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Reaberto para o futebol (mas não totalmente): o dilúvio do litoral paulista e a liga de times

quarta-feira, 8 de março de 2023

Atualizado às 07:27

Quase vinte dias se passaram desde a tragédia que abalou o litoral norte paulista, e a comoção, como se imaginava, já está em processo de dissipação. Logo mais, nada ou pouco se falará, em rodas de amigos ou nos meios de comunicação, com exceção de uma ou outra nota, publicada aqui ou ali, sobre os andamentos de projetos circunstanciais - e, a se levar em conta o histórico nacional de outras tragédias, sobre o esquecimento das populações afetadas, sobre promessas não cumpridas, sobre a entrega de moradias em que os próprios entregadores não morariam, (eventuais) casos de desvios e outras coisas mais que fazem parte de crônicas assemelhadas.

Isso mesmo: colunistas já quase não tratam do tema, enquanto sobram poucas matérias, menos adjetivadas ou comoventes, que relatam as ações pós-diluvianas. A edição de 4 de março do caderno Cotidiano, da Folha, anuncia - parece-me que sem intenção - o que está por vir.

São três textos, distribuídos em uma página inteira. O principal deles, intitulado "Governo quer casas pré-moldadas para vítimas das chuvas no litoral paulista", parece indicar que, como se diz por aí, não se fará do limão uma limonada: ou seja, ao invés de se partir para uma via estrutural - em que seriam arquitetadas soluções que não se resumiriam a tetos enfileirados para agrupamento populacional -, preferiu-se seguir por caminhos paliativos ou insuficientes. Afinal, pensar e implementar uma intervenção que envolva estrutura, saneamento, arquitetura, emprego, educação, cultura, acesso, locomoção, produção, alimentação, esporte, lazer e tecnologia dará muito trabalho e, no final das contas, as gentes esquecidas do país só merecem atenção quando passam por catástrofe.

O segundo texto é reflexo daquela proposição: "Prefeitura e estado vão recorrer à PM e ao uso de imagens para evitar reocupação de morros". A grosseria não tem mesmo limite. População carente sobe morro, para construir ilegalmente em área de risco, poque não tem opção. Outras áreas desocupadas ou são inabitáveis ou pertencem a terceiros. E, agora, para assentar pessoas que se tornaram, a um só tempo, problema e trunfo, perdas e ganhos (públicos e privados), encontrar-se-ão "soluções" que, ao que tudo indica, não deixarão um legado - e não servirão como referência para formulação de políticas públicas corretas. Ao contrário: poderá ser a origem de um problema maior, inclusive de rejeição imediata ou mediata, pela coisificação e midiatização das necessidades humanas.    

O terceiro e menor de todos os textos, encostado ao canto da página, relaciona-se com a proposição anterior, e é apresentado com o seguinte título: "Desabrigados irão ocupar 300 imóveis prontos em Bertioga". A notícia que poderia parecer um alento - em especial para quem, desde o sábado de carnaval, está sem teto - sintetiza, na verdade, a necessidade de resposta política a uma comoção pública e a um drama humanitário; pois, além de afetar o destino de pessoas que morariam em tais localidades - e serão preteridas em suas necessidades e sonhos -, também abala as vidas daquelas pessoas que trabalhavam e estudavam nas regiões afetadas e serão deslocadas, para outro munícipio, de modo involuntário.

E não se diga que aí já é querer demais, pois, além de teto, vão exigir localização. Não; definitivamente, não! Além de dignidade, Governos e a sociedade devem oferecer, também, respeito e perspectiva.

E o que isso tudo tem a ver com o futebol? Muita coisa.

Lembre-se, inicialmente, que, há mais de 120 anos, o Estado subsidia o futebol, com imunidades e renúncias fiscais, programas de financiamento e parcelamento de tributos em atraso (decorrentes, muitas vezes, do não recolhimento de retenções realizadas), loterias, programas de incentivo, patrocínios diretos ou indiretos, dentre outras modalidades.

Apesar disso, a maioria dos clubes pouco ou nada retorna à sociedade, além de um passivo multibilionário e a incapacidade de autogestão (mesmo quando presididos por associados qualificados ou bem-intencionados, que esbarram em anacrônicas estruturas internas de administração).

Todo mundo vê a mesma a coisa e ninguém faz nada, tanto governantes como governados - em especial torcedores. E assim se constrói, com discursos falaciosos, uma narrativa que atenta contra o patrimônio nacional - e contra a nação.

Uma parte do problema poderá ser solucionada com o advento da Lei da SAF. Ela oferece instrumentos para implementação de soluções sistêmicas, que poderão liberar times do associativismo retrógrado do século retrasado, e, assim, viabilizar a reorganização patrimonial, o acesso a financiamentos e a sustentabilidade.

A outra parte do solucionamento adviria da formação de uma liga de sociedades anônimas do futebol (e de clubes que mantiverem o modelo associativo, eventualmente), que gerisse os interesses de modo coletivo - respeitadas certas características de seus integrantes - e distribuísse receitas de modo mais igualitário. Portanto, que se fundasse em princípios (i) menos individualistas - que norteiam muitos dos maiores clubes - e (ii) mais inclusivos e democráticos.

Antes que se diga tratar-se de um encaminhamento socializante, tal caminho, ao contrário, foi projetado e implementado pioneiramente no berço do liberalismo, onde ainda impera o laissez-faire, inclusive no âmbito do futebol: a Inglaterra, exportadora do mais bem sucedido produto de entretenimento do planeta, a premier league.

Pois bem, se os clubes não são capazes de, por conta própria, se organizarem e se acertarem, e se esses mesmos clubes, em sua maioria, são responsáveis por passivos sociais e econômicos (que se imputam direta ou indiretamente ao Estado e ao contribuinte), e se o Estado tem interesse (ou deveria ter) em que os times criem uma estrutura própria e privada que gerará formação, educação, distribuição, riquezas, exportação, soft power etc., já passou a hora de o Estado chamar os clubes a indicarem o que precisam para, de uma vez por todas, cumprirem suas funções sociais e econômicas, de modo organizado e coletivo, e passarem a ser fonte de riqueza, e não de contingência.

Ou, em sentido contrário, acenar com o fim das benesses que nenhum outro tipo de empresa recebe, por mais produtiva que seja, e que, mesmo assim, não foram, nem são, suficientes para fazer com que as empresas do futebol sejam sustentáveis, neste modelo secular associativo e apoiado no subsídio estatal.

No atual momento da história desta república, em que, desde a proclamação, já se passou por tudo (de democracias a ditaduras), não deveria mais haver espaço para respostas paliativas (ou a omissões) em relação a problemas estruturais, como os do Sahy e do futebol.