O futuro do futebol brasileiro e o Estado de Minas Gerais: conceito e extensão de solidariedade - Parte 3
quarta-feira, 26 de abril de 2023
Atualizado às 07:30
Já expus nos dois textos anteriores desta minissérie a opinião de que o futuro do futebol brasileiro será decidido, aparentemente, nos Tribunais do Estado de Minas Gerais.
Mas o objeto das disputas não envolverá o jogo de bola ou normas esportivas que regulam as relações entre clubes, jogadores e demais agentes que integram o ambiente futebolístico.
A tensão tem a ver com a possibilidade de afirmação de um sistema alternativo ao secular (e anacrônico) sistema associativo, que resiste, de modo predominante, apenas nos países periféricos, e se apresenta como uma oportunidade histórica e emergencial.
Histórica porque, após mais de um século de apropriação do futebol pelas associações sem fins lucrativos, surgiu, em 2021, uma opção (salvadora) para clubes, torcedores e para o próprio país.
E emergencial porque, após anos ou, conforme determinados casos, décadas de irresponsabilidade e malversação das coisas clubísticas, que geraram um endividamento consolidado superior a R$ 10 bilhões, a mencionada opção, consubstanciada na Lei da SAF, de autoria do Senador mineiro Rodrigo Pacheco (Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional), passa, como já se esperava, pelo sofrimento de ataques de forças reacionárias que pretendem manter tudo como estava antes do advento daquela Lei.
A principal tese se evidencia e se coloca na Justiça do Trabalho. E o cerne dela envolve uma suposta obrigação solidária da SAF pelos passivos do clube que a constitui.
Reconhecendo-se a solidariedade, o credor do clube poderá exigir a satisfação integral de qualquer dos devedores solidários (portanto, da SAF). Essa construção deriva do art. 264 do Código Civil, segundo o qual: "há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda".
Aliás, o conceito de solidariedade, constante do Direito Civil, também se replica em outros ramos do direito, os quais, apesar de dotados de princípios e procedimentos próprios, devem estar restritos ao mesmo conteúdo.
Neste sentido, a solidariedade, de acordo com o art. 265 do citado Código, não se presume. Ela decorre da lei ou da vontade das partes. Não se pode, assim, ampliar a sua extensão. Trata-se de pressuposto de segurança jurídica e de paz social.
Em outras palavras: pessoas, físicas ou jurídicas, que não contribuíram diretamente para a constituição da obrigação não podem responder solidariamente por ela, exceto se por força expressa de lei ou de contrato. Isto é um pressuposto necessário para preservação da estabilidade das relações.
No plano laboral, a temática é tratada no art. 2º da CLT. O §2o estabelece que "sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego".
Não se propõe, aí - e nem poderia - um alargamento do conceito de solidariedade. Procura-se, porém, estabelecer seu enquadramento, para efeitos de responsabilidade derivada de obrigações trabalhistas. E assim se prevê uma espécie de "chave", necessária para abertura da porta da responsabilização: a existência de grupo econômico.
Os excessos históricos na identificação da relação grupal resultaram na introdução do §3o ao mencionado art. 2º, que estabelece o seguinte: "não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes".
Ou seja, se não houver demonstração de interesse integrado, não se configurará solidariedade. Mesmo que os sócios, por exemplo, sejam os mesmos. E mais ainda se não forem os mesmos.
Isso não significa que, numa determinada situação, sócios e administradores não pratiquem atos fraudulentos, passíveis de solucionamento por vias pertinentes - que levarão, inevitavelmente, a alguma forma de responsabilização. Mas se tratará de patologia corrigível, como já se indicou, por outros meios.
Trazendo isso ao plano da Lei da SAF, que não prevê, nem na mais forçada e interessada das interpretações, hipótese legal de solidariedade entre o clube e a SAF, esta situação somente se operaria se, e apenas se, (i) decorresse da vontade das partes envolvidas, manifestada, de modo geral, em contrato, ou (ii) houvesse a configuração de grupo econômico - algo para que, como a própria CLT estabelece, a mera de identidade de sócios não seria - e não é - condição suficiente.
E como reconhecer o grupamento em situações que vêm sendo praticadas para salvamento de times brasileiros, tais como Botafogo, Vasco e Cruzeiro, em que sequer inexiste a identidade de sócios?
Sim, pois os associados dos clubes não se confundem com os sócios da SAF, que costuma ter, na composição de seu capital, além do próprio clube constituinte com participação minoritária, investidores estranhos aos quadros associativos originários dos clubes.
E não apenas isso.
Também não costuma existir qualquer relação de ingerência, de participação em atos internos (exceto em deliberações colegiadas de conselheiros nomeados pelo clube na SAF) ou de interesse integrado entre o clube e a SAF, e vice-versa, a caracterizar um grupo econômico.
Daí a importância que os Tribunais mineiros terão na solução de demandas em curso, algumas com decisões de primeiro grau já proferidas, que se afastam das hipóteses descritas na norma para, aparentemente, afirmar uma ideologia que, na prática, vai contra os ideais pretendidos.
É o caso da Ação Trabalhista 0010098-37.2020.5.03.0001, promovida pelo ex-jogador Frederico Chaves Guedes (Fred) contra o Cruzeiro Esporte Clube, em que se praticam tremendos esforços interpretativos, com a evocação de artigos estranhos ao tema da solidariedade, para, ao final, alcançar a SAF, com base nos seguintes argumentos:
"Posto que tenha havido a sucessão parcial do empreendimento, nos ditames da lei 14.193/21, permanece a garantia de que qualquer mudança empresarial não poderá afetar os contratos de trabalho (arts. 10 e 448, da CLT), de forma que se impõe a responsabilidade solidária in casu por expressa disposição celetista. Dessarte, a sociedade empresária Cruzeiro Esporte Clube - Sociedade Anônima do Futebol deve ser responsabilizada solidariamente pelo débito exequendo, nos termos do artigo 2º, § 2º, da CLT, pelo que determino a sua inclusão no polo passivo da demanda".
Não se nega que a CLT declara a existência de solidariedade quando se demonstrar a existência de grupo econômico; mas a demonstração deverá ser feita casuisticamente, com base em elementos inequívocos do próprio caso, e jamais de modo presumido - sobretudo para se promover uma suposta justiça social (que, sem suporte legal, não deixa de ser uma forma de justiçamento).
Enfim, Justiça se fará se, após o aprisionamento histórico do futebol, ele for, pelas forças do Estado (legislativas e judiciárias, em especial), libertado para constituir-se em atividade que contribua, em prol da coletividade, para o desenvolvimento econômico, social, educacional e, claro, esportivo da Nação.