhor ainda. Mas o pai ainda restava solitário. Quando o terceiro se apresentou, o destino era o Butantã. Entraram, os três, mesmo assim. O ônibus partiu.

Um breve diálogo com o motorista revelou que a decisão fora equivocada. O pai pediu para saltar no ponto seguinte, quase na trifurcação de Rua Eng. Oscar Americano, Av. São Valério e Av. Lineu de Paula Machado. Sensibilizado com a apreensão familiar, o motorista autorizou a descida, pela porta da frente.

Renovavam-se, ali, as alternativas: aguardar outro ônibus ou continuar a pé (o que implicaria a superação de subidas e descidas íngremes, realmente íngremes, até o destino final - e com menos tempo pela frente).

O pai foi vencido, mais uma vez: retomariam a marcha. Mas, antes, pediu para aguardarem alguns minutos, esperançoso de que outro ônibus os carregasse. Uma moça, plantada no ponto, ouviu o diálogo e, de modo cordial, avisou que as linhas que paravam por ali não subiam ao estádio. Teriam duas opções: retroceder ao ponto de origem ou prosseguir e aguardar no ponto seguinte, ao pé da ladeira.

Voltariam a andar, como se fossem pagadores de promessa, que se deslocam de São Paulo a Aparecida; ou melhor, no caso, ao Morumbi, para, também no caso, provar a convicção tricolor. O relógio não colaborava: já eram 18h40min.

Foi quando um veículo de passeio de grande porte estacionou ao lado do ponto. A janela do passageiro se abriu e um homem, vestido com a camisa do São Paulo e com sotaque carregado, ofereceu carona.

Entre as lembranças de recomendações recebidas na infância de jamais aceitar ofertas semelhantes de estranhos - repetidas aos seus próprios filhos - e a perspectiva da caminhada (além da intuição paternal), os três se acomodaram, com conforto, no banco traseiro.

Após curto diálogo de agradecimento e apresentação, notaram que os ocupantes dos bancos dianteiros eram estrangeiros. Libaneses, envolvidos em negócios com o Brasil há décadas. A narrativa poderia seguir direção cinematográfica, com ilações sobre a licitude (ou não) das atividades que empreendiam, a real intenção da suposta gentileza ou coisas parecidas.

Mas, não. Os 20 minutos que se seguiram foram marcados por lições sobre gastronomia e culinária do Libano, eventos históricos do país, a origem da decadência econômica, os fardos do colonialismo norte-americano e a relação com o SPFC, time dos corações (que justificava, em certas ocasiões, até mesmo viagens internacionais).

Enfim, sem muita dificuldade, estacionaram nos arredores do Morumbi (o motorista conhecia uma espécie de esconderijo para alojar seu carro). Após a despedida, o pai, um pouco constrangido, renovou a lição aos filhos, minutos atrás inobservada: nunca, nunca façam o que acabei de fazer - disse. Piedosos, João e Olivia externaram em suas faces, sem verbalizar nada, a inevitável pergunta: então, por que acabou de fazer?

19h10min: os três chegaram ao portão de acesso às cadeiras cativas, diante do qual se projetava uma fila jamais (ou poucas vezes) vista naquele setor, que deveria ser motivo de impropérios. Mas não havia como maldizer, naquele momento, a espera para, sem bater, adentrar a porta do céu.