Viola Davis, o futebol, a SAF e a Liga de times
quarta-feira, 29 de março de 2023
Atualizado às 07:30
Em bela produção disponível na plataforma Netflix, Viola Davis, que ainda será reconhecida como uma das maiores atrizes da história, vencedora de prêmios como Oscar, Emmy, Grammy, Sindicato dos Atores, Tony e Globo de Ouro, concede entrevista a Oprah Winfrey, que formula, durante pouco menos de 50 minutos, uma série de perguntas sobre o livro biográfico, intitulado "Finding me", que a entrevistada escreveu.
Lá pelo meio da comovente e, ao mesmo tempo, agradável conversa - resultado nada óbvio por conta da complexidade e dureza dos assuntos abordados - Oprah invoca certa afirmação contida no livro: "os sonhos da menina Viola", que cresceu em situação de miséria extrema, "eram maiores do que os seus medos". Medo, por exemplo, das ratazanas que saltavam do telhado do cubículo em que morava, para devorar as poucas bonecas que seus pais podiam dar-lhe.
Viola então afirma que sim, que precisava de um sonho, da mesma forma que precisava de água e comida. E vai além: o sonho era mais do que um objetivo, era sua saída, sua salvação.
A atriz encontrou seu caminho, não apenas pelo talento e pela perseverança, mas porque teve sorte; sorte de não ter sido massacrada pelo sistema construído para excluir e explorar pessoas como ela: mulher, negra, pobre e sem conexões sociais.
Sim: quantas pessoas talentosas, mais ou menos do que ela, não se perderam em suas caminhadas - se é que tiveram forma ou possibilidade de iniciá-las? E quantas pessoas sem talento artístico, científico ou esportivo - o que não revela qualquer demérito - que nutriam o simples sonho da dignidade, viveram à margem da sociedade dos favorecidos?
Feita essa breve exposição, repito a frase tantas outras vezes formuladas nesta coluna: e o que o futebol tem a ver com isso? Tudo.
Num país marcado pela desigualdade como o Brasil, em que (i) a perspectiva da educação como via de ascensão ou afirmação social e econômica vale, grosso modo, apenas aos filhos das classes favorecidas, (ii) os filhos das gentes desfavorecidas sonham em jogar futebol ou cantar funk para, além da fama, inserirem-se e oferecerem melhores condições aos familiares, e (iii) o futebol se tornou não apenas um passatempo ou atividade lúdica, mas uma manifestação de cultura e um softpower, o tema do futebol não poderia ser ignorado pelo Estado e pelos Governantes, como sempre foi.
Da miopia, colhe-se o resultado: a exacerbação do individualismo e do patrimonialismo, estimulados pelo próprio Estado, que financia, à conta do erário (e do labor do homem e da mulher comuns, pagadores de tributos), a farra da vaidade e da irresponsabilidade - para ficar por aí.
Ao invés de contribuir para o desenvolvimento da Nação e do seu povo, o esporte vem se transformando, assim, em contingência e, pior, em palco de tensões e desentendimentos provocados por interesses, como sempre, egoísticos.
A Lei da SAF, que desde sua origem oferece possibilidades de libertação do sistema associativo e do cartolismo, não surgiu de um programa de Estado ou de Governo.
E agora que a SAF começa a abrir perspectivas a torcedores de Cruzeiro, Vasco, Botafogo, Bahia, dentre outros, e que, ao que tudo indica, trará novas e alvissareiras novidades a torcedores de Galo, Athletico Paranaense, Coritiba, América Mineiro, e alguns mais - e assim contribuir para que cumpram, de modo efetivo, suas funções sociais e econômicas, além de esportivas -, o Estado continua alheio aos seus desdobramentos.
Já se afirmou nesta coluna, mais de uma dezena de vezes, que não cumpre ao Estado intervir no futebol. Seu papel, em relação a esta atividade, consiste na regulação, isto é, no provimento de arcabouço jurídico necessário para que agentes possam modelar negócios com segurança e previsibilidade.
Não bastasse Governos não estarem nem aí para os desdobramentos do mercado do futebol, pois sempre se aponta que há algo mais relevante a fazer - e assim se entrega, por nada, uma das maiores riquezas da Nação, que responde por 11% de todas as negociações planetárias, e cujos lucros se dividem entre intermediários e importadores -, também desprezam (e, portanto, não estão novamente nem aí) a magnitude que uma liga de times teria para o país.
Tal movimento não envolve apenas o deslocamento da competência organizacional - de uma confederação para uma liga - ou a reformulação de calendário anual. Se bem que esse binômio, em si, já valeria o esforço.
Envolve muito, muito mais: investimentos, empregos, novos negócios, visibilidade, exportação, tributos, redistribuição, educação, inserção, orgulho, softpower, afirmação ...
Mas será que haverá um homem ou mulher que se disponha a abrir os olhos para a oportunidade e liderar, com ou sem medos, a transformação de um sonho em algo material e realmente grandioso? Grandioso para todos, e não apenas para algumas dúzias de cartolas e de intermediários - ou para três ou quatro clubes?