Sobre Rogério Ceni
quarta-feira, 29 de junho de 2022
Atualizado às 07:40
Este texto não irá passear pela espetacular carreira profissional de um dos melhores goleiros que o país produziu, que também foi o maior goleiro-artilheiro da história do futebol mundial, o maior goleiro da história do São Paulo e um dos dois mais importantes jogadores da história do clube - atrás apenas de Raí.
Além de o propósito ser outro, reconheço minha incapacidade de transformar em palavras as magias que Rogério operou em campos brasileiros, sul-americanos ou mundiais, assombrando companheiros, adversários, espectadores e jornalistas. Eu haveria de ser possuído por Borges ou Neruda para sintetizar (ou poetizar) o que ocorreu em jogos disputados, exemplificando, contra o Rosario Central (Morumbi, 2005), o River Plate (Buenos Aires, 2005), o Athletico Paranaense (Morumbi, 2005), Cruzeiro (Mineirão, 2006) e a Universidad Católica (Chile, 2013).
Sem falar, é claro, da atuação odisseica que garantiu o tri-mundial, contra o poderoso Liverpool, confronto em que se assistiu a uma das duas defesas mais inexplicáveis da história - a outra, ocorrida em 1970, em que o goleiro inglês Gordon Banks parou Pelé.
Esse texto também não pretende analisar a ainda curta carreira de treinador, iniciada, talvez, com certo açodamento, ao assumir o time do qual fora - e ainda é - ídolo inconteste, em momento delicado, política e esportivamente. A pressa para se afirmar na nova profissão contribuiu, na visão deste espectador externo, para que as bases da contratação e a ruptura se passassem de modo insatisfatório, com sequelas para todos os envolvidos.
Mas foi essa pressa que o levou a outro tricolor, o Fortaleza, onde, em combinação com uma estrutura administrativa aparentemente conectada com as necessidades de seu tempo, Rogerio pôde iniciar uma bonita escritura, que lhe rendeu títulos e respeito.
O sucesso cearense não aplacou a pressa, que o fez se desdizer e voar para o Rio de Janeiro, para assumir uma missão quase impossível - o esquecimento do treinador português Jorge Jesus, que voltara para seu país após conquistas nacionais e internacionais históricas.
Lá sofreu, apesar do título do campeonato brasileiro, um tombo que, no final das contas, fez-lhe maior.
Tombar, aliás, não deve trazer vergonha a ninguém; faz parte do processo evolutivo, como se extrai de narrativa que apresenta lição que teria sido proferida a Zumbi dos Palmares: "sem a mandinga, menino, a capoeira é só ginga e pernada. Se você não for malandro, não consegue levantar quando cair no chão... E pode ter certeza, um dia vai ter que levantar, porque todo capoeirista de verdade já caiu um dia"1.
Todos realmente caem um dia. Até Pelé caiu. Importam o aprendizado e a superação.
A oportunidade de soerguimento surgiu justamente no clube em que experimentara o primeiro tombo e que, paradoxalmente, viabilizara a transformação de um menino determinado em um mito2: o jogador Rogério Ceni.
É sobre a sua missão, a partir do reencontro com o São Paulo, de que trata este texto.
Rogério, feliz ou infelizmente, não deve ser visto, neste momento, apenas como o (excelente) treinador que é. Trata-se do muro que separa o São Paulo de se transformar em clube-zumbi.
Não me refiro, aqui, é óbvio, ao herói popular. A referência, em realidade pejorativa, extraída da série "The Walking Dead", reflete a dramática (e revoltante) realidade clubístico-administrativa do São Paulo (a propósito, ver os artigos publicados neste mesmo espaço, nos dias 83 e 154 de junho).
Nesse sentido, ninguém, além de Rogério, neste momento, seria capaz de revelar as mazelas, inclusive estruturais, que afetam um clube que, há alguns anos, conquistou a América e o planeta - e vem se tornando, a um só tempo, motivo de chacota e saco de pancada.
Ninguém, além de Rogério, teria - após, lembre-se, a passagem de mais de 20 técnicos desde 2010 -, a força para declarar publicamente que, se mudanças não fossem feitas, partiria para novo projeto e, mesmo assim, fazer a diretoria curvar-se.
Ninguém, além de Rogério, poderia enfrenar uma (in)explicável bipolaridade que, também há anos, parece acometer os jogadores são-paulinos, protagonistas, em curtos espaços de tempo, de partidas irritantemente passivas ou extremas do ponto de vista de entrega.
Ninguém, além de Rogério, teria coragem para, após uma vitória sobre o Palmeiras, afirmar - com palavras cuidadosas, é verdade - que o São Paulo, sem os diversos jogadores entregues ao departamento médico, não tem time para ser o São Paulo que o foi no seu tempo e disputar, com chances de vitória, as competições de que participa. Ou seja: para reconhecer que o São Paulo se tornou um time de "meio de tabela" - a caminho de algo pior.
Ninguém, além de Rogério, tem autoridade para, em suas incontáveis entrevistas quase melancólicas, revelar que o ilusório e maravilhoso mundo tricolor apresentado nas mídias sociais é mais fantasioso que o sonho de Alice.
E ninguém, mais do que Rogério, sabe que, em breve, o clube deverá enfrentar uma nova batalha política, liderada por uma oposição mais retrógrada do que a situação - que, se, vitoriosa, sedimentará, talvez de modo irreversível, a filosofia do atraso.
Não deve ser fácil para Rogério Ceni, neste momento, ser treinador do São Paulo. As toneladas de concreto do Morumbi pesam sobre os seus ombros.
Justamente sobre ele que, olhando-se de fora, parece sofrer, cotidianamente, pela sua intransigência com a falta de comprometimento - e com o erro.
Rogério trava, portanto, acho que com consciência, uma batalha muito maior do que a manutenção do time em nível aceitável; a sua missão envolve dignificar, novamente, o São Paulo (e para isso enfrenta os interesses da estrutura cartolarial) e permitir a abertura para um projeto viabilizador do acesso a financiadores - e o distanciamento de um conjunto de coisas que não faz mais sentido no atual estágio do futebol brasileiro e mundial.
O São Paulo nunca precisou tanto de Rogério Ceni como precisa agora.
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1 Chalub, Leonardo. Palmares de Zumbi - 1ª ed. - São Paulo: Nemo, 2019, p.